ARMAZÉM LITERÁRIO
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OESP / PRIMEIRAS PÁGINAS
"‘O Estado de S.Paulo’ lança livro com as principais primeiras páginas de sua história", copyright iGLer, 22/02/01
"O Estadão, como é chamado desde o início do século 20 o jornal ‘O Estado de S. Paulo’, acaba de lançar uma antologia de primeiras páginas publicadas ao longo de sua história de 125 anos (120 de vida independente, como ele insiste em definir, referindo-se aos cinco anos em que viveu sob ocupação da ditadura de Getúlio Vargas, entre 1940 e 1945).
Livros de primeiras páginas são um gênero híbrido entre o jornalismo e a história. Nessas antologias, normalmente, se misturam páginas que narram fatos de importância histórica incontestável a outras que constam da edição por uma razão meramente jornalística — e nesse caso, por vezes, a importância é restrita à história do próprio veículo, como reportagens premiadas e mudanças de logotipo.
Mas como o jornalista é em grande medida a testemunha ocular dos acontecimentos e sua narrativa, um primeiro rascunho da história, o que é importante para ele não raro se confunde com o que é ou virá a ser importante para a História do mundo.
Tradicionalmente, desde o surgimento dos jornais, as primeiras páginas carregam quase sempre muitas notícias, não só aquelas que motivaram a sua escolha pelos editores contemporâneos de antologias de primeiras páginas. Há exceções, mas estas costumam ser aquelas edições de jornal que narram fatos já no primeiro momento identificados como históricos.
No caso desta antologia ‘Páginas da História’, do ‘Estadão’, um exemplo claro de capa monotemática e histórica é a notícia da invasão da Polônia pela Alemanha nazista: nesse dia 1º de setembro de 1939, o jornal trazia em sua capa a manchete ‘Começou a guerra na Europa’ (escrita em maiúsculas nas mesmas letras que da proclamação da República até hoje são usadas no logotipo do jornal), que parece ter sido feita por alguém que sabia estar escrevendo para a História.
No dia anterior, o significado geral da notícia não era tão óbvio: antologias semelhantes, de jornais prestigiosos, como ‘The New York Times’, ‘Diário de Notícias’ (Portugal) e ‘Folha de S. Paulo’ mostram que os editores das primeiras páginas daqueles outros jornais não perceberam que a invasão da Polônia era o estopim da guerra continental (e depois mundial).
No mesmo dia, o ‘NY Times’, em sua manchete de três linhas, noticiou apenas a invasão da Polônia; o jornal português ainda perguntava se ‘malograram-se as tentativas para salvar a paz?’.
Já a antologia da ‘Folha’, omite a capa de 1º de setembro. E mesmo no dia seguinte (a capa de 2/9 consta de seu livro ‘Primeira Página’), o jornal paulista que só nos anos 80 passaria a concorrer com o ‘Estadão’ pela liderança de circulação em São Paulo, ainda noticiava um ‘ultimatum’ franco-britânico ao Reich alemão, que era em verdade a senha da guerra mundial.
Nas antologias, as primeiras páginas comuns, com notícias variadas, permitem ao leitor um terceiro nível de leitura, também interessantíssimo. Trata-se de uma espécie de ‘micro-história jornalística’ em que fatos sem importância para a história pegam carona na ‘Grande História’.
Em um artigo escrito para o caderno dominical ‘Mais!’, quando do lançamento da terceira edição da antologia de capas da ‘Folha de S. Paulo’ (chamada ‘Primeira Página’), Renato Janine Ribeiro destacava que ‘em certos momentos a notícia menor é prenhe de história, até no sentido grandioso do termo’.
Em outros casos, essa relação se inverte: no calor da hora, o editor da primeira página muitas vezes não vê a história ‘no sentido grandioso do termo’ passar à sua frente e, se incluiu o fato histórico na capa do jornal, o relegou a segundo plano.
