Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Luís Costa Pinto e Patrícia Cerqueira

MÁRIO COVAS

"A guerra de Covas", copyright Época, 15/01/01

"Quando recebeu o infectologista David Uip para almoçar, no dia 15, o governador de São Paulo esperava obter informações que lhe permitissem transmitir boas novas aos repórteres de plantão no Palácio dos Bandeirantes. Profissionais acampados na sede do governo vinham fustigando assessores de Mário Covas em busca de confirmação da versão inquietante: no dia 12 de janeiro, um exame detectara células cancerosas no cérebro do governador. Uip sempre esteve autorizado, tanto pelo paciente quanto pela família, a revelar em detalhes os diagnósticos.

O médico, contudo, trazia péssimas notícias: – Mais de 90% das células do liquor são cancerosas – disse Uip a Covas. – Não esperávamos por isso – acrescentou. (Liquor é o fluido que preenche a meninge, membrana que envolve o cérebro e a medula)

O governador emocionou-se. Os olhos ficaram injetados, uma expressão de surpresa turvou a face do homem de 70 anos de idade que desde dezembro de 1998 vem lutando contra o câncer. – Conte-me tudo – pediu. – É grave – atendeu-o o médico. – O senhor vai ter de voltar ao tratamento. A evolução da doença, nessa situação, é muito dolorosa. Em seguida, Uip informou ao governador que a quimioterapia e eventuais sessões de radioterapia configuram a estratégia recomendável para o caso. Na sala também estavam sua mulher, Lila, e os filhos, Renata e Mário Covas Neto, o Zuzinha. – Tudo bem, vou me tratar – concordou Covas. – Mas me dêem uma semana antes de parar. Preciso desse tempo para fazer tudo o que quiser, sem você me ligar, sem vir aqui, sem encher o meu saco – disse, impondo as condições com um sorriso tristonho. – Vou fazer as coisas de que mais gosto. Vou inaugurar obras, governar, falar com as pessoas na rua. Vou viver.

Uip acatou a decisão. Dois dias antes, num encontro reservado com Renata e Zuzinha, ele expusera minuciosamente, com inteira franqueza, os problemas de Covas. Renata assumiu o comando da família ao constatar o cansaço da mãe, que declarou não suportar a contemplação do calvário do marido. Ela cumpriu o penoso dever dos filhos que assistem ao sofrimento dos pais em doenças tão cruéis: pediu a Uip rapidez e brevidade para adotar soluções que pudessem amenizar a dor.

Na madrugada do dia 18, o câncer avisou a Mário Covas que ele já não era o senhor de seu tempo. Por volta de 1h30 da madrugada, o governador acordou. Decidido a não incomodar Lila, tentou caminhar sozinho até o banheiro. Caiu, cortou o rosto e fraturou um dedo. Tinha as pernas inchadas em razão dos efeitos colaterais de medicamentos à base de corticóides que ingere para debelar a impenitente dor de cabeça constante. Essa dor, aliás, foi o sinal de alerta que conduziu à descoberta de células cancerosas na meninge.

Lila despertou com a queda. Covas queixou-se da pressão que sentia no crânio. Confessou que estava atravessando a pior noite dos últimos dois anos. Ninguém mais dormiria no Palácio de Verão do governo de São Paulo, no Horto Florestal. Às 7 horas da manhã, chegou David Uip. O médico insistiu: o governador deveria ser imediatamente internado.

– Só assim as dores vão parar – reiterou. – O tratamento é duro, não sabemos que resultado dará, mas é o máximo a ser feito. – Tenho agenda a cumprir, inaugurações a fazer – teimou Covas. – Não serei internado hoje de jeito nenhum.

A família e o médico submeteram o governador, em coro, a um sermão exemplar. Lembraram que a opinião pública clamava que esquecesse a administração do Estado para cuidar da própria saúde. Resumiram-lhe o teor de textos publicados pela imprensa sugerindo que se poupasse e poupasse o país da angustiante contemplação do guerreiro disposto a imolar-se. – Não vou, não posso – protestou.

Foi. Uip, os filhos de Covas e um tenente da Polícia Militar colocaram o governador de São Paulo num helicóptero que o levou ao Instituto do Coração (Incor). Começava a etapa final da corajosa luta contra o câncer iniciada há dois anos. Nesse período, a doença obrigou-o a extirpar a bexiga, ressurgiu no intestino e agora se localiza no líquido que corre entre a membrana que reveste o cérebro e a medula.

