SALVE JORGE
"Jorge", copyright O Estado de S. Paulo, 10/8/01
"Eu devia ter uns três anos de idade e não me lembro de nada. A família já melhorara de vida, passara da fase que a minha mãe lembra como a fase dos caixotes – móveis improvisados feitos de embalagens de madeira – e ocupava um apartamento melhorzinho, grande o bastante para receber um hóspede, pelo menos um hóspede magro: Jorge Amado. Ele ficou alguns dias na nossa casa, escondido da polícia política. Minha irmã brincava de cabeleireira com seus cabelos, e ele inventou que eu não tinha cara de Luís Fernando, tinha cara de João. Até a última vez em que nos encontramos, me chamou de João. Não foram muitos os encontros. Ele fez mais algumas visitas a Porto Alegre – nunca mais como fugitivo -, a Lúcia e eu levamos nosso convite de casamento para ele e a Zélia no seu apartamento do Rio (minha intenção, confesso, era impressionar a noiva), eu fui visitá-los uma vez no apartamento do Marais, em Paris, depois participei das comemorações dos seus 80 anos, em Salvador, e conheci a casa do Rio Vermelho onde agora estão as suas cinzas.
Desde o seu rápido asilo conosco, ele e meu pai, Erico Verissimo, foram amigos, mas a amizade passou por alguma turbulência no final dos anos 40 e início dos 50, quando a questão do engajamento político dividiu os intelectuais do País. Meu pai contava uma cena dolorosa e cômica que se passara no banheiro de um quarto de hotel no Rio, ele dentro de uma banheira de água quente, tentando aliviar uma cólica renal e ao mesmo tempo convencer o Jorge, sentado num banquinho ao lado, que, com toda a sua simpatia pelo socialismo, não podia aceitar o dogmatismo comunista e o totalitarismo, e o amigo tentando convencê-lo da justificativa histórica do stalinismo. Mas continuaram se gostando e se admirando e acabaram se aproximando politicamente também, engajados no repúdio a qualquer sistema desumano.
Quando o lamentável Buzaid, então ministro da Justiça, ameaçou instaurar a censura prévia de livros no Brasil, os dois assinaram um manifesto conjunto contra a idéia que ajudou a matá-la no nascedouro. Eles mantiveram uma correspondência esparsa, mas afetuosa até a morte do meu pai. Depois disso, ele e a Zélia e minha mãe telefonavam-se freqüentemente – e as mensagens dele sempre incluíam ?lembranças para o João?.
Gosto de uma história que contou o pintor Calasans Neto, amigo de Jorge. A mãe do escritor comentou numa roda que, graças a Deus, seu filho nunca se envolvera em política. Depois de um instante de espanto silencioso, alguém disse: ?Mas dona Eulália, o Jorge foi deputado constituinte pelo Partido Comunista!? E dona Eulália: ?Ah, um partidinho de nada…?"
"Uma parte da Bahia imortalizada por Jorge Amado dominou a despedida de seu melhor cronista. E não necessariamente a melhor parte.Em quase 18 horas de adeus ? entre velório e cortejo ? faltou calor popular e sobrou rapapé político. Pelo salão encortinado do Palácio da Aclamação, na verdade um palacete que sediava o governo do Estado e hoje passa a maior parte do tempo fechado, passaram alguns Pedros Arcanjos, talvez uma ou outra Gabriela ou Teresa Batista de outrora e decididamente nenhum Capitão da Areia. Mas sobraram manda-chuvas típicos de ?Cacau? ou ?Terras do Sem Fim?, com o ex-senador Antonio Carlos Magalhães e o ex-presidente José Sarney se sobrepondo muitas vezes à família de Jorge e, especialmente, a uma dilacerada Zélia Gattai.
