O SEGREDO DE JOE GOULD
"Cia. das Letras lança ?O Segredo de Joe Gould?, segundo volume da coleção ?Jornalismo Literário?", copyright Último Segundo (www.ultimosegundo.com.br), 2/07/03
"Dando sequência à série ?Jornalismo Literário?, a Companhia das Letras e o Último Segundo lançam ?O Segredo de Joe Gould?, de Joseph Mitchell. Segunda obra da coleção inaugurada com ?Hiroshima?, o livro traz a célebre reportagem feita por Mitchell para a revista ?The New Yorker? em 1964.
Especialista em escrever sobre anônimos tipos nova-iorquinos, Mitchell tornou-se célebre principalmente pelas duas reportagens que fez sobre o mais interessante dos personagens que conheceu. Joe Gould, misto de boêmio e mendigo, conhecido nas ruas e botecos da cidade.
Gould carregava um calhamaço onde dizia ter compilado nada menos que 9 milhões de palavras para contar ?Uma História Oral da Nossa Época?. Ele dizia registrar conversas com gente anônima, numa espécie de História paralela.
A primeira matéria escrita por Mitchell sobre Gould foi em 1942, com o título de ?Professor Gaivota? (Gould se dizia ?a maior autoridade mundial na língua viva das gaivotas?). Em 1964, sete anos depois da morte de seu personagem, Mitchell publicou sua obra-prima, em que revela o segredo de Joe Gould. Depois disso, nunca mais publicou nada.
As duas reportagens estão no livro, que tem posfácio de João Moreira Salles. Entre os próximos títulos da coleção ?Jornalismo Literário? estão ?A Sangue Frio?, de Truman Capote; ?Música para Camaleões?, de Truman Capote; e ?Olhos Na Multidão?, de Gay Talese."
"Uma relação muito especial", copyright Último Segundo (www.ultimosegundo.com.br), 2/07/03
"O Segredo de Joe Gould é bem mais que uma reportagem. Não apenas pela qualidade do texto, a capacidade de escutar e a paciência do repórter Joseph Mitchell, mas também pela relação que se estabeleceu entre entrevistador e entrevistado.
Mitchell se interessou por Joe Gould por duas razões: por este ser um notívago solitário e também por ser autor da História Oral, obra à qual Gould dedicou muitos anos de sua vida, percorrendo a cidade de Nova York, ouvindo as pessoas e anotando tudo que lhe parecesse interessante.
O fato é que Joe Gould deve a Mitchell (e não à História Oral) sua tão almejada passagem para a eternidade. De certa forma, Mitchell também deve algo a Gould. Afinal, depois de ter escrito o segundo texto sobre o boêmio, em 1964, Mitchell passou décadas sem escrever mais nada. Aliás, ele nunca deixou claro o motivo de seu longo silêncio. Este é um dos temas desenvolvidos por João Moreira Salles no posfácio da obra.
Mitchell tinha percepção do que representava para Gould. Como ele mesmo afirma em seu segundo texto: ?Percebi que, por saber tanto de seu passado, eu acabara me tornando parte de seu passado. Conversar comigo lhe permitia recuperar seu passado, permitia-lhe mantê-lo vivo?.
O repórter manteve o segredo de Joe Gould por muitos anos e só o revelou sete anos após a morte de Gould. Um segredo que por muitos momentos ele se arrependeu de ter descoberto e que virou tabu entre ambos: nunca discutiram a fundo a questão, pois Mitchell percebeu que o segredo era a própria vida de Gould.
Não revelaremos o segredo de Joe Gould por amizade ao leitor. No entanto, para aguçar ainda mais a curiosidade pela leitura da obra, acrescentamos que depois que Mitchell revela o segredo de Gould, passa a revelar alguns de seus próprios segredos e a perceber suas próprias e insuspeitas semelhanças com o boêmio, mendigo, excêntrico e interessantíssimo Joe Gould.
Novamente nas palavras de Mitchell: ?O Excêntrico Autor de um Grande Livro Misterioso e Inédito – essa era sua máscara. Escondido atrás dela, criara um personagem muito mais complexo, a meu ver, do que a maioria dos personagens criados pelos romancistas e dramaturgos de sua época?.
