"O resgate do jornalismo", copyright Folha de S.Paulo, 2/10/01
"Os atentados terroristas nos EUA não apenas vão mudar a história do mundo como poderão se constituir em divisor de águas para a imprensa brasileira. O episódio permitiu à mídia impressa, em geral, uma das mais brilhantes coberturas da sua história. Um fenômeno intrincado, de interpretação complexa -a entrada em uma nova etapa da globalização- foi tratado de maneira exemplar.
Houve manifestações primárias de antiamericanismo -buscando álibis para os atentados- e, especialmente, de neoamericanismo -de atribuir a ira contra os EUA ao “modo de vida” americano, e não à sua política externa. Mas essas análises não se constituíram na tônica da cobertura. Ao contrário.
No geral, a cobertura foi de um pluralismo responsável a toda prova, especialmente na imprensa diária. Durante dias e dias os leitores receberam da mídia diária informações pontuais, mas, especialmente, análises provenientes das fontes mais diversas -meio acadêmico, governo, ONGs, seleção criteriosa de artigos publicados pela imprensa internacional. Era possível perceber um certo viés aqui ou ali, mas incapaz de comprometer a cobertura geral, independentemente da linha editorial de cada jornal.
Aliás, está ocorrendo um fenômeno curioso na mídia. Historicamente, os jornais se atinham à cobertura do factual diário. No final de semana as revistas semanais saíam com coberturas mais organizadas, porque utilizando o que de melhor a imprensa diária havia dado na semana, agregando suas próprias informações, e, especialmente, organizando esse todo de maneira lógica, sintética e mais bem editada.
Nos últimos anos ocorreu uma reviravolta nesse jogo. Graças aos novos recursos tecnológicos de edição e a uma melhor estruturação da cobertura os jornais diários passaram não só a cobrir o factual como a agregar capacidade analítica e de edição com o domínio competente dos infográficos e demais recursos. E ainda arrumar fôlego para grandes edições dominicais do tema, frequentemente de forma mais completa do que as revistas.
As lições da cobertura bem que poderiam se transformar em regras sagradas de bom jornalismo.
Primeiro ponto: fora o choque inevitável dos primeiros dias, a imprensa brasileira não cedeu ao emocionalismo fácil, embora, por ser plural, abrisse espaço para uma ou outra manifestação de catarse, como tem que ser.
Segundo ponto: na média, não se trataram nem o atentado nem os EUA como realidades simples. Do lado do terrorismo, ao longo da cobertura foi possível receber uma forte carga de informações sobre sua organização, seu papel no Afeganistão, as formas como assumiram o poder em muitas frentes etc. Do lado americano, houve a preocupação em não tratar o país como uma realidade única, vista de um ângulo maniqueísta: o país que todos invejam ou então o cruel imperialista. Com raras exceções, a mídia ofereceu artigos dos mais variados sobre a complexidade da sociedade americana, os embates internos, as tendências políticas etc.
Terceiro ponto: abriu-se debate amplo, permitindo a todas as linhas expor seu ponto de vista e, a partir daí, possibilitando sínteses importantes sobre os desdobramentos dos atentados.
Quarto ponto: houve um sentimento amplamente majoritário de defesa dos princípios jurídicos básicos, de respeito aos direitos individuais. Uma imprensa que comandou tantos massacres nos últimos anos, que disseminou tantas acusações sem prova, tantas Escolas Base, de repente parece ter superado o maniqueísmo para entender a causa dos direitos civis como nunca.
É possível que esse entusiasmo se esboroe na primeira cobertura de tema nacional de impacto. Mas a cobertura dos atentados resgatou o que a imprensa brasileira tem de melhor."