MILLÔR FERNANDES
“Esopo à brasileira”, copyright Época, 17/6/03
“A sabedoria está valendo 20% da esperteza, ensina Millôr Fernandes. Num lance astuto, mas sem deixar de ser sábio, o humorista carioca embarca na onda das listas de ?100 mais? que fazem sucesso no mercado editorial e lança nesta semana 100 Fábulas Fabulosas, com contos tão pouco edificantes que fariam corar Esopo e companhia. Isso porque, como disse a ÉPOCA, nunca usou ?moral que não fosse antimoral?: ?Todos os fabulistas que conheço são donas-de-casa bem-comportadas?. Exceto ele, lógico.
O livro, com tiragem de 10 mil exemplares, assinala sua mudança para a editora Record, que promete lançar toda a sua obra a partir de 2004, ano em que completará 80 anos (em 27 de maio). O contrato com a editora, firmado há dois anos, cujas cifras não são reveladas, prevê a publicação de suas memórias. Deverá ser um volume de mais de 400 páginas, no qual promete contar episódios de sua vida de modo fragmentário, da infância no bairro do Méier à descoberta, em 1941, de que o tabelião havia errado na grafia de seu nome na certidão de nascimento (em vez de ?Milton?, ?Millôr?, falha que lhe deu a glória), passando pela estréia no jornalismo nos anos 40, o primeiro livro (Tempo e Contratempo, de 1956) e as peças de sucesso nas décadas de 60 e 70.
A editora quer publicar peças inéditas no volume da dramaturgia. É o caso de Duas Tábuas e uma Paixão, conversa entre um cardeal e um psicanalista que leva à conversão deste e à abjuração da fé daquele. A obra ficou tão anticlerical que o ator Tony Ramos, que a havia encomendado, desistiu de montá-la. ?Fiz teatro quando as pessoas queriam que eu fizesse. Das últimas coisas que fiz, tudo encomendado, nada foi levado. Ou o teatro piorou (cinema incluído) ou eu piorei.?
Claro que o Esopo brasileiro não havia de chegar a conclusão alguma. O nem tão bem-comportado habitante de uma cobertura em Ipanema e exilado pela primeira vez da imprensa – mantém apenas um site – um dia definiu-se como o maior fabulista do Brasil. E deve ser, pois sua coleção de parábolas ultrapassou a marca de 500. Antes da atual coletânea, havia publicado duas. ?Não sigo Esopo, um pobre moralista a ser gozado porque é um ícone da bobagem, como a sabedoria popular, que só é sábia porque afirma as coisas de todas as maneiras, a maior parte reacionárias?, comenta. Confessa que escreve e ilustra fábulas para ganhar a vida. ?Não escolhi nada, não tenho nenhuma pretensão de ser literato – talvez até, por pretensão, quero ser santo -, as coisas me escolheram.?
Millôr sugere que não existe bula para a fábula. Ao elaborar as do novo volume, jura que conversou muito com Igor, seu recém-falecido poodle. ?Ele foi o ser humano (remember Magri) mais maravilhoso que conheci.? Em suas alegorias elípticas, personagens e ações variam e fazem muito barulho para conduzir à mesma lição, que ele resume assim: ?Não tenho nada a ver com coisa alguma. Faço o que é preciso. Voluntariamente, tenho apenas me dedicado, com bastante sucesso, a viver 24 horas por dia. E, às vezes, um pouco mais?. Moral da história: como não há sentido em nada, nem o humor transforma o mundo; ainda assim, rir é um crime que compensa.
Em entrevista à ÉPOCA, Millôr Fernandes fala do seu novo livro e de seu trabalho como escritor
ÉPOCA – Por que você escolheu um gênero moral como a fábula para este livro?
Millôr Fernandes – Não escolhi nada. Não tenho qualquer pretensão a ser literato – talvez até por pretensão, quero ser santo – as coisas me escolheram. Na verdade tinha que encher espaços e ganhar a vida. Enchi e ganhei;
ÉPOCA – O que é ser Esopo num mundo pós-histórico, ou pós-arroba, ou arroba mesmo…
Millôr Fernandes – Não sigo Esopo, um pobre moralista a ser gozado porque é um ícone da bobagem, como a sabedoria popular, que só é sábia porque afirma as coisas de todas as maneiras. A maior parte reacionárias. E acho que já lhe disse isso: o mundo tem mais frescuras do que dramas. Me inclui fora, como dizia CBM.