Não é difícil entender por que Mário Covas Jr., que cruzou a fronteira da vida pública em 1956, ao tornar-se por concurso engenheiro da prefeitura de Santos, relutou tanto em abandonar o gabinete de onde comanda o Estado. Em 1995, quando assumiu o governo, herdou um rombo monumental. Em 1994, São Paulo precisara de um empréstimo de R$ 7,4 bilhões para fechar as contas. O Banespa, banco estadual, estava sob intervenção federal. A folha de pagamentos consumia 90% da arrecadação líquida de impostos na mais rica unidade da federação. Por todo o Estado, 14 esqueletos de hospitais inacabados denunciavam a paralisação de obras essenciais por falta de verbas. Na Rodovia Carvalho Pinto, que liga a capital ao litoral norte, dois túneis ameaçavam desabar em conseqüência de erros de cálculo e de uso de material de terceira categoria – pago, claro, a preços de primeira. Nas delegacias, viaturas policiais estavam impedidas de circular, ora por falta de combustível, ora pela ausência de pneus. Em muitas secretarias não existia um só computador. Na maioria delas, a burocracia exigia que relatórios fossem confeccionados com cópias feitas com papel-carbono e arquivos eletrônicos não eram reconhecidos. ?Herdamos uma administração do século passado?, lembra Yoshiaki Nakano, secretário da Fazenda desde janeiro de 1995 até a semana passada, quando deixou o cargo para levar adiante a carreira de professor da Fundação Getúlio Vargas e de consultor do Banco Mundial. Os seis anos de comando de Covas mudaram São Paulo.

Em 1996, chegou-se ao equilíbrio entre receita e despesa. Há três anos, enfim, o governo vem comemorando superávits. Em 2000, as contas fecharam no azul – com sobra de R$ 2,1 bilhões. Até janeiro de 2003, R$ 4,7 bilhões estarão disponíveis para investimentos, conclusão de obras e início de novos projetos. O custo do equilíbrio foi considerável: 180 mil funcionários públicos, por exemplo, perderam o emprego. Em contrapartida, hoje funcionam 11 dos 14 hospitais cujas obras estavam paralisadas, e os três restantes ficarão prontos até dezembro. Todas as áreas administrativas estão ligadas à internet, os memorandos circulam pela rede mundial de computadores e o pagamento de impostos tem de ser processado eletronicamente. O Diário Oficial é eletrônico. Os túneis da Carvalho Pinto foram consertados. O Rodoanel, rodovia circular que interligará as saídas da Grande São Paulo e desafogará o trânsito da maior metrópole do país, avança, com 75% das contas pagas pelo Tesouro paulista. A Castello Branco, um dos maiores gargalos viários de São Paulo no trecho que liga o Centro da capital ao condomínio Alphaville, está sendo duplicada. Inaugurar essa obra em 25 de janeiro, dia do aniversário da cidade de São Paulo, seria o ponto de inflexão do calendário administrativo de Covas, que então se entregaria aos médicos. Mas o câncer não esperou.

O governador planejara tudo. No começo desta semana, conversaria com o vice, Geraldo Alckmin, para combinar com ele detalhes da interinidade. Em nome de Alckmin, solicitaria a colaboração de dois deputados do PSDB: Vanderlei Macris, presidente da Assembléia Legislativa, e Walter Feldman, que gostaria de ver no mesmo posto a partir de fevereiro. O objetivo das conversas seria assegurar a continuidade administrativa e a normalidade política nos dois meses em que, de acordo com seus cálculos, estará afastado do cargo para tratar do câncer. Covas também leva em conta a hipótese de não conseguir terminar o mandato, que chegará ao fim em janeiro de 2003. Em qualquer horizonte, pretende ter Geraldo Alckmin como candidato à sucessão. Caso assuma, só há uma possibilidade de Alckmin disputar a eleição de 2002 e vencer a batalha jurídica a ser travada contra aqueles que tentarão impugnar-lhe a candidatura: renunciar seis meses antes do pleito. Se cumprir esse roteiro, será substituído por Feldman, que o governador considera virtualmente eleito para o lugar hoje ocupado por Macris. Uma corrente de juristas sustenta que, mesmo com a renúncia, o vice seria inelegível.

Mário Covas não conseguiu expor com clareza seu projeto. Internou-se sem se licenciar do cargo. É possível que formalize o pedido de licença até o fim do mês. Ainda assim, na quinta-feira, antes de ser submetido à primeira sessão de quimioterapia nesta batalha decisiva da longa guerra, acertou com Alckmin como seria a rotina administrativa do governo. O vice assume o comando do Estado, passa a despachar com os secretários, determina o que tem de ser feito e agenda despachos com o chefe. Quando for indispensável a assinatura do titular, Alckmin levará os documentos ao leito do hospital ou à casa do governador. Essa regra só será alterada caso Mário Covas se declare impedido de cumpri-la. Os médicos que o acompanham lhe pediram que fizesse isso. Ele se recusou a atendê-los.