A vida (e, quem sabe, o jornalismo) supera a ficção. No entanto, nunca é demais lembrar que o repórter teve todo o tempo de que necessitou para escrever sua matéria. Eram tempos em que era possível praticar o jornalismo literário, hoje devidamente ultrapassado pelo jornalismo em tempo real. Tempo real no qual um personagem como Joe Gould talvez só pudesse existir na ficção
Leia abaixo trechos de O Segredo de Joe Gould, de Joseph Mitchell
Mitchell descreve Gould
Gould era um exemplo perfeito do tipo de excêntrico comum em Nova York, o notívago solitário, e era esse traço dele que mais me interessava – esse traço e a História Oral -, não sua boemia; eu havia entrevistado vários boêmios do Greenwich Village e os achara surpreendentemente enfadonhos.
Ele era a criança catarrenta; era o filho que sabe que desapontou o pai; era o tampinha, o nanico, o metro-e-meio, o meio-quilo; era Joe Gould, o poeta; era Joe Gould, o historiador; era Joe Gould, o selvagem dançarino Chippewa; era Joe Gould, a maior autoridade mundial na língua das gaivotas; era o proscrito; era o exemplar perfeito do notívago; era o ratinho; era o único membro do Partido Joe Gould […]
Gould parecia um vagabundo e vivia como um vagabundo. […] Era disparatado, arrogante, intrometido, mexeriqueiro, caçoísta, sarcástico e grosseiro.
Gould não é, de forma alguma, um vagabundo. Acredita que a diversão que proporciona vale o que consegue filar. Não bajula ninguém e não agradece. Se o afastam polidamente, dá de ombros e vai embora. No entanto, se alguém faz algum comentário do tipo ?Fora daqui, vagabundo?, volta-se para o ofensor e, sem se importar com seu tamanho, passa-lhe uma descompostura chula numa voz esganiçada e fanhosa. E não mede as palavras.
Joe Gould é um homenzinho alegre e macilento, conhecido em todas as lanchonetes, tabernas e botecos imundos do Greenwich Village há um quarto de século. Às vezes ele se gaba de ser o último dos boêmios. ?Os outros caíram fora?, explica. ?Uns estão na cova, outros no hospício e alguns no ramo publicitário?.
Mitchell versus Gould
Percebi também que não havia como negar o fato de que, quanto mais ele [Gould] falasse comigo, mais eu saberia de seu passado, e quanto mais eu soubesse de seu passado, mais importante se tornaria, para ele, falar comigo. Isso me assustou e decidi me livrar dele, se necessário transferindo o fardo para outra pessoa o mais depressa possível.
Gould e a História Oral
De repente me ocorreu a idéia da História Oral: eu passaria o resto da vida percorrendo a cidade e ouvindo as pessoas – bisbilhotando, se necessário – e anotando tudo que me parecesse revelador, por mais enfadonho, idiota, vulgar ou obsceno que os outros pudessem achar.
A História Oral tem sido minha corda e minha forca, minha cama e minha comida, minha esposa e minha puta, minha ferida e o sal em cima dela, meu uísque e minha aspirina, minha rocha e minha salvação. É a única coisa que tem algum valor para mim. O resto é lixo.
No futuro pode ser que as pessoas leiam a História Oral de Gould para ver o que fizemos de errado, da mesma forma que lemos Declínio e Queda, de Gibbon, para ver o que os romanos fizeram de errado.
Mitchell: Gould se pôs a descrever a História Oral e logo estava se comparando a Gibbon – discursando sobre o que chamava de sua ?afortunada proximidade? em relação a Nova York e o que chamava de ?a desafortunada distância? de Gibbon em relação ao Império Romano.
Gould, sobre o Greenwich Village, bairro boêmio de Nova York
Lembro-me de ter dito que a parte da História Oral relativa ao Greenwich Village se intitula ?Uma infinidade de disparates?. […] Depois de muito pensar, decidi mudar esse título e achei que devia lhe comunicar tal decisão imediatamente. O novo título é ?O hospício sem grades, ou Descidas diurnas e descidas noturnas ao submundo intelectual de nossa época?.
A dieta de Gould
Sou a maior autoridade dos Estados Unidos em privação?, garante Gould. ?Vivo de ar, auto-estima, guimba de cigarro, café de caubói, sanduíche de ovo frito e catchup?.
Nesse instante a garçonete colocou diante de Gould um prato de ovos fritos com torradas e mais uma caneca de café. Assim que ela virou as costas, Gould pegou um vidro de catchup que estava pela metade e esvaziou-o no prato, despejando seu conteúdo em torno dos ovos. Depois correu até a mesa vizinha e pegou outro vidro, que tinha, talvez, um terço de catchup, e também o esvaziou no prato, cobrindo completamente os ovos e as torradas. ?Eu nem gosto muito desse troço, mas tenho o costume de comer tudo que me aparece?, disse. ?Esse é o único grude grátis que eu conheço?.