ÉPOCA – Você considera fábula um fato folclórico ou meramente autoral?
Millôr – Mais folquilórico. A autoria só em poucos casos, em que a linguagem é a coisa mais brilhante.
ÉPOCA – A fábula é aparentada do aforismo? Pelo menos as suas tem aquela qualidade de dizer tudo no nada e vice-versa. Concorda?
Millôr – É. Sai-se pruma ?lição?, no meu caso sempre contra corrente, contra-natura. Sem jamais pensar nisso (é visceral ou não é nada) nunca usei moral que não fosse anti-moral. Todos os fabulistas que conheço são donas de casa bem comportadas.
ÉPOCA – Que fabulistas você considera fabulosos?
Millôr – A fábula vem do fundo dos tempos. Uma parábola. Mas tem coisa melhor no mundo em que a gente empregar o talento e o ato existencial. Exemplo: no plano intelectual pesquisar os prótons virtuais, os buracos negros, e a anti-matéria. No plano existencial, lúdico, pegar onda em Havaí. Quando a gente faz fábulas como eu, pra ganhar a vida, tudo bem. Ficar fazendo como objetivo de vida é viadagem. Ou Zé Sarney, o que preferir.
ÉPOCA – Por que você sempre se dedicou a gêneros oblíquos de escritura, tipo crônica, humor, tradução, e nunca cometeu um romance, considerado gênero ?maior??
Millôr – Não tenho nada a ver com coisa alguma. Faço o que é preciso. Voluntariamente tenho apenas me dedicado, com bastante sucesso, a viver 24 horas por dia. E, às vezes, um pouco mais.
ÉPOCA – Como anda a sua produção dramatúrgica? De ?Flávia…? até hoje, que tipo de peça o marcou? Você tem outras no alforje?
Millôr – Fiz teatro quando as pessoas queriam que eu fizesse teatro. As últimas coisas que fiz, ?Duas Taboas e uma paixão?, ?Kaos?, e o roteiro ?Últimos Diálogos?, tudo encomendado, nada foi levado. Ou o teatro piorou (cinema incluído) ou eu piorei. Você decide.
ÉPOCA – A Academia Brasileira de Letras continua a não interessá-lo, mesmo com a aparente abertura da instituição?
Millôr – Abertura, qué qué isso? Abertura mesmo só tem uma que interessa e você me compreende. Mas, desde muito tempo assumi minha posição em relação à ABL: sou candidato permanente à cadeira 38.
ÉPOCA – Você releu fábulas para escrever as suas? Quais foram as fontes de inspiração? Elas parecem tão deliciosamente amorais…
Millôr – Não reli nada. Acho até que nem li muita coisa. Mas você entendeu minha moral.
ÉPOCA – Como foi o aprendizado dessas outras vozes da fábula, os animais?
Millôr – Um dos meus maiores amores morreu ano passado. Foi o Igor, meu poodle, o ser humano (remember MAGRI) mais maravilhoso que conheci. Conversei muito com ele.
ÉPOCA – Onde está, afinal, a sua angústia da influência? Ela existe?
Millôr – Olha, rapaz, psicanalista comigo morria de fome. Não entro nessa de angústia. Muito menos de influência. Eclético, tenho influência eclética, claro.
ÉPOCA – Você está escrevendo sua autobiografia. Como é a experiência? Ouvi dizer que você nunca se divertiu tanto na vida.
Millôr – Autobiografia que, espero, não seja muito autobiográfica. Não estou aqui pra me engrandecer. Mas não venham me esculhambar, pô! Já não basta minha autocrítica.
ÉPOCA – O que você tem feito ultimamente além daquele site do UOL? O jornalismo cansou? .
Millôr – SAITE, por favor. O jornalismo – acho que esgotei os órgãos existentes. Bem a tempo. Tenho mais o que fazer. Você(s) não perde (m) por esperar.
ÉPOCA – Outros planos literários?
Millôr – Literários, eu? Isso que eu faço é ?literário??
ÉPOCA – Você anda mais arisco do que nunca em relação a jornalistas e fotógrafos.
Millôr – Tem jornalistas e fotógrafos demais no mundo.
ÉPOCA – Você não fala? Por quê?
