IMAGENS DO PRESIDENTE
Daniel Liidtke (*)
Para alguns, o rei do Brasil é Roberto Carlos. Para outros, Pelé. Há ainda os que julgam ser Assis Chateaubriand. E por aí vai. Mas a CartaCapital elegeu para si um rei. Fala disso de maneira explícita. Para ela, este homem é o mais digno e respeitável entre as opções. O mais capaz. O monarca que não se preocupará apenas com as regalias e privilégios da corte. Governa pela plebe; com o povo. Ninguém precisa de cartas para adivinhar de quem se fala. Lula é o rei do Brasil. Segundo a Carta.
A edição de 2/10/02 foi um marco para o jornalismo brasileiro. Seguindo o padrão dos jornais americanos, a Carta, sem meias palavras, posicionou-se em favor de Lula. Em editorial, o diretor de redação, Mino Carta, abre o jogo:
"Carta Capital manda às favas a tradição verde-amarela e declara sua escolha pela candidatura Lula. E explica que enxerga em Lula a liderança mais adequada ao momento. Ele representa a chance de mudar a política econômica que nos conduziu ao desastre. Tem autoridade para gerir tensões sociais crescentes. É o negociador adequado nas cortes internacionais, onde goza de maior prestígio do que gostaria quem o ataca e o denigre."
Em 9/10/02, após o primeiro turno, a posição do periódico foi confirmada em editorial. Essa atitude da revista agradou até não-petistas, que se congratularam na seção dos leitores.
Plataforma eleitoral
Nas edições do ano passado, em meio à corrida eleitoral, já era visível o apoio do semanário ao ex-plebeu. Por vezes, assemelhava-se a um boletim do PT. Na capa de 25/9/03, por exemplo, estampava-se a chamada: "Lula, segundo Serra". A figura era de Lula com chifres, olhos avermelhados, dentes afiados e sujos de sangue, escorrendo por suas mãos.
O periódico mostrou como Serra, no desespero de perder as eleições, tentava "demonizar" a imagem de Luiz Inácio Lula da Silva. O tucano tentava moldar um Lula a favor da bomba atômica, aliado íntimo das forças armadas revolucionárias da Colômbia e extremamente ligado às aberrações do MST. Mas essa não era a real imagem do monarca. Segundo a Carta.
Enfim, após disputa com Serra no segundo turno, o petista sai ileso e vitorioso. "Lula. Da Silva", mancheta a Carta Capital. Comemora em quinze páginas de reportagens, incluindo a primeira entrevista com o presidente eleito. Ou rei, de acordo com a preferência.
Eis, então, "O Brasil que passou", como publicou em 25/12/02. O Brasil que entra na história agora é o Brasil da Silva. Este se torna agora sobrenome real. Na edição seguinte, em 8/1/03, com o título "O Brasil que virá", Lula aparece na capa, braços erguidos, sorriso cinematográfico e com a faixa presidencial. Ao fundo, o mesmo quadro da capa de "O Brasil que passou", em que aparecem pessoas de aparência pobre e sofrida. É como se Lula fosse a solução para eles.
Os artigos e a matéria da última edição mencionada trazem a alegria maciça com a posse de Lula. É mostrada desde a felicidade de corredores da São Silvestre, evento em que houve a maior incidência de fantasias iguais ? de Lula ?, até abraços dos políticos e o choro do próprio presidente.
Tudo se resume na frase publicada de Gilberto Gil, ministro da Cultura: "Lula é o exemplo de grandeza que floresceu de baixo para cima. É a flor que vem do charco, onde o povo está". Finalmente, o rei do povo está no poder absoluto. Lula esmagará com seu cetro a terrível inflação e instalará um reinado de "paz e amor". Ele é o libertador. Segundo a Carta.
Esperança brasileira
As edições seguintes prestavam homenagens ao seu rei. "O Brasil fala: A voz de Lula ecoa no mundo, empolga a esquerda, seduz a direita", estampou em 5/2. Apresenta um Lula aplaudido de pé no fórum econômico de Davos e elogiado pelo FMI.
Em 16/4, o monarca é capa novamente: "Lula no poder". Quatro meses depois, até dá sabor de novidade. Em época de expectativa, já a situação econômica não sofria alteração, argumenta-se em um dos textos: "Cem dias é pouco para permitir a avaliação correta dos rumos de um governo, quanto mais um julgamento. E mais ainda a considerar a herança deixada por oito anos de calamitosa administração tucana". No meio da página, uma foto de Lula, onde abaixo se lia "este é esperança", e uma de Bush, "este causa pavor".
