Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Leão Serva

EUA EM GUERRA

"Vai começar a guerra. Prepare-se para as mentiras", copyright Último Segundo (www.ultimosegundo.com.br), 30/09/01

"Os ataques ao território do Afeganistão devem entrar em uma nova fase nas próximas horas ou no máximo dias, segundo informam jornais ingleses. Isso deve aumentar a censura e a autocensura das informações enviadas pelos jornalistas. E o pior: desta vez o oponente se incumbiu de destruir seus meios de comunicação

A imprensa inglesa informa que os ataques mais intensos ao território do Afeganistão devem começar em 48 horas. É o começo de uma guerra explícita. Prepare-se para as mentiras.

Muitos leitores nos EUA, no Brasil e em todos os países já vêm apontando os lapsos de informação no noticiário, principalmente da rede internacional CNN, que nos últimos anos se tornou uma espécie de ?Jornal Nacional do Planeta?. Agora as coisas vão piorar.

É sempre assim: ?A primeira vítima quando começa a guerra é a verdade?. A frase é do senador norte-americano Hiram Johnson, em 1917. Ele se referia à cobertura dos jornais norte-americanos sobre a Primeira Guerra Mundial, em que os Estados Unidos ainda nem mesmo lutavam.

A frase serve de epígrafe e de título para um estudo chamado ?A Primeira Vítima?, do escritor Phillip Knightley, lançado logo depois da Guerra do Vietnã e relançado, em versão ampliada, no ano passado (clique aqui para ler textos do Último Segundo quando do lançamento da nova edição).

Embora seja um dos maiores clássicos sobre jornalismo, adotado em universidades de todo o mundo, o livro parece inspirar os críticos dos meios de comunicação apenas quando as guerras terminam. Durante os conflitos, os mesmos jornalistas que admiram o estudo de Knightley são capazes de engolir as versões mais disparatadas sobre os conflitos.

Foi o caso da cobertura, no Brasil e em todo o mundo, da guerra do Kossovo, em 1999. Quem se deu ao trabalho de cotejar as notícias da época com as conclusões dos comitês de investigação após o final do conflito certamente se vê hoje em uma situação delicada: os sérvios não mataram tantos albaneses quanto apontavam os números; os albaneses não eram os anjos indefesos apontados pela mídia internacional; as armas usadas pela Otan não eram ?tão inteligentes? e nem seus bombardeios eram ?cirúrgicos?; a intervenção internacional não restaurou a harmonia entre as etnias e nem mesmo o equilíbrio geopolítico na região (ao contrário, os albaneses que tinham forçado a intervenção internacional contra a Sérvia, em 1999, se desmascararam ao tentar provocar uma segunda mágica semelhante, agora na Macedônia).

Mas o pior não é ver as notícias serem desmentidas depois, mas ver que a guerra do Kossovo aconteceu oito anos depois da guerra do Golfo, quando os mesmos termos foram usados para definir a mesma estratégia da mesma coalizão internacional (liderada pelos Estados Unidos), também para negados depois.

Knightley é um estudioso metódico, que se dedica a investigar a inúmeras notícias publicadas sobre cada conflito. A leitura de seu livro reserva uma surpresa a cada página.

A trajetória da cobertura de guerra é, como ele mostra, uma espécie de disputa entre jornalistas querendo noticiar livremente os conflitos e governos querendo difundir versões que sirvam aos seus interesses publicitários, não importa se verdadeiras ou não.

Nessa disputa, a imprensa foi ampliando seus espaços, a começar pela instituição mesma da figura do correspondente de guerra, na Guerra da Criméia (1854-1856), entre Inglaterra e Rússia (aliás, durante uma longa disputa pela hegemonia sobre o sul da Ásia que levou os dois países a disputarem também o Afeganistão). Antes da Criméia, correspondentes dos jornais eram militares envolvidos nos combates, que escreviam para os jornais de seus países. Ou seja, não havia nenhuma independência.

A imprensa, para Knightley, venceu a disputa na Guerra do Vietnã. E a partir de então, os governos, mesmo os mais democráticos, nunca mais foram os mesmos em seu relacionamento com os jornalistas.

As guerras de hoje, desde as Malvinas (1982) são as mais censuradas e controladas da história. A ponto de o governo inglês organizar um pool de jornalistas para cobrir a guerra contra a Argentina, em que uns poucos jornalistas sorteados eram obrigados a enviar suas matérias, depois de aprovadas pela censura, para todos os jornais do país. Ou seja, embora contratados por jornais privados, eles trabalhavam como assessores de imprensa do governo.