Millôr – Não falo porque acho que falo demais. Pessoalmente , digo.
ÉPOCA – Você não fala? Por quê?
Millôr – Não falo porque acho que falo demais. Pessoalmente , digo.”
“Esopo do Rio”, copyright Folha de S. Paulo, 15/6/03
“Lobo em pele de cordeiro, o raposa Millôr Fernandes viu desde cedo um saboroso e abandonado cacho de uvas quase caindo da árvore. Era o esquecido gênero das fábulas, de Esopo e La Fontaine.
Formiga disfarçada de cigarra, o chamado ?guru do Méier? foi mais rápido do que a lebre ou a tartaruga e começou a trabalhar nesse estilo de historietas até que lançou, redondas quatro décadas atrás, o livro ?Fábulas Fabulosas?.
Moral da história, o humorista-dramaturgo-tradutor-desenhista-frasista acabou por virar também o grande fabulador nacional.
Agora, aos 78 anos, Millôr resolveu fazer uma reunião de condomínio com todo o seu zoológico fabular. Juntou leões e ratos, bodes e burricos, deuses gregos e políticos maranhenses e saiu de lá com uma centena de alegorias.
O resultado está no livro ?100 Fábulas Fabulosas?, que esse ?irmão Grimm? carioca (e amoral) lança pela editora Record.
Algumas historietas já andavam por aí em velhas brochuras esgotadas, outras estavam em seu ?saite?, o www.millor.com.br, mas a parte mais polpuda dessa centena de alegorias nunca tinha saído do escritório do criador.
Milton, digo Millôr (um tabelião desastrado, diz uma fábula, lhe deu esse nome que não tem par), também não é muito de sair do escritório. Pelo menos não para entrevistas. Mas o autor de frases como ?a informática criou uma coisa realmente maravilhosa: erros cada vez maiores cometidos em espaços de tempo cada vez menores? -?Millôr Definitivo? (editora L&PM)- topou bater papo por e-mail com a Folha.
Começou afirmando que não lembrava de quando iniciou-se na arte da fábula (?A primeira que ouvi foi Noé quem contou, no meio do porre comemorativo?) e terminou se mostrando um cordeiro em pele de lobo. Contrariando a fama de rabugento, pôs ponto final na conversa com um ?sou indecentemente feliz?. Leia a seguir trechos da entrevista.
Folha – Por que você chama de ?fabulosas? as fábulas que faz há 40 anos?
Millôr Fernandes – Tenho a vaga impressão de que é só trocadilho.
Folha – ?Só? por que, Millôr? (pergunta sugerida pelo entrevistado)
Millôr – O trocadilho não é ?a mais baixa forma de humor?, como querem trocadilhistas idiotas. Cristo, que possuía a graça divina, fez a base de sua igreja com um trocadilho: ?Pedro, tu és pedra, e sobre ti edificarei a minha igreja?.
Folha – Existe algum fabulador vivo que você considere fabuloso? Dos que não confabulam mais, Esopo, La Fontaine ou até Italo Calvino, quem é mais de seu agrado?
Millôr – Somos 6 bilhões de seres humanos, todos mentindo e, portanto, fabulando. Não conheço Calvino. Esopo e La Fontaine hoje são, pra mim, tias velhas.
Folha – La Fontaine escreveu sobre Esopo: ?A leitura de suas obras espalha na alma, sem que se sinta, as sementes da virtude, ensinando-nos a nos conhecer sem que disto nos apercebamos, crendo até que estejamos fazendo outra coisa inteiramente diversa?. Você acha que suas fábulas ensinam o autoconhecimento sem que disso se aperceba o leitor?
Millôr – Virtude? Eu, hein? Tias velhas, eu já disse. O único autoconhecimento que conheço é o das escolas de motoristas.
Folha – Existe fábula sem a moral?
Millôr – Sem moral não há fabula. Explícita ou implícita. As minhas são devidamente incorretas. Sempre foram assim porque eu sou absolutamente correto. Se é que você me entende.
Folha – Com o que é mais difícil fazer uma fábula: animais, personagens da mitologia, políticos…?
Millôr – Nada é mais difícil. Dificuldade de escrever é coisa pra quem não sabe escrever. Ou melhor, frescura. Difícil é traduzir o ?cockney? de (Bernard) Shaw, botar em português compreensível, mas em linguagem que o público sinta como ?cockney?.