A escritora e os filhos, João Jorge e Paloma, pensaram em velar o escritor na Fundação Casa de Jorge Amado ou na Academia Baiana de Letras. Encarapitada na Ladeira do Pelourinho, a primeira seria a mais completa tradução de seu mundo ? perto dali, num hotel furreca, Jorge escreveu ?Suor? ? mas acabou sendo descartada por justas preocupações com segurança, já que o prédio não dispõe de um grande salão e tem acesso difícil. A segunda foi atropelada pelo cerimonial do governo César Borges, que montou câmara ardente, convocou escolta de gala de cadetes da Polícia Militar e providenciou garçons para passar água gelada e cafezinho. No centro do salão, o caixão e a área reservada à família e autoridades, muitas autoridades; numa extremidade, jornalistas de todo o Brasil e do exterior espremidos entre cordões e um tablado coberto por câmeras; cercando tudo, um corredor destinado à passagem da multidão de admiradores tão sinceros quanto menos numerosos do que se esperava.
Escritor queria ficar ?em casa?
?Jorge dizia que queria ficar em casa, não sair mais de lá?, disse Zélia, acentuando ainda mais o contraste entre a vontade do escritor e o aparato do velório ao explicar porque as cinzas do escritor deverão ser espalhadas sob a mangueira que fica no quinta do número 33 da Rua Alagoinhas, endereço da mítica ?Casa do Rio Vermelho?. ?Esse era um desejo desde que papai teve o primeiro enfarte, bem como o de não publicar nada incompleto, o que nós vamos cumprir?, completou Paloma.
?Ele foi um dos inventores da Bahia junto com Caymmi, Pierre Verger e Caribe, ele fez a Bahia ser diferente. Viemos fazer uma homenagem singela?, disse o advogado Maurício, 29 anos, que cresceu lendo os romances do escritor e foi à Aclamação com o amigo Amílcar, de 30, levar palmas brancas. Diante do caixão, foram socorridos por Paloma, que num dos raros momentos em que se afastou de Zélia, foi até o cordão de isolamento e convidou os dois a depositar as flores junto ao caixão.
Estudantes uniformizados de todas as idades também foram ao Palácio, alguns ostentando no peito tocantes medalhas de honra ao mérito e outros exibiam cartazes como o do curso de francês do Colégio Estadual da Bahia Central, que saudava o ?escritor baiano internacional?. Mas a maioria dos jovens não hesitava em confessar jamais ter lido um livro do escritor, conhecendo sua obra ?de ver? ? nas adaptações para o cinema e, principalmente, para a televisão.
Do Cinema Novo ao ?baianês?
Muito antes de Jorge virar novela de Aguinaldo Silva, um rapazote em Itaperuna, interior do Rio de Janeiro, intuiu que o lugar onde se passavam aquelas histórias e a linguagem em que elas eram contadas poderia ter ressonâncias em sua vida. Formado em engenharia, Nivaldo Lariú veio trabalhar em Salvador no início da década de 70. Aqui, recolheu palavras e expressões que formaram o seu ?Dicionário de baianês?, edição particular que em dez anos já passou dos 100 mil exemplares e foi devidamente aprovada por Jorge. ?Ele era muito generoso, me ligou para dar força ao dicionário. Tempos depois, Zélia me disse que já tinha comprado vários dicionários e mandado para tradutores que ficavam em dúvida com os livros de Jorge?, conta Lariú, que ganhou o título de cidadão soteropolitano e participa ativamente da vida cultural da cidade.
?Se você olhar direitinho, tem muito Jorge Amado em ?Rio Zona Norte?: a pobreza de meninos como os capitães da areia, a luta contra a discriminação e uma nuvenzinha vermelha que seria a Revolução?, lembrava o cineasta Nelson Pereira dos Santos enquanto acompanhava o cortejo em direção ao crematório, já dentro do cemitério Jardim da Saudade, mesmo lugar que Caetano Veloso escolheu para encontrar Zélia. A menos de duas horas de subir ao palco da Concha Acústica no show em que comemorou seus 59 anos e gravou o DVD ?Noites do norte?, o compositor baiano parecia assustado e se limitou a dizer que a morte era ?a conclusão de uma vida iluminada?. Ao lado de João Ubaldo Ribeiro e da atriz Maria Zilda Bethlem (vestindo uma inacreditável camiseta-propaganda do filme que produziu recentemente e que está estreando por aqui), o cantor e compositor foi um dos poucos artistas a se despedir pessoalmente do escritor.