Na Guerra do Golfo (1991), só foram enviadas notícias do front autorizadas pelo governo norte-americano, numa censura sem precedentes até então, baseada exatamente naquela que tinha sido implantada pela Inglaterra na década anterior.

Agora que a guerra será num confim da Ásia do qual todos os jornalistas estrangeiros foram expulsos pelo próprio Taleban, não se deve esperar nada melhor. Especialmente porque a mídia dos EUA e da Inglaterra (que controlam as maiores agências de notícia do mundo), refletindo a absoluta unanimidade da opinião pública dos dois países a favor dos ataques, deverá praticar um jornalismo absolutamente acrítico em relação às notícias divulgadas pelos órgãos militares.

No Kossovo, a mídia iugoslava acabou servindo de contrapeso à internacional. Foi a tevê iugoslava que divulgou que um míssil ?inteligente? da Otan tinha atingido albaneses em fuga, em vez de um comboio militar sérvio e matado diversos civis.

No caso do Afeganistão, nem isso será possível: o Taleban proíbe a tevê e a internet. Talvez agora seus lideres percebam que criaram a barreira que agora vai impedi-los de divulgar sua versão dos acontecimentos.

Então, ao leitor brasileiro, resta esperar que a distância dos correspondentes brasileiros em relação ao ufanismo norte-americano gere algum jornalismo independente. E aguardar, para depois do conflito, uma bateria de críticas aos mais diversos aspectos da estratégia militar aliada: a revelação do sofrimento de civis inocentes, dos erros dos atacantes, dos tiros fora do alvo etc."

 

"TVs americanas romperam acordo ao transmitir ataque", copyright Globonews (www.globonews.com.br), 8/10/01

"Ao mesmo tempo em que os aliados bombardeavam o Afeganistão, em território americano as redes de TV travavam uma movimentada guerra pelas imagens do ataque. Assim que começou o bombardeio, todos as emissoras americanas levaram ao ar as imagens geradas pela rede Al-Jazeera (sediada no Qatar), única autorizada pelo movimento talibã a trabalhar no país. Mas havia um acordo de exclusividade entre essa emissora e a CNN, prevendo que as concorrentes só poderiam retransmitir as cenas seis horas depois. A Al-Jazeera chegou a enviar uma carta às outras emissoras alertando para as possíveis conseqüências judiciais, mas de pouco adiantou."

 


"Guerra é guerra", copyright Veja, 10/10/01

"Na semana passada, antes de surgir qualquer sinal concreto de guerra no Afeganistão, a rede americana CNN já registrava uma baixa em suas fileiras. Ou melhor, uma deserção. Steve Harrigan, um dos correspondentes que o canal de notícias mantinha no norte do país, resolveu trocar de emprego no fragor da cobertura. No domingo 30, menos de 24 horas depois de comunicar a seus chefes em Atlanta que partiria para ?novos desafios profissionais?, ele fez sua estréia em outra emissora. A surpresa: trata-se da arqui-rival da CNN nos Estados Unidos, a Fox News. Desde os atentados em Nova York e Washington, a Fox vinha apanhando feio nos índices de audiência. Para tirar o prejuízo, precisava neutralizar um dos maiores trunfos na cobertura da CNN: as reportagens exclusivas enviadas do Afeganistão por Harrigan e pelo colega Chris Burns. Despachar um profissional de seus quadros para lá não seria tarefa simples. Há uma ?lista de espera? com mais de 200 jornalistas do mundo inteiro, que anseiam por uma autorização dos rebeldes da Aliança do Norte para entrar no Afeganistão. A opção de penetrar em território afegão clandestinamente é muito arriscada – uma repórter do jornal inglês Sunday Express resolveu bancar a esperta e foi presa pelo Talibã sob acusação de espionagem. Ao contratar Harrigan, um veterano com dez anos de CNN, a Fox driblou esses contratempos. E foi rápida no gatilho: já enviou ao repórter sua principal ferramenta de trabalho, o videofone, uma engenhoca capaz de transmitir sons e imagens por satélite. Com o negócio, a Fox deu o troco à recente contratação de uma de suas estrelas, a loiríssima apresentadora Paula Zahn, pela CNN. O valor de seu passe foi de 2 milhões de dólares. Não se sabe quanto Harrigan vai ganhar no novo emprego, mas seu empresário (pois é) não nega o óbvio: ele recebeu um ?substancial? aumento de salário. Como disse o chefão da Fox News, Roger Ailes, este é um momento em que ?mais vale um correspondente no Afeganistão do que uma âncora em Nova York?. Em tempo: a CNN já substituiu Harrigan por Matthew Chance."

    
                         
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