MONITOR DA IMPRENSA
PORTUGAL: POLÊMICA NO PÚBLICO
"Democracia em casa – Terras Lusitanas", copyright Coleguinhas, uni-vos (www.coleguinhas.jor), 4/02/01
"Guardei os textos vêm aí mais abaixo com a intenção de os enviar para o Coleguinhas. Depois, no meio da confusão do dia-a-dia, simplesmente esqueci-os. Lembrei-me deles depois que o bravo e incansável Ivson me convidou a ‘trabalhar de graça que nem relógio’ para escrever uma coluna de correspondente em terras lusitanas. Felizmente, apesar de se tratar de uma polêmica travada em Outubro, os textos não perderam a atualidade – pelo menos do ponto de vista que eu gostaria de tratar.
Trata-se de uma polêmica, em termos absolutamente frontais, entre o diretor de um dos principais jornais portugueses, o ‘Público’, e o principal colunista do mesmo diário, Eduardo Prado Coelho. Ensaísta, crítico literário, professor universitário, Prado Coelho tem uma coluna diária (aos dias úteis) na última página do jornal. Dono de um estilo por vezes difícil, quando faz crítica literária ou ensaio, Prado Coelho consegue, na sua coluna, algo que todos sabem ser quase uma missão impossível: abordar de forma absolutamente clara e sucinta os principais assuntos políticos, sociais e até filosóficos do país e do mundo. E a coluna é diária – sai todos os dias úteis. Uma obra e tanto.
Já o José Manuel Fernandes é um jornalista que subiu há poucos anos à direção do jornal. Note-se que o ‘Público’, apesar de pertencer ao principal grupo econômico privado português, o grupo Sonae, é uma espécie de ‘filho único de mãe solteira’ do grupo, que tem de redes de supermercados a madeireiras (incluindo aí no Brasil) mas não possui mais nada na área de comunicação.
O interesse da polêmica não é tanto o seu conteúdo – que, por outro lado, é bem interessante: aborda a aprovação de uma lei que permite a comercialização em todo o país da chamada ‘pílula do dia seguinte’ nas farmácias, sem necessidade de apresentação de receita médica. O que a torna, a meu ver mais interessante, é que se tratou de uma polêmica dura, frontal, com direito a uma troca de adjetivos nada suave (José Manuel Fernandes chama, às tantas, Eduardo Prado Coelho de ‘arrogante’, e este responde com ironia), e, no entanto, não acabou com a demissão do colunista.
Ponto para o ‘Público’, que só saiu ganhando, ao mostrar que um jornal democrático não tem uma linha de pensamento monolítica, e que as suas principais figuras têm todo o direito de discordar umas das outras e podem fazê-lo em público. Bem diferente do que aconteceu quando Elio Gaspari entrou em choque com a direção do Estadão, ou quando Alberto Dines e o seu Observatório de Imprensa se chocaram com a Folha de São Paulo… e o desfecho foi bem diferente.
Efeito Perverso, por José Manuel Fernandes
A Assembleia da República deverá aprovar hoje, de forma precipitada e leviana, legislação sobre a pílula do dia seguinte que é quase exclusivamente motivada por razões ideológicas e ‘fracturantes’. Ao mesmo tempo deverá reprovar o projecto de lei que, mesmo necessitando de modificações, era o único que procurava tratar de forma integrada o real problema: a elevada incidência em Portugal de casos de gravidez na adolescência.
A ideia de que a banalização da chamada ‘pílula do dia seguinte’ é a solução para todos os problemas de prevenção da gravidez é perigosa. A pílula do dia seguinte não é uma aspirina: é um composto hormonal cuja utilização repetida é totalmente desaconselhável e pode mesmo ser perigosa – por isso, aconselhá-la em nome da deficiente educação sexual de muitas adolescentes pode ser criar um problema maior do que aquele que se quer evitar. Entre os menos informados, o risco de que a pílula do dia seguinte substitua, por facilidade, outros métodos anticoncepcionais recomenda exactamente o contrário daquilo que é preconizado em alguns projectos em discussão, nomeadamente o do Bloco de Esquerda (por outro lado, não deixa de ser extraordinário que aqueles que defendem apaixonadamente o sexo protegido em nome da prevenção da sida sejam os mesmos que agora defendem a vulgarização de um instrumento de prevenção da gravidez que pode estimular o sexo desprotegido).
Uma coisa é facilitar o acesso público a um medicamento que, para ser eficaz, deve ser tomado nas 72 horas posteriores a uma relação sexual. Outra coisa é retirar esse medicamento do controle médico – controle médico fundamental, por seu turno, para detectar os casos de potencial gravidez na adolescência e desencadear os mecanismos de formação para o planeamento familiar.
