FÓRUM SOCIAL MUNDIAL
"Das críticas de Saramago e de jornais safadinhos", copyright Correio da Cidadania (correiocidadania.com.br), 9/02/02
"A segunda edição do Fórum Social Mundial, como esta coluna adiantou na semana passada, foi muito melhor noticiada e analisada pelos jornais estrangeiros do que pela imprensa do país onde ocorreu o evento.
Entre os jornais brasileiros, apenas O Globo se dignou a fazer uma cobertura ampla do Fórum. Na grande imprensa, o diário carioca da família Marinho foi o único veículo que resistiu à tentação de tratar o evento de forma caricatural. Talvez por ?ter certeza? de que o PT de Lula não vencerá as eleições deste ano, O Globo não ?usou? o Fórum para atacar os petistas e privilegiou o noticiário factual do evento, isto é, noticiou os principais pontos de discussão, as propostas das mesas, os seminários e os atos públicos.
Nos outros grandes jornais, o que se viu foi a repetição de uma fórmula batida: as coberturas sobre os Fóruns Econômico e Social apareciam lado a lado, em geral de forma quantitativamente igual, de modo a convencer o público de que os jornais estavam dando igual importância aos dois eventos.
Pode até ter enganado os mais crédulos, mas o leitor atento percebeu que o tratamento das matérias era sempre desigual. Enquanto o Fórum de Davos, que este ano excepcionalmente ocorreu em Nova Iorque, era tratado como evento ?sério?, a cobertura do Fórum de Porto Alegre tinha por objetivo mostrar ao leitor que, se porventura um dia a plêiade de malucos reunidos na capital gaúcha chegar ao poder, vai ser mesmo um ?Deus nos acuda?.
Assim, os repórteres foram instruídos para perseguir os fatos insólitos, explorar e magnificar as eventuais discordâncias entre os milhares de participantes, enfim, enxovalhar o máximo que pudessem o evento em si. Os debates realizados, os grandes temas levantados nas mesas, nada disto contava.
Como já era previsível, a Folha de S. Paulo se esmerou nessa fórmula, mostrando que continua campeã do embuste e da perfídia. O cúmulo da mentira foi a edição da última segunda-feira, onde o jornal, em primeira página, tentava mostrar que o escritor José Saramago havia ?criticado? o Fórum em carta lida no encerramento do evento.
O disparate foi tão grande que gerou um duro protesto do Ombudsman do próprio jornal. Na sua crítica interna do dia 6 de fevereiro, disponível na internet, ele escreveu: ?A Folha se equivoca seriamente, a meu ver, ao enquadrar sua cobertura do Fórum Social Mundial, desde a edição de segunda-feira, de uma forma que, em última instância, procura desqualificar ou, até, ridicularizar esse evento. O abre de hoje, registro do último dia do FSM, é expressão dessa opção editorial (?Saramago azeda a festa; e a esquerda dança?, pág. A12). (…) A crítica de Saramago a partidos e sindicatos, por exemplo, não é nova e, além disso, ao contrário do que o jornal dá a entender, encaixa-se perfeitamente no espírito desse evento, que busca justamente privilegiar aquilo que chamam de novas formas de organização e associação?.
Como se vê, ao adotar o cinismo como linha editorial, a Folha pelo menos tomou puxão de orelha de seu próprio ouvidor. Os demais jornais, nem isto…"
"Fórum Social desafia os modelos de informação", copyright Folha de S. Paulo, 10/02/02
"Sem ter ido ao Fórum Social Mundial, restaram-me duas opções: ler a cobertura da imprensa e conversar com pessoas que estiveram em Porto Alegre nos últimos dias.
Essa busca de informação criou, portanto, um segundo nível de interesse, uma segunda camada sobre o evento.
A primeira camada é a do Fórum em si. A segunda é a da recepção ou representação que o mundo forma do que aconteceu no movimento ?antiglobalização?.
A navegação pela cobertura da grande imprensa, no entanto, logo revela uma limitação terrível. É que o Fórum não tem lide.
Os manuais de jornalismo definem o lide de uma reportagem como a abertura, a parte mais importante, o parágrafo sintético que deve procurar responder às tradicionais perguntas: o quê?, quem?, quando?, onde?, como? e por quê?
