Tuesday, 19 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Lugar garantido aos portadores de deficiência

MERCADO DE TRABALHO

Hugo Nigro Mazzilli

Nas últimas décadas, houve sensível evolução do tratamento jurídico dado às pessoas portadoras de deficiência.

A Constituição de 1988 trouxe normas protetivas e garantias de sua integração, como na acessibilidade a edifícios e transportes. E a Lei n. 7.853/89 disciplinou sua proteção e integração social.

Quanto ao acesso ao mercado de trabalho, a Constituição vedou qualquer forma de discriminação nos salários e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência, bem como exigiu lhes fosse reservado percentual dos cargos e empregos públicos (arts. 7?, XXXI, e 37, VIII). O Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União assegurou-lhes o percentual de até 20% (art. 5?, ? 2?). No Estado de São Paulo, a Lei Complementar 683/92, em seu art. 1?, impôs o percentual de até 5%.

Assim, os editais de concurso devem consignar a reserva de cargos; no requerimento de inscrição, os candidatos devem indicar a natureza e o grau da incapacidade, bem como as condições especiais necessárias para que participem das provas. Eles concorrerão em igualdade de condições com os demais, no que diz respeito ao conteúdo e à avaliação das provas. Após o julgamento das provas, haverá duas listas: a geral, com a relação de todos os candidatos aprovados, e a especial, com a relação dos portadores de deficiência aprovados. Em outras palavras, a reserva de percentual não afasta a necessidade de aprovação no concurso (ROMS n. 10.481-DF, STJ; ARMI n. 153-DF, STF), devendo ser compatíveis com a deficiência as atribuições a serem desempenhadas (ROMS n. 2.480-DF, STJ).

Mas ainda há indevidas resistências. Um acórdão do STF afirmou inexistir discriminação quando se eliminou do concurso um candidato com cegueira bilateral, porque isso geraria impossibilidade de desempenho pleno da função de juiz federal (RE 100.001-DF, j. 29/3/84). O acórdão por certo não seria proferido se os juízes tivessem considerado que é muito diferente a situação de quem conseguiu tornar-se habilitado para exercer os ofícios do Direito já quando portador da deficiência, e a daquele que, tendo visão normal, supervenientemente, se torna cego bilateral. Enquanto este último será aposentado por invalidez, já o primeiro fez seu curso jurídico iluminado apenas pela luz interna de sua força e sua vontade, que, não raro, é a bastante para ver muito além dos limites estreitos de quem não lhe reconhece aptidão para levar vida operosa e produtiva na sociedade.

Conheço Promotor de Justiça, no Estado de São Paulo, que, por falta de ambos os membros superiores, longe de inválido, exerce com zelo as atribuições de seu cargo; conheço Procurador do Trabalho com cegueira bilateral, que, apesar de discriminado em anterior concurso de ingresso à Magistratura, não só entrou no Ministério Público sem dever favor algum aos demais candidatos, como ainda, mercê de sua maturidade e cultura jurídica invulgares, tornou-se líder entre seus próprios colegas de visão normal?

Como ele exerce suas funções se não enxerga? Da mesma maneira que um juiz, que tem dois olhos sadios, que, para ler e entender algo em língua estrangeira, deve valer-se de um intérprete, tradutor ou ledor ? ou seja, um intermediário, compromissado e autorizado a tanto.

Já na iniciativa privada, coube à Lei n. 8.213/91 ? que cuida do sistema da previdência social ? assegurar em favor dos beneficiários reabilitados, ou das pessoas portadoras de deficiência, desde que habilitadas, de 2 a 5% das vagas para trabalho em empresas com mais de 100 empregados. O Decreto n. 3.298/99 estabelece as proporções: a) 2%, para empresas de 100 a 200 empregados; b) 3%, de 201 a 500; c) 4%, de 501 a 1000; d) 5%, para as que excedam 1000.

Grandes empresas alegam que, se tiverem que contratar 5% de trabalhadores deficientes, teriam de demitir igual número de não deficientes? Mas o argumento é irreal, pois que, na rotatividade normal dos empregos, basta ir cumprindo a lei gradualmente, que em pouco o problema resta resolvido, sem que se ponha alguém na rua. Outros alegam que não há condições de transporte ou acesso adaptado para recebê-los? Mas o que está tardando são essas adaptações!

De todos, o mais indigno é o argumento de que se deveria criar uma contribuição de cidadania, para as empresas que, não querendo manter o percentual, pagassem um valor a um fundo, o que as dispensaria de contratar pessoas portadoras de deficiência? Ou seja, pagariam uma taxa para poder discriminar!

É preciso deixar claro que não se trata de um ato de caridade que o Estado ou as pessoas devem em relação a alguns dos membros da sociedade. Ao contrário. A pessoa portadora de deficiência ? qualquer que seja ela, motora, sensorial, intelectual ? essa pessoa é inteira, no que diz respeito à dignidade e direitos.

(*) Advogado e consultor jurídico, foi membro do Ministério Público do Estado de São Paulo

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