Gould, sobre a sanidade
Eu consideraria o mais são dos homens aquele que melhor compreende o trágico isolamento da humanidade e prossegue calmamente na busca de seus propósitos essenciais. Acho que penso dessa forma porque sofro de delírio de grandeza. Acho que sou Joe Gould.
Mitchell e o segredo de Gould
Fiquei revoltado. Eu estava me esforçando para não desmascará-lo, e ele estava se esforçando ao máximo para se desmascarar. ?Pelo amor de Deus?, tive ganas de gritar. ?Não vá afrouxar agora e se desmanchar em confissões e confidências. Se fingiu durante tanto tempo, a única coisa decente que lhe resta é continuar fingindo até morrer, não importa o que aconteça?. Em vez disso, falei: ?Desculpe-me, por favor, mas agora você precisa realmente me dar licença. Está ficando tarde, e tenho umas coisas a fazer?.
Gould sobre Gould
Não faz muito tempo, procurando um termo no dicionário, encontrei uma palavra que resume meu modo de ser […]: ?ambissinistro?, canhoto das duas mãos."
"O anti-cascateiro", copyright Último Segundo (www.ultimosegundo.com.br), 2/07/03
"Cascateiro, define o Dicionário Houaiss, é o indivíduo que cascateia, que mente ou conta vantagens. Redações de jornais e revistas já trataram cascateiros com brandura. Alguns eram, de fato, encantadores. Inconformados com a realidade, a floreavam, adjetivavam a banalidade que os incomodava. Desconcertavam com sua desinibição um jornalismo ainda estreito, bitolado por formalidades.
Os tempos mudaram, mas uma coisa não: o limite entre os pecados veniais dos cascateiros e crimes contra fé pública de farsantes vulgares ficou mais tênue. Os cascateiros, é bem verdade, passaram a escassear, mas não sumiram. Está aí Jayson Blair, que fabricou entrevistas, inventou pradaria onde só existia maçante paisagem suburbana, surrupiou informações dos outros e acabou detonando a cúpula do New York Times, cúmplice de sua cascata de fraudes.
Parece heresia mencionar cascateiros para falar de Joseph Mitchell, príncipe do jornalismo literário, o que o inscreve ao mesmo tempo na galeria dos melhores jornalistas e dos melhores escritores americanos do século XX. A partir da década de 30, e sempre na revista New Yorker, Mitchell devotou seus fabulosos dotes para descrever espeluncas – bares infectos, hotéis decadentes, salões de bilhar decrépitos – e perfilar farto elenco de anônimos – ciganos, bilheteiras de cinema, índios, mulheres barbadas, criadores de baratas. E literatos maltrapilhos ou vagabundos filósofos como Joseph Ferdinand Gould, de ?O segredo de Joe Gould?, sua obra-prima.
Há terreno mais propício para a cascata? Como distinguir lendas urbanas de sofridos e divertidos relatos vindos das entranhas de uma gigantesca metrópole como Nova York? É mais fácil checar se Gregory Lynch alguma vez dirigiu a palavra a Jayson Blair, ou mesmo saber se o resgate rocambolesco de sua filha, a soldado Jessica, no Iraque, aconteceu mesmo ou foi cascata infame produzida por patriotada militar. Quem iria atrás de Jane Barnell, a Lady Olga, ou Madame Olga, para conferir o hirsuto fenômeno que fez dela atração de picadeiros como mulher barbada? Kevin Kerrane e Ben Yagoda escolheram Lady Olga, retratada por Mitchell em 1940, para ?The Art of Fact?, antologia de jornalismo literário que organizaram em 1997.
O que cascateiros e outros facínoras mais perigosos fazem com fantasias, mentiras e pendor criminoso para a fabulação, Mitchell fez com rigor maníaco. Por casualidade, Mitchell conheceu Joe Gould, ?boêmio residente? em vários bares nova-iorquinos. Gould definia-se como ?a maior autoridade dos Estados Unidos em privação?. ?Vivo de ar, auto-estima, guimba de cigarro, café de caubói, sanduíche de ovo frito e catchup?. Despejava em tudo, sopas inclusive, vidros inteiros de catchup. Esqueceu de mencionar piolhos. Não tinha um dente na boca.
