VIVENDI UNIVERSAL
"A polêmica em torno da ‘exceção cultural’", copyright O Estado de S.Paulo, 13/1/02
"O cinema francês está em transe. Ao mesmo tempo em que comemora o excelente resultado de ocupação das telas com filmes nacionais – nada menos que 41% do mercado – procura absorver uma frase fatal de Jean-Marie Messier, dono do grupo Vivendi-Universal. Messier disse em alto e bom som (não se sabe se em inglês ou francês) que a exceção cultural estava morta. O executivo mora em Nova York, tornou-se um dos produtores mais poderosos do planeta e acaba de comprar, nos Estados Unidos, o canal TV USA. Na França é dono do Canal +, a maior rede paga da TV francesa.
A declaração caiu como bomba porque é justamente o sistema de ?exceção cultural? que permite o subsídio ao cinema sem que a prática seja considerada protecionista pela União Européia. O que está em questão, portanto, é todo um sistema de produção e financiamento de filmes que coloca a França em posição privilegiada diante da hegemonia planetária de Hollywood. Países de cinematografias no passado poderosas, como Itália, Alemanha e Grã-Bretanha, têm suas telas ocupadas por uma média de 80% de produção norte-americana. O Brasil trabalha com cifras parecidas.
As reações à declaração de Messier não se fizeram esperar. Foi tachado de traidor da pátria ou coisa pior. Cenas de nacionalismo explícito, no entanto, não vão ao cerne da questão. O artigo mais lúcido, e também contundente, foi publicado no semanário Le Nouvel Observateur. Assinado por Laurent Joffrin, o texto é agressivo, esclarecedor e didático.
Lembra que o fundamento do sistema francês de financiamento está na taxa cobrada de cada ingresso vendido na bilheteria. Essa porcentagem é destinada a um fundo de sustentação à produção nacional. Como o cinema norte-americano ocupa, mesmo na França, a maior parte das telas disponíveis, transforma-se, ironicamente, no principal financiador do cinema francês.
Com a privatização das TVs, ocorrida alguns anos atrás, outro dado foi acrescentado à equação. Em troca da concessão, as redes se comprometem a destinar parte dos seus orçamentos à produção de filmes nacionais. O Canal +, de propriedade de Messier, dispõe de um quase monopólio sobre a difusão de filmes. Para consegui-lo, obrigou-se a destinar 20% dos seus recursos à produção. Esse porcentual vale até 2004, mas Messier, na prática, quer começar a rediscuti-lo já.
E o motivo mais imediato, segundo a análise da Nouvel Observateur, não está nas telas e sim no terreno esportivo. Com a entrada em campo de outra rede, a TPS, na disputa pelo rico filão do esporte, o Canal + teve de enfiar mais fundo a mão no bolso para conseguir os direitos de transmissão dos melhores eventos. Deseja agora compensar o ?prejuízo? à custa do cinema. O Canal +, sozinho, é responsável por um terço dos recursos de que dispõe o cinema francês. Por isso, a rediscussão dessa cota tornou-se fundamental para a sobrevivência, ou não, do sistema.
Esse é o fundamento econômico de um debate que, claro, se trava no plano ideológico. O discurso de Messier é um protótipo de liberalismo. Ele mesmo se diz favorável à diversidade, mas acha que, no fundo, o público é que deve escolher. Nenhum mecanismo de proteção, argumenta, é mais eficaz que uma indústria que produz bons filmes. E o exemplo estaria exposto à vista de todos: a comédia O Fabuloso Destino de Amélie Poulin, estrelado por Audrey Tautou, levou 8 milhões de franceses aos cinemas. Mas quem defende o sistema atual argumenta que um fenômeno como Amélie Poulin só se torna possível graças a uma estrutura bem montada que garante primeiro a produção do filme, depois a correta distribuição pelos cinemas, e finalmente a sua permanência nas salas.
O pano de fundo dessa polêmica é a luta entre duas concepções antagônicas sobre o papel do Estado na produção da cultura – e talvez não apenas da cultura. Por isso as posições francesas têm sido sistematicamente atacadas pelos Estados Unidos. No caso em questão, Messier fala não como francês mas na condição de proprietário de um grupo que produziu blockbusters como O Retorno da Múmia e Jurassic Park 3. Entre as grandes companhias do ramo audiovisual, a Vivendi-Universal teve o segundo maior faturamento do ano nos EUA, perdendo apenas para a Warner. Briga de cachorro grande."