Mas como responder a essas perguntas tradicionais diante de um evento em que ocorreram mais de 600 oficinas e se encontraram centenas de organizações das mais variadas tendências ideológicas e milhares de participantes?
Há uma saída fácil: caracterizar o Fórum como uma armação do PT (Partido dos Trabalhadores) e do Partido Socialista francês. O processo teria assim um sujeito ?por trás? e a reportagem desvendaria o mistério da suposta geléia geral descobrindo uma conspiração.
Outra saída fácil e corriqueira: fazer exatamente da falta de lide o próprio lide, insistindo no caráter amorfo, invertebrado ou anárquico do evento onde, ao contrário da descoberta do PT como sujeito, ganham destaque os rachas dentro do próprio PT.
Uma terceira estratégia de organização da informação que brota do Fórum Social Mundial é sublinhar os esforços dos organizadores do Fórum para dar ao processo mais legitimidade por meio de maior qualidade na organização. A qualidade da organização seria o principal critério de seriedade e legitimidade de um evento.
Nenhuma dessas narrativas parece satisfatória. Nos três casos, fica evidente que o repórter ou analista faz um esforço de domesticação de um acontecimento que não se encaixa nos modelos convencionais de produção de mensagens.
E se o pluralismo radical significar não uma geléia geral, mas sim uma nova forma de organização da informação que desafia a lógica habitual das mídias, do marketing, da mobilização política e da produção de conhecimento e propostas políticas?
Mesmo os organizadores do Fórum parecem confortáveis com o rótulo que traduz o acontecimento num grito ?antiglobalização?. Mas o desafio maior não está na hipótese convencional de uma polarização entre os ?prós? e os ?contras?. A informação sobre o Fórum espelha um estilo de organização social que não se encaixa nos modelos habituais de representação e mobilização.
Em contraponto às narrativas tradicionais com sujeito, causa e efeito, associadas a medidas tradicionais de sucesso (retorno de imagem, espaço ocupado nos jornais e televisões, ?recall? das mensagens entre os que buscam informação sobre o assunto), o Fórum Social Mundial expressa uma organização em redes que não se reduz apenas a formas conhecidas como o congresso, a feira, o mercado, a assembléia ou o processo judicial. No lugar da rede de informação que alguém controla e orienta, a informação que é ela mesma uma rede desafia permanentemente nossa capacidade de descrever e contar."
"Uma alegria invisível", copyright Jornal do Brasil, 7/02/02
"Às vezes me volta à lembrança o refrão daquele samba antigo: ?a dor da gente não sai no jornal?. É uma canção memorável e também é uma pequena aula sobre jornalismo, ou sobre um limite do jornalismo. A dor da gente não sai no jornal porque o que sai no jornal é um retrato em alto contraste. Quanto à dor de verdade, ela fica onde está, sem que ninguém, além de seu dono mudo, possa senti-la. A dor real não cabe na imprensa e quanto a isso não se pode fazer nada.
Com a alegria também é assim. Não serve de compensação, mas é uma forma de alívio. A alegria não tem vez nas manchetes. Nunca, nem no Carnaval, que aliás está aí. Está aí e vai nos fazer testemunhar compulsoriamente a apoteose das rimas em ?ia?, com a magia, a alegoria, a poesia, ô-ô-ô. Vem aí a turística euforia em que a gente vê de tudo menos alegria. Os sorrisos arreganhados e os rebolados musculares vão desfilar como máscaras, inundarão as telas de TV como um filme de Zé do Caixão entrecortado com filmes da Xuxa. Vem aí o sensacionalismo da folia.
Digo tudo isso e no entanto eu não vou falar de Carnaval, mas apenas da alegria invisível. Eu vou dizer agora que estive no Fórum Mundial Social e aí você, que é folião, vai se aborrecer, eu sei que vai, e vai começar a falar sozinho: ?Ah, não, isso não.? Você vai se contrariar: ?Não é possível!? E vai se indignar: ?Ele não vai agora me dizer que o Carnaval é a alegria falsa e que a alegria verdadeira é a que estava em Porto Alegre, com aquela procissão de pôsteres do Che Guevara.? Você se enerva, chacoalha o Caderno B em suas mãos e grunhe: ?Política…?