Na reportagem "Alta do real", em 14/5, Lula aparece numa foto, sentando em frente a um laptop acompanhando num terminal as cotações do dólar. Em 28 do mesmo mês, em "O Brasil acelera", o rei do País é descrito em seus envolvimentos com a política externa, reforçando o Mercosul como unidade econômica. Atacam Fernando Henrique Cardoso: "O discurso do presidente (FHC), tantas vezes festejado no exterior, não era nada mais que retórica". É. Realmente esse não é o caso de Lula. Segundo a Carta.
Olívio Setúbal, banqueiro, é manchete em 25/6. Cinco frases dele destacam-se na capa, sendo que uma delas é: "Lula, gênio político, é a tentativa de um caminho para a América Latina". No interior, o suspensório da reportagem: "Eleitor de José Serra, o mais representativo banqueiro do País aplaude a política antiinflacionária do governo Lula".
Desgaste e estagnação
Entretanto, nesta mesma edição, o colunista Antônio Delfim Netto já transparece o desgaste da constante desculpa do rei e de seus representantes: "Ainda não é chegada a hora do crescimento". Os problemas econômicos apertam e a situação fica difícil para o barbudo sentado no trono. José Alencar, vice-presidente, condena os juros altos. Culpa o governo. Contudo, em meio às reclamações ressalta inúmeras vezes sua amizade com Lula.
E a crise se aprofunda e começam a falar em recessão. Em 18/7, na reportagem "Uma panela de pressão", Lula é mostrado numa foto com ar de preocupação. Parece ter acabado aquela alegria contagiante. Todavia, mesmo em meio a crescimento tão baixo, a atitude em relação ao rei é positiva: "O governo está sendo bem-sucedido nesse controle, mesmo com um impacto negativo no ritmo da atividade".
Em 20/8, o rei é capa, juntamente com um tigre (representando o Fundo Monetário Internacional) que ameaça atacá-lo. Fala das novas negociações com o FMI. Num canto, o destaque: "Missão. Lula chamou para si a responsabilidade". Verdadeiramente o presidente é comprometido com o crescimento do Brasil. Sem dúvida, um rei justo. Segundo a Carta.
Quando explodiu o foguete do Centro de Lançamento de Alcântara, a edição de 3/9 trouxe numa das reportagens a foto de Lula em lágrimas por causa do acidente. Num boxe, o título "No velório, Lula chora por:" e na seqüência os nomes dos 21 mortos.
Ideologia absolutista
Em Lula é trabalhada toda uma filosofia humanística. Ele chora quando os outros choram. Sorri quando os outros sorriem. Lula é um rei diferente de todos os outros que o Brasil já teve. Perfeito. Segundo a Carta.
Em entrevista com João Pedro Stedile, um dos líderes do MST, publicada em 26/11 mesmo em meio a clima de descontentamento em relação ao governo, o sítio de Carta Capital destacava: "A confiança não arrefeceu". Frase em destaque: "Lula mantém o compromisso de fazer a reforma. É a chance de lutar contra a pobreza e o desemprego no campo".
Provavelmente, a Carta Capital irá defender Lula até a última página de sua vida. Seu rei é este e parece que o periódico não abre mão disso. Mesmo sob ameaça de crise.
A transparência da Carta é exemplo para os que se cognominam imparciais, mas que na verdade não são. É preferível eleger seu rei a ficar bancando mediador politicamente correto, enquanto nos bastidores, bobos da corte brincam de distorcer os fatos.
Contudo, vale lembrar que essa monarquia não pode ser absolutista, dona de uma verdade inabalável, autoritária, déspota. Um dos atributos da democracia é a pluralidade da informação, característica não cultivada pela Carta, que, ao invés disso, divulga suas matérias como verdades absolutas.
Se "Lula, segundo Serra", é um homem de dentes grandes e bebedor de sangue, "Lula, segundo a Carta", é o rei libertador que os brasileiros esperavam. Publicada uma revista com essa última manchete, a capa traria o monarca sobre uma carruagem atirando flores ao povo em redor. Realmente um rei. Segundo a Carta.
(*) Aluno do 2.? ano de Jornalismo do Centro Universitário Adventista (Unasp), em Engenheiro Coelho (PR)