Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Luiz Otávio

JORNALISMO SEM DIPLOMA

"Faxineira já tem registro de jornalista", copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 30/7/02

"A mais recente jornalista profissional de Minas Gerais, com registro precário obtido junto à Delegacia Regional do Trabalho, não é um escriba ocasional interessado em publicar seus textos eventuais ou experimentais em qualquer publicação, ou algum aventureiro que deseje ver seu nome impresso para satisfazer vaidades pessoais ou visando fins mais ou menos confessáveis. Trata-se de Maria D?Ajuda Silva (foto), de 49 anos, a ?Lia?, que exerce, com muita eficiência, simpatia e dignidade, as funções de faxineira do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Minas Gerais (SJPMG) e, desde os nove anos de idade, vem trabalhando nesta área ?para ajudar a família?.

Ela conseguiu se registrar sob o número 2001.61.00.025946-3 – MG 07243 JP, através de liminar de ação civil pública, conforme atestou a chefe do setor de Identificação Profissional da DRT/MG, Marluce Silva Rocha. Caso queira – ou consiga – está provisoriamente apta a exercer a profissão, da qual confessa não entender nada, mas que pretende aprender, ?quem sabe dentro de uns cinco ou seis anos, se estudar muito?. Lia mal completou a sétima série do Primeiro Grau e decidiu virar jornalista por sugestão ?de um rapaz gordinho e muito falante, que não sai aqui do sindicato?.

?Quero aprender a ser jornalista?, diz Lia, que confessa não entender nada do assunto e só decidiu procurar o registro na expectativa de, um dia, ?conseguir melhorar de vida?. Para tanto, ela assegura que lê muito – ?todos os papéis que me entregam na rua?- mas escreve ?muito pouco, quase nada?. Promete também que, agora, vai começar a leitura de um livro que encontrou na biblioteca do sindicato, ?uma história de um pai, uma mãe e um filho, ou coisa parecida. Peguei o livro porque sabia que ia ser jogado fora?. Ela explica que está lendo mais especialmente nos últimos tempos, depois que seu aparelho de televisão estragou. ?Ajuda a gente a dormir?, assinala.

Para conseguir seu registro precário de jornalista profissional, Lia, por sugestão do tal sujeito gordinho e falante, levou à DRT sua carteira de identidade, CPF e título de eleitora. Agora, está em plena condição legal de ser jornalista. ?Gosto muito de notícia, mas não de notícia ruim?, ressalta, destacando que todas as noites não perde o Jornal Nacional, da Rede Globo. Confessa que escreve mal, ?pois não tenho prática?, mas tem certeza de que, com o tempo, vai aprender. ?Quando ficar boa, quero mesmo é escrever para jornal. Mas gostaria muito também de mexer com computador, mesmo tendo um pouco de medo daquela coisa?.

O diretor do SJPMG, Délio Rocha, afirma que, sob hipótese alguma, Lia tem condições de conseguir inscrever-se na entidade para receber sua carteira de identificação profissional. ?Não aceitamos ninguém com registro precário e já o negamos a incontáveis pessoas que têm aparecido por aqui com sua carteira profissional contendo esta ridícula anotação?, adverte. Ele informa ainda que os portadores deste tipo de registro, se assim o desejarem, podem até recorrer à Justiça para tentarem ingressar no sindicato. ?Aceitaremos a briga judicial, até as últimas instâncias. Mas vamos resguardar com todos os recursos legais a dignidade da profissão?."

 

"O vale-tudo sindical", copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 1/8/02

"A aparente decisão do sindicato dos jornalistas de Minas de usar uma funcionária da entidade para mostrar ao país que, a partir de agora, ?qualquer um? pode obter o registro profissional para o exercício da profissão pode ter se transformado num clássico tiro pela culatra.

O problema maior está no fato de a suposta fabricação de um episódio desta natureza envolver uma pessoa humilde, levando-se em conta sua atividade de faxineira, o que acaba por demonstrar aos filiados a que tipo de expediente podem apelar estas entidades quando obrigadas a discutir o futuro da regulamentação da profissão dos jornalistas.