Beija-mão
Na discreta cerimônia do adeus vivida hoje por Salvador ? a cidade teve um dia praticamente normal, em tudo e por tudo muito diferente da comoção vista na morte do deputado Luis Eduardo Magalhães, em 1998 ? os protagonistas não foram os colegas de ofício de Jorge e tampouco seus anônimos fãs. Desde o primeiro momento do velório, Antonio Carlos Magalhães distribuiu grandiloqüência: ?Minha dor é a dor da Bahia e do Brasil? ou ?Ele me estimulou a fazer coisas boas pela Bahia? foram frases repetidas pelo ex-senador, que de olhos úmidos confortava Zélia, dava entrevistas, abraçava adversários políticos como o deputado federal Fernando Gabeira e distribuía sorrisos, apertos de mãos e acenos para as pessoas que gritavam ?Volta!?, ?Você vai voltar!? e davam sentido literal ao beija-mão.
José Sarney, ex-colega da ACM no Senado, ex-presidente e escritor desembarcou no Palácio no início da tarde e foi direto ao caixão, curvando-se teatralmente sobre o corpo de Jorge para justamente beijar-lhe as mãos. Deixou o velório com Antonio Carlos e sua mulher Marly, para voltar, quase na hora do enterro, acompanhado pela filha Roseana, que é governadora do Maranhão, e por dona Arlete, esposa de ACM. ?Jorge Amado conseguiu eternizar um momento importante na vida brasileira, dar sentido à denúncia social?, disse o pai do Plano Cruzado, também citado, na boca do povo soteropolitano, com um governante ideal para o país.
Milagres do ateu
Seria, no entanto, impreciso e sobretudo injusto reduzir a despedida de Jorge Amado ao velório do PFL que quase acabou sendo – e no qual o presidente Fernando Henrique Cardoso preferiu ser representado pelo ministro da Cultura Francisco Weffort. O ateu que viu milagres, no dizer de Caetano Veloso, tocou fiéis de diversos credos, que nos últimos momentos do velório elevaram a voltagem emocional da cerimônia. Primeiro foi Marcos Sant?Anna, membro do Ile Axé Opô Afonjá, o terreiro mais antigo da Bahia, no qual Jorge ocupava o posto de Oba de Xangô ? com sua morte, o posto passa a Rodolpho Tourinho Neto, ex-ministro de Minas e Energia. Marcos cantou, a capela, ?Funeral de um rei nagô?, de Heckel Tavares. Depois dele, um outro admirador fez breve discurso e entoou, acompanhado por alguns presente, ?Glória, glória Aleluia?.
Profundamente tocante foi a entrada de 13 mulheres da Irmandade da Boa Morte. Criada há mais de 200 anos em Cachoeira, município a 135 quilômetros de Salvador, a ordem só aceita negros e mistura cristianismo e candomblé, tendo sido um dos principais redutos de resistência dos cultos afro-brasileiro em tempos de perseguição religiosa. Vestidas de preto e branco, cabeça coberta, elas rezaram e, depois de distribiur entre os mais próximos os lampadários em que carregavam velas acesas, realizaram o ritual da boa morte, levantando o caixão e embalando-o como bom agouro para a ?passagem?.
A combinação da cerimônia com a chegada de João Ubaldo e Dona Canô, mãe de Caetano Veloso e Maria Bethânia, e ainda a proximidade do momento de fechar o caixão levou Zélia Gattai ao desespero. Acompanhada de perto por Jodelson Andrade, médico que cuidava de Jorge e é amigo da família, ela passou o dia todo sem tomar calmantes e resistiu como pôde até o momento de se despedir do companheiro de quase 60 anos. Assustada com a bateria de flashes, em prantos, ela repetiu os afagos que fez durante todo o dia no rosto de Jorge e o beijou seguidamente, amparada por Paloma e João Jorge e pelos netos.
Quando o corpo do escritor foi carregado até o carro de bombeiros que o levaria ao cemitério, Zélia e a família haviam ficado para trás. À frente, as presenças oficiais, constrangidas, aguardavam a família. Foi aí, numa suprema confusão, que um homem de uns 30 e poucos anos fez a mais comovente despedida que se poderia ouvir. Ele, também Jorge, alisava o caixão e, como se falasse com um amigo, encorajava: ?Vai Jorge, vai meu irmão, meu xará, vai com Deus?."