– Eu ainda vou vencer esse câncer, vocês verão – comunicou. – Se eu me sentir mal, anuncio. O tratamento é demorado. Na sessão quimioterápica do dia 18 foram retirados 5 mililitros de liquor do corpo do governador e injetados 10 mililitros do medicamento Metotrexate. A anestesia geral foi necessária. A terapia amenizou de modo notável a dor de cabeça intermitente, mas provocou efeitos colaterais. A taxa de glicose do paciente subiu e o nível de potássio no sangue desceu a índices preocupantes. Suas pernas incharam. Nesta semana, o tratamento deverá ser repetido três vezes. Se Covas suportar o ritmo intenso, ainda deverá ser levado ao Hospital das Clínicas, localizado na frente do Incor, para sessões radioterápicas.

A coragem com que Covas reage aos ataques da dor provocada pelas células cancerosas incubadas em seu organismo não é só comovente. É edificante. Não é por vaidade ou por medo de perder dividendos eleitorais que o político enfermo reluta em se entregar à doença. É por espírito público. Há pouco mais de dois anos, informado do câncer, ordenou à equipe médica e à família que lidassem com a doença de maneira transparente. Desde então, recusa-se a abandonar o posto para o qual foi eleito em 1994 e reeleito em 1998. Só aceitará a retirada quando a luta se tornar inútil e a rendição se impuser. Ao expor a própria agonia, demonstrando plena consciência dos limites de tal exposição, o governador dá lições de persistência e otimismo que enriquecem e iluminam uma biografia. (Colaboraram Carolina Juliano, Helô Reinert e Bruno Weis)"

"Sofrimento anunciado", copyright Época, ed. 140, 15/01/01

"Poucas vezes um político expôs a luta pessoal contra uma doença grave de modo tão escancarado como fez o governador Mário Covas. Um raro antecedente está no caso do ex-ministro da Fazenda Dilson Funaro (1933-1989), artífice do Plano Cruzado. Em 1986, ele enfrentou a reincidência de um câncer linfático no exercício do cargo. O comportamento-padrão na política brasileira é outro. Em 1985, o presidente eleito Tancredo Neves morreria sem assumir o cargo, após um calvário de 38 dias. Fora submetido na véspera da posse a uma cirurgia para extirpar uma suposta diverticulite. Era um tumor no intestino, que ocultara durante meses.

A transparência de Covas permeia um longo histórico de internações. Teve início em 1986, quando era candidato a senador e sofreu um enfarte. A cirurgia cardíaca não despertou o interesse de agora, mas foi divulgada abertamente. A mesma estratégia – tratar tudo às claras – foi novamente utilizada quando se descobriu, em novembro de 1998, um tumor maligno na bexiga. A gravidade da doença foi apresentada sem eufemismos. Tratava-se de um câncer altamente agressivo, com 70% de probabilidade de voltar a atacar mortalmente o organismo. Mas havia esperança: o nódulo estava restrito à bexiga. Com a remoção do órgão, manteve-se a possibilidade de cura, o que encheu o governador de otimismo e tornou mais leve o trabalho dos médicos na divulgação da doença e dos tratamentos.

A disposição de lutar publicamente produziu episódios contristadores desde que a moléstia ressurgiu, em novembro. A erosão física do paciente, que continuou a participar de atividades oficiais, ampliou a demanda de informações sobre seu estado. Os médicos que o atendem acabaram falando mais que o planejado. ?Em princípio, não acho certo esconder o estado de saúde de uma pessoa pública, mas me recuso a expor minúcias da vida privada?, pondera o gastroenterologista Raul Cutait, da equipe médica. Cutait acredita que os médicos devem abster-se de revelar intimidades – por exemplo, os momentos em que o paciente sentiu dor, chorou ou caiu. No caso de Covas, isso não dependia da vontade dos especialistas. Ele chorou em público, não camuflou expressões de dor e, numa cerimônia oficial realizada no dia 17, precisou ser amparado por assessores para não cair.

Manuais de ética informam que a relação entre médico e paciente é protegida por sigilo. Quando o doente é um homem público, a saúde torna-se assunto de interesse coletivo. Nos Estados Unidos, os presidentes submetem-se a exames anuais, cujos resultados são apresentados à sociedade. Na semana passada, soube-se que Bill Clinton teve um tipo de tumor de pele sem gravidade. O ex-presidente Ronald Reagan enfrentou abertamente um câncer no intestino e ajudou a diminuir o estigma da doença. Num exemplo oposto, o presidente François Mitterrand governou a França por 14 anos escondendo a metástase de um tumor de próstata. Nos obituários dos jornais franceses, morrer de câncer ainda é um tabu inviolável. A causa de morte é a genérica ?longa enfermidade?.