O fascínio do personagem estava nos calhamaços de papel que sobraçava. Neles, dizia, escreveu 9 milhões de palavras para contar ?Uma História Oral da Nossa Época?, ciclópica compilação de conversa fiada com gente anônima, invisível para a História. Depois de ler os primeiros cadernos, Mitchell concluiu que toda aquela maluquice era escrita ?com grande franqueza, chegando a um elevado grau de obscenidade?. Mais tarde acrescentou: ?seu jeito de escrever se parecia muito com seu jeito de falar: meio rígido e empolado e, em geral, um tanto insípido?. Mitchell não é nem edificante nem compassivo demais com a doída e engraçada mendicância de Gould. Coisa rara quando se trata de personagens do gênero.
Gould é especialíssimo. Raro. Lembra os beberrões embotados de álcool, mas de consciência crítica acesa, como o que pontua a peça ?Pequenos Burgueses? de Máximo Gorki. Onde mais se poderia achar um mendigo graduado em Harvard em 1911, ?magna cum difficultate?, como ele mesmo brincava. Filho e neto de médicos da vetusta Boston, Gould decidiu muito cedo ser ?gauche? na vida?. Em seu jorro narrativo, em que digressões emendavam com digressões até nublar o fio da meada, Gould tinha muitos lampejos de inteligência e lucidez.
Mitchell ouviu-o com imensa paciência. Peregrinou com Gould por bares, night clubs, fraternidades de poetas. E publicou em 1942 ?O Professor Gaivota?. Sim, Gould também se dizia ?a maior autoridade mundial na língua viva das gaivotas?. Em 1964, 22 anos depois, Mitchell escreveu ?O Segredo de Joe Gould?. Gould já tinha morrido. Em 1957, com 68 anos, uma arteriosclerose o matara.
Há muitas lições de jornalismo nas duas reportagens literárias. Principalmente na segunda, quando Mitchell não briga com os fatos para desvendar o segredo de Gould. A ?História Oral…?, que encantou Ezra Pound, sem que ele lesse uma linha, a poeta Marianne Moore, que publicou trechos em Dial, revista sob sua direção, e William Saroyan, simpatizante da idéia, não era exatamente o que Mitchell achou que era.
Tudo o que pôde ser checado, foi checado. A história da família Gould, em arquivos de Boston. Facetas de sua personalidade, com amigos, companheiros de copo e de cruz, colaboradores regulares do Fundo Joe Gould, pretexto para arrecadar esmolas. A história foi decantada em meses de apuração. Mitchell era lento e fez da lentidão virtude. É pioneiro do gênero que prova que o jornalismo não precisava ser feito com repertório vocabular de 500 palavras para ser objetivo e explanatório, remando contra a maré da voga da imprensa industrial. Mas não desperdiçava palavras. Só falou de personagens que por alguma razão admirava, mas não açucarou seus perfis com elegias.
Diz-se que só fez este jornalismo porque trabalhava na revista New Yorker. Certíssimo. (Para conhecer melhor a New Yorker e o caráter de Mitchell é absolutamente recomendável a leitura do posfácio que João Moreira Salles escreveu para edição brasileira de ?O Segredo de Joe Gould?).
A New Yorker é uma publicação única. Revista semanal, já nasceu sem o mais vago compromisso com as manchetes da semana. Vertebrar os fatos era tarefa da Time. Depois de uma época de esplendor, as revistas semanais de informação parecem ter perdido a receita. Estagnaram em grandes tiragens. Trocaram ?formadores de opinião? por multidões sem opinião formada, que compram revistas para conhecer métodos infalíveis de eliminação de cupins, dietas da moda, segredos da eterna juventude. Querem ser mais úteis que inteligentes. Bulas acríticas da vida moderna. Com títulos arregalados e textos curtos.
Do outro lado, está a New Yorker. Não é mais a mesma. Mas preserva algumas virtudes que lhe deram caráter. Preza a lentidão das demoradas apurações, o texto copioso e assuntos fora da pauta. Em jargão jornalístico, pauta define assuntos que merecem investimento de tempo e neurônios. Na paisagem atual do jornalismo brasileiro refere-se a um território francamente dominado pela miséria da imaginação. Um passivo livro de ocorrências enche muito papel com fatos obrigatórios. Fica tudo monotonamente parecido. As notícias enguiçam. Patinam no mesmo lugar como taxas de juros.
A New Yorker não fazia pautas. Os jornalistas se pautavam. Traziam para a revista as histórias incomuns que farejavam. Joseph Mitchell se pautava como poucos. Assim descobriu Joe Gould, Lady Olga, tanta gente. Tratá-lo como anacronismo da imprensa, jornalista datado, é grave equívoco. Por trafegar à margem das manchetes, Mitchell devia ser lido e estudado como um antídoto contra cascata. Nele, a fidelidade à realidade é façanha maior ainda."