PICA-PAU AMARELO
"Personagens de Lobato vivem desencanto hi-tech", copyright O Estado de S. Paulo, 21/10/01
"Narizinho chega ao Reino das Águas Claras e não há surpresa em seus olhos. Lambaris falam, um caramujo traz píiacute;lulas mágicas em sua maleta de veterinário, sardinhas vestem terno e um príncipe escamado faz a corte à neta de Dona Benta. Mesmo diante de cenário tão improvável, a menina saltita com a tranqüilidade déjà vu de quem vê mais uma reprise de A Pequena Sereia, da Disney.
Na nova versão do Sítio do Pica-pau-amarelo, que estreou na Rede Globo no Dia da Criança, tudo é muito hi-tech. O mundo de Monteiro Lobato ganhou uma jovialidade de videoclipe, os cortes de edição garantem saltos rápidos à história e os personagens tomaram banho de modernidade. Dona Benta (Nicete Bruno) navega pela Internet, um microondas segura a onda de Tia Nastácia (Dhu Moraes) na cozinha e os efeitos especiais são tão salientes que dão às cenas uma textura de desenho animado.
O resultado é uma leitura impermeável, efervescente e retocada do maior clássico infantil brasileiro. Tudo nela ambiciona o clima de reatualização divertida com que Monteiro Lobato costumava homenagear, nas páginas do Sítio, os clássicos mundiais de seu tempo. Há quem veja com suspeita tal ênfase na tecnologia para a adaptação de uma obra que ganhou o imaginário de gerações. Mas a plástica que o Sítio de Lobato sofreu é menos desrespeitosa que inconsistente.
Sinais do tempo – O Sítio da Globo dá sinais de seu tempo. Os personagens mal conversam, arrochados entre o ritmo de clipe e a pouca duração dos capítulos diários (15 minutos dentro do infantil Bambuluá com Angélica). Ao falarem, os diálogos saem picotados e telegráficos, enxutos o suficiente para as indicações indispensáveis de cada passagem do enredo. Engessada, a encenação professoral acentua um ar postiço que contamina o conjunto.
A criançada de hoje, decerto, tem um olhar bem distinto das que viram as outras versões do Sítio na TV (na Tupi de 1951 a 1964, na Band em 1968/69 e na Globo/TVE, entre 1977 e 86). Emília virava metralhadora falante, para espanto geral. Narizinho descortinava o reino do Príncipe Escamado com viva atenção pelo desconhecido. Pedrinho encarava a Cuca com um misto de desafio e medo, como quem não sabe o que aconteceria depois.
Sem surpresa – Na versão atual, no entanto, não há surpresa na reação dos personagens com o que de maravilhoso encontram pela frente. Os roteiros parecem construídos para incorporar uma naturalidade muito própria diante da pirotecnia, da novidade e do espetáculo virtual. O prato é servido ao gosto de quem está acostumado a um cotidiano povoado por games, efeitos especiais de Hollywood, desenhos hiper-realistas e informação on-line, aparatos que tão bem nos preenchem de encanto.
Uma boneca fala, um saci aparece, um rio vira reino e é como se todos já se soubessem parte de uma obra de ficção. Ficção de Lobato, digerida até o bagaço décadas a fio. Um ar descolado diante de qualquer novidade contamina os personagens do Sítio da Globo e, não fosse a força própria de seus tipos, a nova adaptação passaria por efêmera e mal resolvida.
Impacto – O desencanto déjà vu, no entanto, parece dar sentido e fôlego a uma atração feita para agradar. Com a estréia do Sítio do Pica-pau-amarelo, o Bambuluá com Angélica teve sua audiência média aumentada em cinco pontos. O infantil da Globo, que costumava alcançar dez pontos de média, agora registra médias de 15 pontos.
E tudo graças aos 15 minutos finais do programa, quando o Sítio é exibido, às 11h30. É só o remake entrar em cena, que a audiência da Globo sobe, de imediato, cerca de quatro pontos.
Na estréia no dia 12, uma sexta-feira, Bambuluá estava com 14 pontos. Quando o Sítio começou, subiu para 17. O quadro teve pico de audiência de 20 pontos, para um share (número de aparelhos de televisão ligados) de 37%. No segundo dia de exibição, na segunda-feira, Bambuluá entregou seu horário com 12 pontos e o Sítio subiu para 16 pontos. Na terça, o quadro começou em 11 e terminou com 16 de média. Na quarta, Bambuluá estava com 11 e pulou para 18 com o Sítio do Pica-pau-amarelo.
Os números são do Ibope, em São Paulo. São números eloqüentes para uma semana de estréia. Mostram que as falhas de coerência interna na encenação do atual Sítio podem não incomodar tanto sua geração de telespectadores como talvez incomodasse as outras, que lhe antecederam.
Tecnologia não é inimiga da fantasia nem a linguagem de clipe é, em si, um ataque à narrativa tradicional (O Auto da Compadecida que o diga). Mas faltará magia à geração dos novos Narizinhos e Pedrinhos? A familiaridade com um mundo de virtualidades à flor da pele pode criar uma couraça na sensibilidade da garotada? Ou isso é apenas exagero de uma crítica saudosista, feita por gente grande, que gosta de ouvir histórias – com calma? O desempenho do programa pode, quem sabe, dar um sinal do futuro."
