Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Luiz Costa

QUALIDADE NA TV


SENSACIONALISMO

"Cidade Alerta? sai do ar… na África", copyright O Estado de S. Paulo, 17/05/01

"Enfim alguém toma coragem para controlar a qualidade da programação brasileira. Fora do Brasil, bem entendido. O governo de Moçambique não suportou por muito tempo o Cidade Alerta, da Record, e conseguiu cancelar a exibição do programa no país.

Exibida por uma retransmissora da rede de Edir Macedo, a atração foi tirada do ar porque as autoridades locais a consideraram um estímulo à violência.

?O programa exibia crimes que não são comuns em Moçambique, como seqüestros?, justifica a embaixadora moçambicana no Brasil Felizarda Monteiro.

O veto, feito no fim do ano passado, ocorreu após avaliação de um órgão ligado ao gabinete do primeiro-ministro Pascoal Mocumdi.

O ministério é responsável pela liberação de concessões de canais de TV, o que Moçambique, segundo sua embaixadora no Brasil, faz com cuidado e na ponta do laço. ?Com o crescimento do desemprego, aumentou a criminalidade moçambicana – não precisamos de novos estímulos?, afirma a embaixadora.

Segundo Felizarda, o programa comandado por José Luiz Datena foi ao ar por menos de um ano no país, que tem uma população pouco maior que a de São Paulo, com 15,7 milhões de habitantes.

Procurada pelo Estado, a direção da Record não se pronunciou sobre o caso."

"SBT Repórter", copyright Folha de S. Paulo, 20/05/01

"Fiquei assustado com o ?SBT Repórter?. A coisa é totalmente falsa. O que estão exibindo são programas obviamente americanos, mas que talvez tentem passar por brasileiros.

Calma, eu explico. O que vai ao ar é, sem sombra de dúvida, importado. É uma espécie de ?Fantástico? piorado produzido pelas grandes redes dos EUA. O SBT comprou, mas lhe dá um toque brasileiro. É aqui que começam os problemas.

A narração em ?off? é feita pelo jornalista Hermano Henning, o mesmo que apresenta o ?Jornal do SBT?. Os diálogos, reencenados ou em filmagem direta, são dublados, mas numa daquelas dublagens de piada, em que a dessincronização é perfeita. Para piorar, os nomes dos personagens envolvidos são ?traduzidos? para o português: Maria, Roberto, Pedro…

O ?SBT Repórter? deliberadamente deixa de mencionar onde ocorreram os fatos em questão. Quem procurar com atenção e tiver sorte, poderá encontrar indícios, como um NC (North Carolina) na placa do carro. Pior ainda, Hermano Henning se refere várias vezes à câmara da rede dos EUA que fez o programa como ?nossa equipe de reportagem?.

Apesar desses truques (até meio infantis), seria um pouco exagerado afirmar que o programa tem como objetivo ludibriar o telespectador. Como já disse, a dublagem é grosseira. A paisagem é tipicamente norte-americana, e sempre aparecem textos, de placas, cartazes ou telas de computador, em inglês. Se a idéia é enganar o público, é preciso considerá-lo especialmente tolo, mais do que seria lícito supor.

É claro que, a essa altura, ?SBT Repórter? já não pode pretender fazer jornalismo. É aqui que o programa começa a me interessar. O texto editado falha na missão mais básica de qualquer peça jornalística, que é informar o quê, quem, quando, como, onde e por quê.

Na estrutura de ?tradução? escolhida pelo SBT, pelo menos o quem, o onde e o porquê ficam irremediavelmente comprometidos. É difícil entender como Hermano Henning esteja se prestando a esse papel. Mas esse é um problema dele. O meu é explorar um pouco melhor a sutil dialética do ?SBT Repórter?, em que as coisas são o que são, mas sem sê-lo exatamente.

Abandonemos por alguns instantes o mundinho imanente do jornalismo e procuremos olhar para a transcendência. O ?SBT Repórter? nos oferece uma dupla oportunidade. Podemos assisti-lo como céticos, ?como se? desconfiássemos (e com razão) de tudo o que o Hermano Henning nos conta. Mas também podemos vê-lo ?como se? os fatos apresentados não dependessem mesmo de circunstâncias como tempo, lugar etc. O que me interessa aqui é a expressão ?como se?. Nós podemos agir ?como se?. Na verdade, a crer na filosofia do pensador alemão Hans Vaihinger (1852-1933), não fazemos outra coisa que não agir ?como se?.

Vaihinger é um daqueles filósofos completamente esquecidos, mas nem por isso menos importantes. Sua obra menos desconhecida é ?A Filosofia do Como Se? (?Die Philosophie des Als Ob?), mas seu trabalho como comentador de Kant também é relevante. Ele é fundador da revista ?Kant Studien?, bem como da Sociedade Kant.

Como não poderia deixar de ser, a filosofia do ?como se? surge de um ?topos? kantiano. Não podemos conhecer as coisas em si, o mundo como ele é de verdade. Estamos condenados a conhecer apenas fenômenos, ou seja, temos de nos contentar com o que surge da interação entre sujeito e objeto, em que há muito mais de nós mesmos como sujeitos do que das coisas como elas de fato são.

O mundo é um labirinto de contradições, e o fim da filosofia é, para Vaihinger, encontrar significados para tornar a vida vivível. O ?como se? nada mais é do que uma ficção com valor pragmático. Podemos e devemos, se desejarmos permanecer vivos, agir ?como se? houvesse um mundo material exterior que opera independentemente de nós. Quando damos de cara com um leão na floresta, devemos fugir em vez de especular sobre as condições de existência de um leão ou sobre sua ?leonidade?.

O ?como se? é um princípio heurístico que não só nos ajuda a fazer ciência como nos permite sobreviver. Na vida, devemos agir ?como se? o mundo exterior existisse independentemente do sujeito. Em sociedade, devemos agir ?como se? existisse certeza moral. Na ciência, devemos agir ?como se? existisse o elétron, mesmo se soubermos que ele não passa de uma construção teórica.

Estamos constantemente agindo ?como se?. As ficções, mais do que úteis, são necessárias à vida.

O ?SBT Repórter?, se se chamasse ?SBT Filósofo?, talvez cumprisse sua missão no mundo do ?como se?. Dado que o nome é ?SBT Repórter?, não cumpre. No mundo do ?como se? devemos agir ?como se? o jornalismo procurasse sempre se aproximar o máximo possível daquela ficção normalmente chamada de ?verdade?. Quando o que se proclama jornalismo recusa o próprio ?como se? do jornalismo, o mundo se torna, irremediavelmente, um labirinto de contradições."

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