Folha – Por que suas fábulas são em maior parte em terra estrangeira, sempre ambientados entre chineses, árabes, tibetanos…?
Millôr – Estranheza. Efeito. Mas não é intencional. É instintivo.
Folha – Você usa enredos de fábulas alheias para construir as suas ou você é sua própria galinha dos ovos de ouro? Você recicla fábulas suas mesmo em outras fábulas?
Millôr – Vale tudo. Fábulas já existentes, fatos ?fabulosos?, piadas. É evidente que tudo tem que ser feito com aquilo que se chama qualidade ?literária?. Enfim, tudo vale a pena quando a alma é pequena, como diria um cafajeste.
Folha – O repórter Jayson Blair, do ?New York Times?, fez um estardalhaço quando disse recentemente que inventava boa parte de seus textos. Em seus tempos de Redação você fazia fábulas desse tipo?
Millôr – Não. E não vou falar do conluio já denunciado racista ao contrário dentro do ?Times? porque nós todos sabemos que não existe nenhum negro desonesto.
Folha – La Fontaine, inimigo do violento Luís 14, criou um fabulário em que muitas vezes a coisa terminava com a paz, inclusive entre animais inimigos. As suas fábulas não são propriamente pacifistas. Suas alegorias são impermeáveis ao dia-a-dia turbulento do Rio?
Millôr – Vou te responder estranhamente: vivo na melhor época da história da humanidade.
Folha – La Fontaine aproximou-se na velhice da Igreja, renegou seus contos e se voltou às penitências. Você tem algum plano parecido?
Millôr – Meu destino não passa pelo poder, pela religião, por qualquer dessas entidades idiotas. Meu script é original, fui eu quem fiz. Por isso eu não morro no fim.
Folha – Que é que você anda fazendo atualmente?
Millôr – Existindo.
Folha – Qual a moral desta entrevista ?fabulosa??
Millôr – Eu sou indecentemente feliz.
(100 FÁBULAS FABULOSAS. Autor: Millôr Fernandes. Editora: Record. Quanto: R$ 28 (216 págs.))”
JÔ SOARES
“Nas graças do GORDO”, copyright Folha de S. Paulo, 15/6/03
“Há quase 15 anos no comando de um ?talk show? diário na televisão, Jôocirc; Soares, 65, anda preocupado com as coisas que o cercam. ?Comprei uma lava-louças e no manual vinha escrito: ?Quando for necessário repor o líquido secante, ficará óbvio?. Óbvio como? E, aliás, como um líquido pode ser secante??
Sacadas como essa, tiradas do dia-a-dia e armazenadas há anos em seu computador, são a matéria-prima de ?Na Mira do Gordo?, espetáculo de um homem só que Jô estréia nesta sexta no Tom Brasil – Nações Unidas. ?Sou produtor, diretor, escritor e ator. Só não sou bilheteiro porque não entro na cabine?, diz.
Negando-se a adiantar qualquer piada, Jô não quis contar nem aquela que envolve Lula.
Mas revelou que fica nervoso com a estréia (?A boca fica seca, vou colocar uma água no palco?), que tem pesadelos de ator (?Sonho que vou entrar em cena e esqueci o texto?) e que não volta a fazer os personagens que marcaram a TV brasileira nos anos 70 e 80 (?Esgotou?).
Abaixo, trechos da entrevista que Jô concedeu na quinta-feira, na biblioteca de sua casa.
Folha – Em seu novo show teatral há quadros como o homem no avião, o homem no supermercado etc. Mas, Jô, você frequenta supermercados?
Jô Soares- Vou! É claro que eu vou a supermercados (risos). Aqui no Brasil eu vou menos. Mas costumo brincar que supermercado no Brasil é muito melhor que nos Estados Unidos. Aqui as pessoas me vêem e já trazem os produtos. ?Leva isso aqui, Jô. O que mais você quer??
Folha – Como é esse seu novo espetáculo?
Jô – A idéia é falar do homem e das coisas que o cercam, mas sempre o atrapalham. Como, por exemplo, o videoclube. Nunca tem o filme que a gente quer; é um muro das lamentações.
Folha – Como as piadas chegam? Quando você anda na rua, todo mundo te conta a última?