Centrar a discussão do problema da gravidez na adolescência na pílula do dia seguinte é, igualmente, fugir à questão essencial: entender por que razão ocorrem tantos casos de jovens que engravidam precocemente. A resposta clássica é a falta de educação sexual e de mecanismos de planeamento familiar. A verdade é que é precisamente num dos primeiros países que liberalizou o aborto e que generalizou a educação sexual nas escolas – o Reino Unido – que os índices de gravidez na adolescência são mais elevados. É uma realidade crua que desmente as ‘verdades feitas’ da ideologia.
A existência desse problema levou o governo trabalhista a realizar uma campanha no sentido de revalorizar o sexo responsável e consciente (e não uma campanha pela virgindade como certas virgens ofendidas da nossa praça a apresentaram). A sua mensagem é simples: recomenda aos jovens que reflictam antes de escolherem ter relações sexuais. Combate a ideia de que ter relações é mais ou menos a mesma coisa que beber uma coca-cola ou, já agora, ‘dar uma passa’.
A campanha, naturalmente, não resolverá o problema, mas pelo menos procura estimular comportamentos responsáveis, procura que os jovens pensem nas consequências dos seus actos. Ir pelo caminho contrário – o de facilitar comportamentos irresponsáveis, como o sexo ocasional sem preservativo, em nome de uma pílula do dia seguinte universal e gratuita – é capaz de produzir exactamente um efeito contrário ao que se pretende. Sendo que, como sempre, serão os mais pobres a sofrer – para eles, uma gravidez adolescente é quase sempre uma condenação a uma vida miserável. Será que a esquerda folclórica não consegue ver isso?
O Dia Seguinte, Por Eduardo Prado Coelho
Vou tentar, sem intuitos polémicos, exprimir a minha perplexidade pelo editorial de José Manuel Fernandes na sexta-feira, dia 19.
O cerne da questão é este: a pílula do dia seguinte. Para José Manuel Fernandes, ‘uma coisa é facilitar o acesso público a um medicamento que, para ser eficaz, deve ser tomado nas 72 horas posteriores a uma relação sexual. Outra coisa é retirar esse medicamento do controlo médico – controlo médico fundamental, por seu turno, para detectar os casos de potencial gravidez na adolescência e desencadear os mecanismos de formação para o planeamento familiar’.
Independentemente do facto de o projecto da Juventude Socialista prever explicitamente a necessidade de uma consulta de planeamento familiar a quem solicitar este tipo de medicamento, valerá a pena lembrar que a sua eficácia é 50 por cento maior quando ministrada nas 12 horas seguintes ao acto sexual.
Nestas circunstâncias, a ideia de promover o acesso à pílula do dia seguinte mediante receita médica parece-me um acto de pura hipocrisia. Tão hipócrita como o projecto do PSD que, contrariando o badalado princípio de que é preciso decidir em vez de nomear comissões, propõe que se nomeie uma comissão para decidir do problema semântico de saber se a pílula é contraceptiva ou abortiva.
Na solução de José Manuel Fernandes, a única saída está em dormir directamente com o médico. Podemos até imaginar como, após uma impetuosa noite de paixão, a rapariga se dirige ao feliz jovem médico com o pudor de um oportuno diminutivo: ‘Então agora a receitazinha…’
No texto de José Manuel Fernandes, chega-se mesmo a dizer que é num país como o Reino Unido, onde se liberalizou o aborto e se generalizou a educação sexual, que as taxas de gravidez na adolescência mais têm aumentado: seriam os factos contra a ‘ideologia’ (e toda a gente sabe que por motivos miraculosos há pessoas, como o José Manuel Fernandes, que estão isentas de ideologia). Acontece que no Brasil, onde a educação sexual é escassa e o aborto proibido, a idade de iniciar relações sexuais tem vindo a diminuir e os casos de gravidez na adolescência têm vindo a aumentar. Onde estão as causas, onde os efeitos?
Há ainda o argumento de que se está a promover o sexo desprotegido. É verdade que tudo o que aumenta a liberdade de escolha das pessoas pode levá-las a escolhas erradas – incluindo, portanto, a vulgar pílula dos dias anteriores. Mas não é esse o princípio liberal por excelência: dar a liberdade de escolher e dar o máximo de informação possível para que se escolha correctamente? Será que é liberal retirar a liberdade de uma escolha que a ciência permite ou transformá-la numa hipótese de pura hipocrisia?
Liberdade, Responsabilidade e a Pílula, por José Manuel Fernandes
Com um atraso de alguns dias que eu próprio estranhei, Eduardo Prado Coelho lá veio manifestar, na segunda-feira, a sua perplexidade – ‘sem intuitos polémicos’… – com um texto meu sobre o problema da gravidez adolescente e da pílula do dia seguinte.
A sua tese é simples: é hipócrita requerer receita médica para acesso e esse tipo de contraceptivo. Invocando o facto de algumas dessas pílulas – mas não todas – serem mais eficazes nas 12 horas seguintes ao acto sexual – sem deixarem de ser eficazes na 72 horas subsequentes -, Eduardo Prado Coelho sugere que só dormindo com um médico se obteria, a tempo, a respectiva receita. A sugestão tem graça mas não tem sentido: bastaria ler os diferentes projectos para verificar, por exemplo, que o do PCP – partido que nestes assuntos costuma ser bastante mais sensato que a apressada JS e os azougados do Bloco – previa a distribuição da pílula nos hospitais e centros de saúde (que também funcionam 24 horas por dia), onde há sempre médicos presentes e onde se estabelecia prioridade para este tipo de consultas. Neste domínio a minha sugestão é a mesma do PCP: viável e prudente.
