MÍDIA JUSTICEIRA
José Carlos Aragão (*)
Outro dia, um jornal aqui de Minas saiu com uma seqüência de fotos em que um grupo de torcedores do Cruzeiro segurava um cambista que estaria vendendo ingressos a preços abusivos para a final da Copa do Brasil (aquele Cruzeiro 3 x 1 Flamengo). O fato ocorreu nas proximidades de um ponto de venda de ingressos, foi registrado pelas lentes de um fotógrafo do jornal e rendeu chamada de primeira página.
Na seqüência de fotos, enquanto um torcedor segurava o incauto cambista com uma gravata, outros torcedores ? segundo a legenda ? o revistavam para ver se ele ainda tinha ingressos para vender.
As fotos, em si, não me teriam chamado tanto a atenção, não fosse por uma particularidade: enquanto o rosto do cambista era claramente visível, os torcedores apresentavam tarjas digitalmente inseridas em seus rostos, desfocadas, para não lhes permitir a identificação.
Fiel à máxima de que "uma foto vale mais que mil palavras", nem me detive na leitura da matéria e, confesso, mal-mal, li a legenda. Fiquei vidrado mesmo foi nas fotos, ou melhor, no tratamento que receberam em sua edição. Tentava compreender o critério que determinou que os torcedores tivessem suas identidades resguardadas, enquanto a do cambista fora inteiramente exposta.
Rótulo rejeitado
Mais o instinto, talvez, do que meu laico conhecimento sobre o que sejam direitos humanos me faziam ver, pelas fotos, que aqueles quatro ou cinco torcedores ? segurando um cambista a pretexto de revistá-lo e confiscar ingressos que ele porventura tivesse nos bolsos com a intenção de vender a preço superfaturado e auferir lucro ilícito ? estavam cometendo, no mínimo, uma arbitrariedade. O ato do cambista ? desleal, imoral, especulativo, criminoso ? não justifica o outro, cometido pelos torcedores ? arbitrário, violento e, também, criminoso.
Ao resguardar as identidades dos torcedores, entretanto, quem editou as fotos colocou-se na condição de juiz do caso, condenando um por um crime que é repudiado pelo senso comum (e, talvez, pouco reprimido pelas autoridades constituídas); e elevando os outros partícipes do fato fotografado a justiceiros e heróis anônimos da sociedade espoliada.
Será este, também, o papel de um jornalista? Que prerrogativas lhe foram concedidas para que ele considerasse que um é mais culpado ou mais inocente que o outro e deve ter ou não sua identidade exposta a milhares de leitores?
Se um cambista age impunemente nas portas dos estádios, ginásios e casas de espetáculos; se os torcedores ignoram a lei e decidem praticar a sua própria "justiça" contra um cambista; se a imprensa, em vez de se restringir a relatar o ocorrido, se arvora o direito de sugerir quem é o mocinho ou bandido na história ? toda a sociedade corre perigo.
Os torcedores ? os da foto ? poderiam, por exemplo, achar que o simples confisco de possíveis ingressos nos bolsos do cambista seria uma pena muito leve, e que tal ato seria um crime "hediondo", a ser punido com a morte. E, aqui, cabe a pergunta: nos rostos de que personagens o jornal estamparia tarjas, se um de seus fotógrafos documentasse o linchamento, em praça pública, pela turba ensandecida, de um suposto ladrão de vale-transporte em um ponto de ônibus do centro da cidade?
Pra mim, está claro: o episódio transita entre os limites ? cada vez mais tênues e indistinguíveis em nossa sociedade – da ética, da justiça, da responsabilidade. Transpor barreiras tão delicadas pode nos conduzir ao totalitarismo de antanho (a história está cheia de registros). Afinal, o chamado "estado democrático e de direito" fundamenta-se no equilíbrio dos três poderes ? Executivo, Legislativo e Judiciário ? e tem por característica precípua o fato de considerar que ninguém está acima da lei.
Por isso, como jornalista, rejeito o rótulo de "quarto poder" que é atribuído à imprensa ? antes que ela acabe se acreditando como tal.
(*) Jornalista e escritor