"Para Jorge Amado, ficção e realidade se distanciavam por linhas tênues. De tão reais, seus personagens e cenários arrebataram leitores mundo afora e, quando necessário, eram defendidos pelo escritor. Não foi à toa que muitas vezes as críticas mais severas a seu trabalho eram recebidas como elogio: ?Uma vez quiseram diminuir minha obra dizendo que eu era o escritor dos vagabundos e das putas. Pois me senti lisonjeado?. São depoimentos como esse que João Moreira Salles gravou para o documentário ?Jorge Amado?. Feito sob encomenda para o Canal France 3 em 1994, o filme ganhou diversos prêmios internacionais e, no Brasil, será reprisado no sábado, às 21 horas, no canal por assinatura GNT.
Das quase cinco horas de depoimentos e cenas, apenas 43 minutos foram utilizados na versão final. no. teve acesso à transcrição das fitas originais. Nelas, Jorge Amado, na época com 82 anos, fala longamente de sua trajetória. Outros artistas e personalidades, como Chico Buarque, Gilberto Gil, João Ubaldo Ribeiro e Antônio Carlos Magalhães, além de vários anônimos, traçam o perfil de um escritor que viveu tão ligado aos costumes da Bahia quanto seus personagens.
Entrevistado por João Moreira Salles, Walter Salles e o assistente de direção Rudi Lagemann, o escritor conta sua trajetória desde a fuga de um internato. Há momentos divertidos, como no qual Jorge Amado descreve suas conversas com Dorival Caymmi sobre mulheres: ?Caymmi se hospedava comigo e a gente ficava na varanda vendo passar as mulheres e decidindo quais as que nós comeríamos e quais as que nós não comeríamos. Ficávamos admiradíssimos como havia mulher feia no mundo?.
Sobre política, Jorge Amado confessa ter se decepcionado completamente com o Partido Comunista ao perceber que ?seus integrantes torturavam tanto quando Hitler?. Em relação aos tempos atuais, o escritor deixa clara sua desilusão com a chamada esquerda brasileira: ?A esquerda no Brasil é uma coisa tão vaga e tão vasta que você só pode caracterizar uma posição de esquerda se tomar certas posições de direita. Os líderes de esquerda assumem valores que não têm nada em comum; em comum é a palavra ?esquerda? para dizer que você anda para este lado e não para a direita?.
Os intelectuais também não escapam às críticas: ?São umas porcarias, sabe? De esquerda ou de direita, e não há grandes diferenças entre eles, uns passam de um lado para o outro com a maior facilidade. A nossa intelectualidade é extremamente distante do povo, mesmo quando ela se diz progressista, mesmo quando ela se diz por vezes esquerdista e até radical?.
Tempos Modernos
Mesmo se derramando em elogios aos costumes baianos, Jorge Amado não se ilude quanto à existência de preconceito racial e aos estragos causados pelas influências externas: ?A Bahia dos meus livros é a de uns quarenta anos atrás. Certos hábitos já não são absolutamente idênticos. Nós sofremos uma influência terrível da falsa cultura ianque?. O exemplo que o escritor encontra para explicar as diferenças entre a Bahia de hoje e de ontem é, no mínimo, curioso: ?Você pegou numa mulher, passou a mão, já você tá querendo violá-la e essa coisa, ela vai para os tribunais pedir que você pague não sei quantos mil dólares. Nem pede cruzeiro, pede já em dólares. É a hipocrisia norte-americana, que nunca foi uma característica do nosso povo?.
Mas as mudanças nem sempre são completamente negativas. A invasão do turismo nas cerimônias do Candomblé, por exemplo, tem seu lado bom. ?O turismo corrompe. Hoje, o dinheiro tem uma certa importância na vida do candomblé, o dinheiro sempre corrompe. Mas, o fato de que o candomblé atrai o turista facilita que ele não seja perseguido?, analisa ele."