Mas a questão essencial não é essa, é a que decorre do que Eduardo Prado Coelho escreve mais adiante quanto procura contrariar o argumento de que a vulgarização da pílula do dia seguinte desvaloriza as campanhas a favor do preservativo. Escreve ele: ‘é verdade que tudo o que aumenta a liberdade de escolha das pessoas pode levá-las a escolhas erradas’. E depois pergunta: ‘Será que é liberal retirar a liberdade de uma escolha que a ciência permite ou transformá-la numa hipótese de pura hipocrisia?’
Primeiro, não se trata de uma hipótese de pura hipocrisia, como vimos e como qualquer médico habituado a tratar do problema reconhece (havia textos no PÚBLICO de dia 19 em que se dava a palavra a esses médicos). Segundo, a atitude liberal não é aquela que refere apenas a liberdade, é a que em simultâneo exige responsabilidade. Liberdade sem responsabilidade não faz sentido, e isso é especialmente verdade quando pensamos em relações entre dois seres humanos como são as relações sexuais. A atitude ‘gozemos hoje que depois logo se vê’, estimulada por projectos legislativos como aqueles que critiquei, é que não é uma atitude liberal: é uma atitude libertária.
Uma nota final: escrevi e mantenho que o projecto do PSD era o mais completo, mas tinha aspectos criticáveis. Não subscrevo, nomeadamente, as dúvidas que nele se alimentam acerca da pílula do dia seguinte. Mesmo assim não arrumo o problema com a arrogância de Eduardo Prado Coelho. Para mim, é-me totalmente indiferente saber se a pílula é contraceptiva ou abortiva. Mas aquilo que Eduardo Prado Coelho arruma como um problema ‘semântico’ toca em convicções essenciais de muitos cidadãos. Não terão eles também direito a ser melhor informados? Ou será que só interessa informar melhor se isso for no sentido das certezas iluminadas de Eduardo Prado Coelho?
Setenta e Duas Horas, por Eduardo Prado Coelho
Apresso-me a responder a José Manuel Fernandes, porque já percebi que nestas coisas qualquer atraso que ultrapasse as 72 horas pode parecer desatenção. O pior é quando se metem os fins-de-semana (mas não será este um problema que, na obrigatoriedade de uma receita médica, acaba por pesar?).
Lendo com atenção o que de facto diz José Manuel Fernandes, não vejo que tenha muito que discordar. Mas consideremos ponto por ponto.
A) José Manuel Fernandes defende que o processo seja acompanhado por um médico. Eu também. Toda a gente de bom senso também. Mas uma coisa é pensar-se que o processo deva ser, sempre que possível, acompanhado por um médico, outra coisa é tornar-se obrigatória a receita médica para obtenção do medicamento.
B) José Manuel Fernandes diz que ‘liberdade sem responsabilidade não faz sentido’, coisa com a qual estou inteiramente de acordo, se ele conceder o princípio inverso: só há responsabilidade onde há possibilidade de escolha livre. Se eu for obrigado a uma determinada escolha, não sou responsável por ela. Se eu puder escolher, sou. Fomentar uma cultura da responsabilidade implica fomentar uma cultura da liberdade. Só que alguns liberais têm uma curiosa distinção (nem todos, reconheça-se): é liberal tudo o que vai até onde lhes convém; quando já não lhes convém, torna-se – ó crime dos crimes! – libertário.
C) José Manuel Fernandes diz que, quando classifiquei a distinção entre contraceptivo e abortivo como um problema ‘semântico’, estava levianamente a tocar em ‘convicções essenciais de muitos cidadãos’. Acontece que eu não tenho uma ideia menor da ‘semântica’. Sou até forçado a reconhecer que o grande debate em torno do problema do aborto diz respeito a uma questão perfeitamente ‘semântica’: qual é a definição de ‘vida humana’? Todo o arsenal de referências ‘científicas’ só funciona a partir desta definição: é por isso que há cientistas que defendem uma tese, e outros que defendem outra.
No fundo, a grande questão é de ordem moral. Alguns (para citar a carta de um leitor) horrorizam-se voluptuosamente com a ideia de que se ‘possa andar a saltar de cama em cama’. Ou, como diz José Manuel Fernandes, ‘gozemos agora que depois logo se vê’. Pela minha parte, creio que tanto se pode escolher a mais pura castidade como andar a saltar de cama em cama (com o risco óbvio de torcer um pé), porque isso são opções com as quais cada um deve construir responsavelmente a sua vida – e nesse plano eu não sinto que deva interferir. Em nome de quê?"
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