A equipe médica de Covas cometeu deslizes. No dia 22 de novembro, o governador submeteu-se a uma cirurgia para remover tumores no reto e no intestino. Em entrevista concedida depois da operação, os cirurgiões deixaram escapar uma palavra que não havia ressoado nos ouvidos do paciente: metástase. Temido pelas vítimas da doença, o termo designa o momento em que o câncer, até então restrito, lança sementes na corrente sanguínea e invade outras regiões do corpo. Covas sabia o que os médicos haviam encontrado. Mas ficou chocado ao ler a palavra nos jornais.

Outra confusão aconteceu no dia 15. O boletim que anunciaria a metástase no cérebro devia ser divulgado à tarde. A notícia vazou de manhã, quando o governador participava de um compromisso oficial. Ele soube do que ocorrera pelos jornalistas. Só estaria com os médicos na hora do almoço. Depois do incidente, a equipe tentou evitar mais uma entrevista coletiva. Rendeu-se por insistência do paciente. ?O que o senhor quer que eu conte??, indagou o oncologista Ricardo Brentani. ?Fale o que o senhor acha que deve falar?, respondeu Covas. ?Não quero falar nada. O boletim já diz tudo?, retrucou Brentani.

David Uip, médico particular de Covas há 15 anos, recebeu críticas pela forma atabalhoada que marcou a divulgação de algumas informações. ?Sempre me limitei a falar o que foi autorizado pelo governador?, defende-se. Depois da cirurgia realizada em novembro, os médicos sabiam que as sementes de metástase poderiam dar origem a outros tumores. Tentaram um novo tratamento, a imunoterapia, técnica experimental para estimular o organismo a reagir ao câncer. Há duas semanas, o governador recebeu as primeiras doses das drogas. Em seguida, ele apresentou dores de cabeça, dificuldades de fala e de locomoção. Não eram efeitos do remédio, mas sintomas de uma rara forma de metástase – a carcinomatose meníngea. O mal ataca menos de 1% dos pacientes que tiveram tumor de bexiga.

Células cancerosas proliferaram em grande quantidade na meninge, membrana que reveste o cérebro e a medula espinhal. Essas células flutuam no liquor, líquido que preenche a meninge. O crescimento das células pode entupir minúsculas aberturas da membrana. Com a obstrução, o liquor se acumula em cavidades e passa a pressionar o cérebro. No caso de Covas, afetou-lhe a capacidade de se expressar e travou-lhe os passos. A doença provoca ainda a falência gradual do cérebro. A depender das regiões afetadas, o paciente pode ter lapsos de memória, problemas motores ou convulsões.

Na manhã da quinta-feira, Covas internou-se no Instituto do Coração e antecipou o início de um novo tratamento quimioterápico. O medicamento, injetado na meninge por meio de uma agulha, é o Metotrexate. Busca deter a proliferação das células malignas e aliviar a pressão no cérebro. Como é aplicado diretamente na região atingida, não provoca efeitos como queda de cabelo e enjôos, típicos da quimioterapia tradicional. A literatura médica informa que o tratamento raramente consegue produzir períodos de sobrevida superiores a um ano. Se Covas reagir a contento, terá ao menos a chance de cumprir sua sina de guerreiro sem sentir tantas dores.

Eles enfrentaram a doença abertamente

Abatido pelo câncer, o senador alagoano Teotônio Vilela (1917-1983) dedicou os últimos meses de vida a uma peregrinação pelo país em defesa de teses democráticas e nacionalistas

O secretário de Estado americano John Foster Dulles (1888-1959) enfrentou o câncer durante três anos, sem deixar o poder. Só renunciou ao cargo 40 dias antes de morrer

O antropólogo e senador Darcy Ribeiro (1922-1997) rebelou-se contra o câncer e fugiu da UTI de um hospital para terminar de escrever um livro, em 1994. A doença o mataria três anos depois

Eles esconderam os problemas de saúde

O presidente eleito Tancredo Neves (1910-1985) tinha um tumor no intestino, mas não procurou ajuda. Planejava ser operado só depois de tomar posse. Morreu de infecção generalizada, ao fim de sete cirurgias, sem chegar ao Planalto

O ministro da Justiça Petrônio Portella (1922-1980) sofreu um enfarte no dia 4 de janeiro de 1980, mas convocou uma entrevista para afirmar que tivera uma gripe. Morreu dois dias depois

Juscelino Kubitschek (1902-1976) teve um enfarte em 1959, quando era presidente da República. Ficou um mês afastado, mas conseguiu esconder a doença, revelada anos mais tarde."

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