Então eu peço calma, um pouquinho de calma. Eu gostaria de falar do Fórum sem falar de política. Quero falar de um outro componente que havia ali, e que não apareceu nos jornais. Nem tinha muito como aparecer. Trata-se de algo que escapa ao critério do que é notícia, pois se a notícia fosse se ocupar de impressões vagas e de sentimentos instáveis, como quer se ocupar estas minhas pobres notas, os jornais seriam ainda mais delirantes do que são. Ocorre que esse outro componente, esse tal que não passa pelo critério do que é notícia, foi em Porto Alegre um componente vital. Foi ele quem reuniu 50 mil forasteiros de tantos países e foi ele que transformou a cidade num ambiente tão singular. Parecia uma festa de família, mas se eu disser que era uma festa de família você vai rir da minha pieguice achando que descrevo uma reedição da esquerda festiva, agora devidamente encaretada, ou que falo de um happening, de um piquenique, de um oba-oba. Mas que parecia, parecia. Era como encontrar primos distantes na comemoração do centenário da imigração do nono, capice?
O melhor não era o que acontecia nas salas e nos salões da PUC, do Clube do Comércio, no teatro da Orquestra, por mais que tenham acontecido em todos esses lugares alguns pronunciamentos históricos. A novidade não era nem o fato de haver aquilo tudo junto, mas o como aquilo tudo se juntava em paz, com tamanhas diferenças e tão poucas divergências. A imprensa se fixou na agenda oficial do Fórum, o que, claro, era sua obrigação, mas, ciosa de seu dever de manter a isenção, acabou perdendo o melhor. O fervilhante saguão da PUC, por exemplo. Aquilo era uma torre de babel em dois pavimentos. Vivia congestionado. Passeatas de vinte ou trinta militantes, com vinte ou trinta faixas e cartazes, iam e vinham como numa esquina sem semáforo. Uma descia as escadas, em protesto contra as declarações racistas de Joaquim Roriz. Outra subiria as mesmas escadas nos minutos seguintes, em prol da libertação da Palestina. Um grupo de indianos entoava seu mantra.
Centenas de fotógrafos e cinegrafistas registravam cada manifestação. As passeatas relâmpago estariam no dia seguinte em telejornais franceses, em diários alemãs ou brasileiros – Porto Alegre abriu um pórtico de entrada para o espaço público mundial, o que foi ótimo -, mas algo ali continuou invisível. A alegria, a alegria. Os fotógrafos, que se pensavam testemunhas, eram parte indispensável da efervescência geral. Os militantes que se pretendiam sérios e conseqüentes, às vezes tinham vergonha do próprio contentamento, e procuravam revesti-lo de combatividade etc. Os presentes não falavam em fundar organizações, em aprovar programas, em ganhar dinheiro. Estavam ali por gosto. (Alguns candidatos em campanha sempre aparecem, é verdade, mas isso não conta.) Que o jornalismo não tenha ferramentas para olhar e descrever objetivamente essa vastidão afetiva, é compreensível. Mas ela estava lá, a vastidão. Tanto que, bem de longe, em Nova York, o Fórum Econômico parece que enxergou algo de novo sob o sol do Sul, e fala em abrir ?uma ponte?.
Os que foram a Porto Alegre experimentaram essa sensação estranha que é a de se reconciliar com o presente. O mundo pode ser outro, diziam. A novidade é que isso pode ser já. Não se trata mais de jogar as fichas no futuro, mas de perceber que o futuro pode estar começando. A alegria invisível talvez tenha a ver com isso. A noção dessa conquista instantânea pode ser a fonte de tanto bom humor, de tanta risada. Os presentes, eles mesmos, riam da comédia que havia no embaralhamento daquelas passeatas ruidosas. Um intelectual de esquerda gargalhava. Eu vi. A pluralidade em excesso causava nele um bem-estar súbito. E duradouro. Não são os protestos, a consciência crítica, o movimento antiglobalização, não é nada disso que move aquela gente toda. É a alegria, e não há por que negá-la. É a alegria da gente que não sai no jornal e que está mudando o curso dos acontecimentos."