Jô – Nem sempre. Às vezes, sim. E eventualmente são aproveitadas. Eu conheço muitas piadas, mas acontecem coisas curiosas. Entrevistei o pessoal do Grupo Tapa essa semana e um deles contou umas seis piadas. Eu não conhecia nenhuma! Veja como é impressionante o número de piadas que circula pelo mundo.
Folha – Mas você deveria conhecer todas? Quantas você sabe?
Jô – Ihhh… Muitas.
Folha – Mil? Duas mil?
Jô – Ah, não. Muito mais.
Folha – Dez mil?
Jô – Umas 30 mil ou 40 mil.
Folha – De cabeça?
Jô – O nosso HD [disco que armazena informações no computador] é muito vasto. Por associação de idéias, quando alguém fala alguma coisa, esse gatilho vai buscar. Sabendo qual é o gancho, é difícil esquecer uma piada.
Folha – Então conta uma do show. Tem alguma do Lula?
Jô – Tem o desfecho de um número com ele.
Folha – Conta aí.
Jô – Ah, não posso. Ou, em vez de ir ao show, vão ficar lendo jornal em casa.
Folha – Mas tem política?
Jô – Uma visão geral sobre as coisas da política. E o show tem uma janela onde é permitido falar de atualidade.
Folha -Tem crítica ao governo?
Jô – Poderá eventualmente entrar. No momento, não tem.
Folha – Como você monta um show desses? A partir de um arquivo de piadas?
Jô – Em geral os números surgem da observação cotidiana. Por exemplo, há mais de cinco anos eu não escrevia um show novo. Mas tudo o que me passava pela cabeça eu sapecava para dentro do computador, numa pasta chamada ?show?. Quando escrevi tudo, fiquei com umas seis horas de leitura seguida.
Folha – E como diminuiu?
Jô – Primeiro faço uma depuração com meus assistentes de direção, Alexandre Régis e o Cássio Brasil. Aí cai para três horas. Depois reúno uma porção de amigos e distribuo papéis para eles darem notas para cada quadro. No começo ninguém quer dar nota. ?Tá tudo ótimo! Tá tudo ótimo!?, dizem. Mas aí eles começam a discutir entre si e eu percebo as preferências.
Folha – Você fez muitos personagens marcantes na TV, como o Capitão Gay ou o ?Vai pra casa, Padilha?. Não tem vontade de voltar a fazer algo assim?
Jô – Não, porque acho que tudo tem o seu tempo. Chega uma hora em que os personagens vão ficando com a mesma cara… É um esquema que, para mim, se esgotou. Já no meu programa atual, posso fazer qualquer coisa.
Folha – Você cansou?
Jô – Eu tenho que fazer com muito prazer, me divertindo. E hoje não me divertiria fazendo um programa com personagens.
Folha – Então não volta a fazer?
Jô – Não. Seria como dar um pulo para trás.
Folha – Qual daqueles personagens você prefere?
Jô – Tem alguns que eu percebo que eram absolutamente circunstanciais ao momento, como o paranóico que, quando ouvia uma palavra que ligasse com ditadura, falava ?Não me comprometa!?. Outros cabem em qualquer situação, como a cantora Norminha, a aeromoça medrosa, o Gardelon ou o dentista tarado, que eu adorava fazer. O ?Jornal do Gordo?, com o Paulo Silvino, um jornal para pessoas mais ou menos surdas… Enfim, esses que não têm época são os meus preferidos. Quando passo no telão do programa, a platéia se libera de rir. E quando passo esses vinculados a uma época, não rende tanto. As referências já ficaram lá para trás.
Folha – E após quase 15 anos fazendo ?talk show? não sente que o formato esgotou?
Jô – No momento, não. A cada ano temos uma porção de novidades. Desde cenários, as brincadeiras com o Alex, quadros como ?A Música Desconhecida?, antes teve o ?Piscou, Dançou?, o ?Momento da Fama?, o ?Sobe no Caixote?. De um bate-papo entre duas pessoas você não cansa nunca. O ser humano adora falar e ouvir. Para mim não tem melhor divertimento do que uma boa conversa. (NA MIRA DO GORDO. Texto, direção e interpretação: Jô Soares. Onde: Tom Brasil – Nações Unidas (r. Bragança Paulista, 1.281, tel. 0/xx/11/5644-9800). Quando: sex. e sáb., às 22h; dom., às 20h. Quanto: de R$ 30 a R$ 60. Estac. c/ manob. (R$ 15).)”