"O fazendeiro e o fabuloso rebanho de sacis-pererês", copyright O Estado de S. Paulo, 21/10/01
"Enquanto lá fora o resto do planeta explodia, em 1918, fase sagrenta da 1.? Guerra, Monteiro Lobato escrevia sobre o saci – aquele moleque traquinas aparentando 12 ou 13 anos, que pulava numa perna só, usava gorro vermelho e pitava cachimbo – , nas páginas do Estado: ?Por várias semanas alvorotaste meio mundo, oh infernal maroto, e desviaste a nossa atenção para quadro mais ameno que o trucidar dos povos. Bendito sejas!?
Neto do Visconde de Tremembé, Monteiro Lobato herdou-lhe as terras, em Buquira. Durante algum tempo, nos anos 1910, dedicou-se a cuidar da fazenda, no interior paulista. Observando o comportamento indolente do ?piolho da terra? – o caboclo, de cócoras, acomodado, indolente -, criou o Jeca Tatu, criticando a figura idealizada por Alencar e ignorada pelo Brasil oficial.
Ouvindo as histórias das pretas velhas, deixou crescer o interesse pelos temas da cultura popular. Especialmente pelo saci-pererê.
Mas como era o saci? Um amigo, Joaquim Correia, dizia ter visto um, com duas pernas. Lobato disse que era imposível, tendo como argumento as histórias que ouvira.
Visitando o Jardim da Luz, na capital, viu as esculturas dos anões ?nibelúngicos?, vestidos à alemã, e impingiu-se a urgência de resgatar o elemento nativo brasileiro. O papagaio, a cuca, a mula-sem-cabeça, o curupira, o bicho-preguiça, a Iara, o caipora, o boitatá – imagens não fixadas por artistas nacionais, mais preocupados com o modelo europeu, dos quais tornavam-se ?cópia fajuta?, como escreveu em artigo publicado em novembro de 1916 na Revista do Brasil.
Voltaria à carga no Estado, em janeiro do ano seguinte, propondo a substituição dos faunos, sátiros e bacantes por Iara, de olhos azuis, filha de estrangeiro com aborígine, e de outros personagens mitológicos, pelos mitológicos nativos, com o intuito realizar o ?nosso 7 de setembro estético?. O símbolo de tal independência seria o ?satirozinho? saci.
O que ele chamava de ?parentela do Conselheiro Acácio? protestou com veemência contra a ?grosseira superstição popular, dessas que depõem contra os nossos créditos civilizados perante as nações estrangeiras? – os tempos não mudam, como se vê. Mas a discussão causou polêmica. Cartas chegavam de todo lugar, dando conta do mito. O próprio Lobato forjou algumas, engraçadíssimas.
No dia 28 de janeiro de 1917, Lobato propôs, na edição vespertina do Estado:
?O Estadinho inaugura hoje uma série de estudos em que todos são chamados a colaborar. Abre um inquérito, ou uma enquête, como diz o Trianon na sua meia-língua. Sobre o futuro presidente da República? Não. Sobre o Saci.?
É aquele ser que ?gora ninhadas, queima balões, come o piruá da pipoca, rouba espigas e quebra os pés de milho, bebe o conteúdo dos barris de vinho ou de refresco, deixa as porteiras abertas e fuma o pito das pretas velhas?, como o descrevem Carmem Lúcia de Azevedo, Márcia Camargos e Vladimir Sacchetta, na excelente biografia Monteiro Lobato – Furacão na Botocúndia (Editora Senac).
A correspondência inclui músicas sobre o moleque de pito na boca – e Lobato resolve ampliar o debate, propondo um concurso para artistas plásticos, tendo o saci como tema. Sabe da dificuldade em ?fixar um tipo puramente subjetivo, de formas instáveis, cheios de variantes, existente apenas na imaginação do sertanejo?.
Ainda assim, no dia 19 de outubro do mesmo ano inaugura-se na Rua Liberó Badaró, no centro, um salão de que – não foi surpresa – as paredes estavam cobertas por obras de estrangeiros. Dos brasileiros, poucos – Celso Mendes, Joab de Castro, Anita Malfati. Lobato descreveria a pintura de Anita como pertencente à escola do ?degringolismo?. O vencedor foi Roberto Cicicchia, com obra acadêmica.
No começo de 1918, Lobato reuniu o material recolhido durante a campanha do saci e publicou o livro O Saci Pererê – (Resposta a um Inquérito). Estava no papel a semente do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Ainda naquele ano, Lobato publicou seus primeiros livros ?adultos? – os contos de Urupês e a coletânea de artigos Problema Vital. No ano seguinte lançaria o polêmico Idéias de Jeca Tatu e os contos e impressões de Cidades Mortas, sobre a decadência das cidades do Vale do Paraíba.
Em 1920, lançou, para uso escolar, A Menina do Nariz Arrebitado; em seguida, Narizinho Arrebitado, Fábulas de Narizinho, O Saci, O Marquês de Rabicó.
Criador da primeira editora nacional (Monteiro Lobato & Cia.), ele queria ser artista plástico. Formou-se em Direito em obediência à família. Fez-se promotor para poder casar. Em 1926, foi adido comercial do Brasil em Nova York. De volta, em 1931, criou uma companhia petrolífera (o que se reflete no infantil O Poço do Visconde), que logo faliu. Nacionalista, foi preso por criticar Vargas na questão do petróleo.
Existe hoje uma Associação Nacional dos Criadores de Sacis, formada por intelectuais de diversas áreas interessados, como Lobato, em não deixar que morra o imaginário nacional – que não defendem isolamento, como não o defendia o escritor, mas que não querem perder a chance de meter a colher de pau no caldeirão da cultura do mundo."