"Por que a TV precisa do cinema", copyright Folha de S.Paulo, 13/1/02
"O princípio é justo e bom. Na França, a televisão sustenta o cinema nacional, ou melhor, ajuda o Estado a financiá-lo. E ganha com isso. Desde 1984, o Canal Plus, que é privado e pago, repassa ao cinema parte de seu faturamento. Hoje, isso representa cerca de US$ 140 milhões ao ano. Em troca, tem direito de exibir os filmes com exclusividade. O apoio estatal ao cinema, ancorado na visão de que ?cultura não é mercadoria? e que, portanto, não pode ser abandonada às tais leis de mercado, é uma política defendida tanto pela esquerda como pela direita francesas. É a política da chamada ?exceção cultural? (o mercado livre pode correr solto, exceto nas coisas da cultura), que tem funcionado bem. De todos os espectadores que foram ao cinema em 2001, na França, nada menos que 40% foram ver um filme francês, uma porcentagem muito acima da média européia.
Recentemente, o conglomerado de mídia Vivendi Universal comprou o Canal Plus, e as coisas mudaram. Em dezembro, Jean-Marie Messier, presidente da Vivendi Universal, anunciou que não dá mais. Alega que não tem mais a exclusividade da exibição de filmes na TV (o que é verdade) e que vai ficar no prejuízo. Instalado em seu escritório de Nova York, ele declarou: ?A exceção cultural francesa é a morte?. Foi uma declaração de guerra, que vem sendo respondida por gente de todos os partidos. Aqui, a defesa do cinema parece ser uma questão de soberania da identidade nacional. Cada um tem lá sua visão do que quer dizer identidade nacional, mas todos defendem o cinema. Certamente, com ou sem Canal Plus, com ou sem Messier, o filme francês continuará a receber recursos da TV, e esta continuará a receber em troca bons filmes para exibir, além de bons talentos para contratar. A TV, além do país, ganha com um cinema pujante.
A tese da ?exceção cultural? é lugar-comum na Europa. É uma arma contra as forças do mercado que vêm de fora ou, mais exatamente, uma arma contra o cinema americano. E no Brasil, o que temos? Não temos, nem tivemos, nada parecido. No Brasil, onde cultura é mercadoria e só mercadoria, quem dá a cara do cinema é mesmo o mercado. Mas, atenção, não é o cinema americano.
O mercado audiovisual no Brasil não é sinônimo de Hollywood. É sinônimo de televisão. E televisão é sinônimo de Rede Globo. A verdade (de mercado) é que foi a Globo quem formatou a fisionomia atual do nosso cinema. Ao longos desses 30 anos, ela formou os atores, abrigou os roteiristas, produziu diretores. Deu ao cinema muita coisa além de xuxas e trapalhões. Vejo em Paris os cartazes do filme Eu Tu Eles, que faz uma boa carreira por aqui. É Brasil, sem dúvida. Está longe de ser Hollywood. E também é Globo. No elenco, no diretor e até na sintaxe ele é Globo. Mesmo um filme como ?Um Copo de Cólera? tem algo de Globo pois, sem a Globo, aqueles talentos todos não existiriam no mercado brasileiro. Com tudo o que tem de monopólio e de manipulação, a Globo acabou suprindo, não sei se por acidente, a função de abrigar a formação de uma identidade audiovisual (termo estranho, mas vá lá) brasileira, em oposição ao domínio americano. Isso tudo sem política deliberada nenhuma. É curioso, mas é fato.
E também é pouco. Alguns canais pagos já ajudam na produção de filmes, mas ainda é pouco. A televisão, o principal negócio de mídia no Brasil, deve ser chamada a apoiar pesadamente o cinema. É do interesse dela, além de ser do interesse do país. Mais aberto a experimentações, o cinema é que deveria funcionar como o celeiro de talentos e de idéias para a televisão, nunca o contrário. A TV deveria financiar o cinema, um cinema radicalmente brasileiro, porque poderia buscar nele algumas saídas para a pasmaceira estética em que se encontra."