CONY EM DOSE DUPLA
“Quase uma obsessão”, copyright Jornal do Brasil, 14/06/03
“O título esperto que o jornalista Cícero Sandroni criou para sua minibiografia de Carlos Heitor Cony, Quase Cony, tem duas vantagens: remete a um dos livros mais famosos do escritor, Quase memória/quase romance, e de quebra o livra da obrigação de escrever um perfil definitivo do escritor brasileiro que talvez mais tenha exposto sua vida aos leitores, em entrevistas, crônicas de jornal e nos próprios livros. E que, afinal de contas, está bem vivo e produtivo em seus 77 anos de vida atribulada. Ou alguém pensa que é fácil passar incólume por seis casamentos, igual número de prisões e quantidade ainda maior de romances?
Numa prova de que ele está longe de aposentar as chuteiras, Quase Cony, um dos três títulos da nova fornada da Coleção Perfis do Rio (os outros são Paquetá, de Maria Lúcia Dahl e Cláudio Bojunga e Malandros, de Luiz Noronha), está sendo lançado praticamente ao mesmo tempo que o novo romance do perfilado, A tarde da sua ausência, título, por sinal, também muito feliz.
Deixando de lado idéias não tão boas (Sandroni estava inicialmente dividido entre O antropófago sem afago e Memórias de um anarquista quase inofensivo), o autor de Quase Cony chegou à conclusão de que seria impossível esgotar seu assunto. E olha que o próprio Cony vem tentando isso há décadas, em crônicas que não fogem de questões íntimas (como seu amor por sua cadela Mila), livros (como Informação ao crucificado, em que descreve a juventude passada num seminário); entrevistas (um esboço de perfil já foi realizado na série Cadernos de Literatura, do Instituto Moreira Sales) e palestras por todo o Brasil (é um dos escritores mais convidados para participar de eventos literários).
?Sem querer amolar o leitor, devo dizer também que quando comecei este trabalho me perguntei: o que poderia eu escrever sobre Cony que já não foi escrito? Certamente nada. Aquela história do não há nada de novo … E se eu fizesse uma entrevista que descesse ao fundo do poço de sua alma (fundo do poço da sua alma! vá ser subliterato assim em Brás de Pina!) ainda assim, prenhe de beletrismo, eu não traria de lá alguma coisa nova ou que valesse a pena, primeiro porque não sou bom entrevistador, e não me agrada descer ao fundo do poço da alma de ninguém; segundo porque não sei o que mais perguntaria, o homem já respondeu tudo e mais alguma coisa; terceiro porque nós dois, o Cony e eu, com o tempo que temos de janela na profissão, sabemos que muita coisa perguntada e outras tantas que se respondem fazem parte de um jogo de cartas marcadas em que o iludido acaba sendo o leitor?, admite Sandroni, num texto saborosíssimo.
A partir desse impasse, o quase biógrafo opta por cavar, nos romances, extratos autobiográficos que expliquem a personalidade enigmática de Cony. Por exemplo, o ?tom depreciativo e cético? que não raro aplica a si mesmo. Cícero indaga o que leva um sujeito que saiu do anonimato e se tornou, já no primeiro romance, sucesso de público e crítica, além de ser até hoje um dos jornalistas mais importantes do país, a ?esta autoflagelação intelectual sem precedentes na literatura brasileira?.
Otto Maria Carpeaux já tinha intuído esse mesmo desencanto no prefácio de Antes, o verão, que cairia como uma luva neste A tarde de sua ausência, publicado quase 40 anos depois: ?A imagem da vida e do homem nos primeiros romances de Carlos Heitor Cony admite só um adjetivo: desconsolada. Seu pequeno mundo carioca e o mundo menor, da família – em que suas criaturas ficam presas como feras em jaulas – revelam-lhe a desgraça universal.?
A partir de uma história que nas mãos de um Nelson Rodrigues renderia uma tragédia – a obsessão de um homem pela cunhada adolescente -, Cony retrata em A tarde de sua ausência a decadência de uma família que emergente dos anos 60. Uma simples foto faz com que puxe o fio da meada de lembranças guardadas no fundo da memória. Mas a história, quando parece chegar ao fim, surpreendentemente volta ao começo. Como numa obsessão.”