Não se trata aqui apenas de criticar por criticar a provável atitude dos sindicalistas, mas de convidá-los mesmo a uma reflexão sobre o perigoso artifício utilizado na ?batalha? criada por eles contra os jornalistas não-diplomados e seus defensores, ampliada depois da decisão judicial que suspendeu a obrigatoriedade do diploma para o exercício da profissão.

Não me parece razoável a exposição de uma pessoa na mídia em tais circunstâncias, perante milhares de pessoas que acessam este portal todos os dias. Diante disso, me pergunto se à faxineira teria sido oferecido algum ganho em troca de emprestar seu nome e quais os motivos que poderiam vir a justificar tal feito. Pois apenas esta dúvida já seria suficiente, na minha opinião, para colocar também sob exame a ética profissional dos autores deste factóide repugnante.

A luta pela manutenção das vantagens do corporativismo sindical, por exemplo, não me parece suficiente para se fazer entender tal a suposta manipulação do fato, tivesse a faxineira obtido ou não recompensa pela ?causa? em questão, tivesse ela espontaneamente ou não concordado com o papel que lhe coube na história.

Outro reflexo deste caso a meu ver infeliz, para não dizer patético, e talvez o mais importante do ponto de vista da ?categoria? dos jornalistas, é o que se pode verificar no que diz respeito ao despreparo dos sindicatos em debater de forma honesta esta questão. Se se consideram realmente líderes e representantes legítimos dos jornalistas, os dirigentes da entidade mineira não devem comportar-se como se fossem repórteres irresponsáveis que fabricam ou manipulam os fatos para obter algum retorno político ou pessoal.

O episódio mostra, portanto, a que voltagem pode chegar o curto-circuito provocado pelo fim aparente do diploma como legitimador do exercício profissional entre os sindicalistas. Tal nervosismo, que aparentemente afastou o bom senso entre estes sindicalistas, insisto, deveria ser controlado pelos jornalistas que acreditam no poder de representatividade do sindicato. Devem eles também esperar um posicionamento de Brasília sobre o assunto? Pois deveriam cobrar que ele seja feito pois, caso contrário, estará certa eventual interpretação de que a Fenaj corrobora com o comportamento da entidade de Minas e sua pobre faxineira.

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Nota 1 – Comentários feitos após a publicação do caso da faxineira registrada em Minas davam conta da suposta ingenuidade deste portal ao reproduzir tal matéria sem nela objetar nada em razão da aparente manipulação da história pelos sindicalistas. Acredito eu que não cabe ao Comunique-se opinar sobre o assunto já que não se trata aqui de um veículo cuja prioridade é a de observar a imprensa. Ademais, é sempre melhor deixar aos leitores a tarefa de opinar sobre o tema, expediente pelo qual, aliás, este portal tem se revelado um dos mais democráticos da Web.

Nota 2 – Impossível deixar de observar também o estranho comportamento da DRT mineira que deferiu o pedido de registro da faxineira do sindicato feito supostamente sob encomenda do próprio. Diz o despacho da juíza Carla que para justificar o registro é preciso provar o exercício legítimo da profissão com documentos que o atestem. Parece que, no caso, a DRT agiu de forma irresponsável ao não observar tal exigência judicial. E por que será?, pergunto eu.

Nota 3 – Em recente debate realizado nesta mesma coluna quando da entrevista que fiz com o jornalista Ewaldo Oliveira, o representante do sindicato do Paraná, seu diretor-executivo, aliás, comportou-se de forma similar aos colegas mineiros, ou seja, partiu para o vale-tudo, no caso, a difamação e a tentativa torpe de desqualificar-me perante os leitores deste portal. Também aqui é o caso de perguntar, santa ingenuidade a minha, se tal comportamento será incentivado pelos sindicalistas menos traumatizados ou se a verdade é que estão todos de cabeça-quente mesmo e então será um Deus nos acuda daqui em diante."