É o que destacava, com aparente ironia, o mesmo artigo de Janine Ribeiro, comentando outra capa da ‘Folha’: ‘Ainda assim, talvez, a página mais estranha seja a de 11 de novembro de 1989: não consegui entender bem por que foi escolhida (ou concebida). Terá sido o caso Lubeca, ou a ambição presidencial de Silvio Santos, ou o caderno de cem anos da República? Imagino que seja a queda do muro de Berlim, mas esta notícia recebe tão pouco destaque, no conjunto, que não dá para saber…’
Talvez você leitor se pergunte o que foi o ‘caso Lubeca’ ou desconheça a ‘ambição presidencial de Silvio Santos’. Mas certamente deve saber o que foi ‘a queda do muro de Berlim’. Mas de fato, na edição da ‘Folha’ destacada por Janine Ribeiro, a queda do muro foi publicada em segundo ou terceiro plano.
A comparação com o ‘Estadão’, mais uma vez favorece o jornal mais antigo: ele publicou a queda do muro como manchete principal de sua edição, relegando a destaque menor o cipoal de notícias de importância efêmera, embora de grande impacto na campanha eleitoral que chegava quase ao fim.
O mesmo efeito ocorre com a notícia do massacre na Praça da Paz Celestial, em Pequim. No dia em que o chinês solitário parou uma fila de tanques de guerra enquanto o exército comunista massacrava os estudantes, o ‘Estado’ dedicou sua manchete ao tema (à preocupação com uma eventual guerra civil). Já a ‘Folha’ publicou a mesma foto como principal destaque, mas a manchete para um tema local.
A inclusão, nas antologias, dessas páginas em que a história com H maiúsculo acabou sendo publicada como mero coadjuvante resulta numa espécie de crítica do editor contemporâneo ao trabalho do jornalista do passado. Mas de tantas vezes em que ocorre, talvez se possa pensar que o erro é tão ou mais comum que o acerto.
Isso fica claro em muitas das páginas das antologias e ainda mais evidente para quem folhear uma coleção completa de todas as edições de um jornal. Em alguma medida, é como se a multiplicidade de fatos de cada dia impedisse o editor de perceber a história em alguns deles.
Com o editor (e consequentemente com seus leitores) pode acontecer um fenômeno semelhante ao descrito por Ortega y Gasset em ‘Meditações do Quixote’: ‘O adágio alemão afirma que as árvores não deixam ver o bosque’. De tantos fatos, ele não consegue ver a história.
Duas notícias que estão entre as mais importantes do século e que de alguma forma não tiveram destaque na leitura feita pelo ‘Páginas da História’: a descoberta do túmulo do faraó egípcio Tutancâmon, em 1923, tem menção absolutamente discreta (e ilegível em tela de computador) na capa do ‘Estadão’ (embora presente) mas reina como manchete do mesmo dia no ‘New York Times’.
Mas o leitor de ‘Páginas da História’ e, principalmente, o leitor de mais de uma dessas antologias vai reconhecer no ‘Estadão’ uma atenção ao noticiário global que precede em muitos anos (talvez em um século) a moda atual em torno do conceito de ‘globalização’. Para o jornal paulistano, noticiário internacional foi sempre uma espécie de noticiário local, o que beneficiou seus leitores com uma visão da história que poucos jornais do mundo puderam ter.
Em tempo: 1) o ‘caso Lubeca’, que estourou durante a campanha para a primeira eleição presidencial no país em três décadas, foi uma acusação feita por um obscuro político de direita (Ronaldo Caiado) ao candidato do PT (já na época Luiz Inácio Lula da Silva) de receber uma doação ilegal da empresa chamada Lubeca. Ao final de uma investigação minuciosa, o Banco Central rastreou o caminho do suposto cheque e concluiu que ele saiu do país, mas jamais deixou o circuito de contas da empresa ou de seus funcionários graduados; 2) a tentativa do empresário e apresentador de TV Silvio Santos de entrar na corrida presidencial já quase na reta final da campanha foi abortada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que a impugnou com base em várias irregularidades; 3) o editor responsável pela concepção e publicação da primeira página da ‘Folha’ em 11 de novembro de 1989 fui eu."
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