Saturday, 07 de September de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1304

Luís Nassif

CASO GALDINO

"Justiçamento e selvageria", copyright Folha de S. Paulo, 8/11/01

"O justiçamento &eaeacute; próprio de sociedades selvagens. Consiste em fazer justiça com as próprias mãos, em não diferenciar gradação de crimes, em condenar antecipadamente, inibindo toda forma de defesa.

A história está repleta de casos de justiçamento e linchamento. Ainda que o linchado seja réu confesso e impiedoso, o linchador não fica atrás. Ambos se equivalem. Muitas vezes o linchador é pior ainda, posto que sua força é uma brutalidade sem riscos, decorrente do amparo da maioria, protegido por um discurso pretensamente legalista. O pior linchador é o anônimo, o que estimula a vingança selvagem sem se expor, o que explora o sentimento de vingança para se impor perante os seus.

Tome-se o caso de Galdino, o índio pataxó. É possível que tenha sido assassinado com premeditação e requintes de crueldade. É possível que tenha sido vítima de uma brincadeira brutal, que resultou na sua morte. Ambos os casos são crimes, ambos merecem punição, mas de gradação diferente.

Só se vai avaliar corretamente a motivação dando o direito de defesa aos culpados, ouvindo os argumentos da defesa e da acusação, pesando a lógica de cada uma, os antecedentes dos envolvidos, os detalhes do crime.

Quando se mistura justiça com o fantástico show da mídia, essa defesa deixa de existir. Troca-se a análise isenta das provas pelo sensacionalismo e se criam unanimidades que atropelam toda norma de direito individual. Enfatizam-se todas as provas contra os réus, escondem-se ou minimizam-se todos os atenuantes. Expõem-se a dor e a revolta dos familiares da vítima, esconde-se a dor dos familiares dos culpados. Mães e pais desses rapazes são tão vítimas desse episódio quanto os pais do infeliz Galdino. Evita-se qualquer informação que possa ?humanizar? os culpados e se criam estereótipos que possam facilitar a unanimidade em torno do fato.

Em toda a cobertura desse episódio, lembro-me de apenas uma reportagem da revista ?Veja? falando dos bons antecedentes dos rapazes. Por que se sonega essa informação? Por que esse medo covarde de colocar todos os fatos na mesa? Medo de que a isenção possa ser confundida com a defesa do crime? Medo desse sentimento bestial, que torna o linchador tão parecido e às vezes pior que o criminoso que pretende linchar?

O fim da ditadura marcou o fim das unanimidades. Agora, o brasileiro só é solidário na Copa do Mundo e no linchamento. Qualquer tentativa de se contrapor a essa maioria selvagem é repelida, sob o argumento de que quem não advoga a pena capital advoga a impunidade.

Dos leitores

Recebo do leitor Petrônio Filho, de Brasília, o seguinte e-mail:

?A extravagante tese da acusação é que eles tinham a intenção de matar e cometeram um homicídio triplamente qualificado. Só pessoas muito sectárias podem acreditar que quatro jovens de vida pacata, com bons antecedentes, poderiam se tornar, de um minuto para outro, quatro psicopatas sádicos.

O linchamento da imprensa começou pela Rede Globo. O curioso é que um crime semelhante aconteceu em ?O Bem Amado?, a primeira novela colorida da TV Globo. O filho do prefeito Odorico Paraguaçu jogou álcool e tocou fogo em um mendigo que dormia na rua. A vítima teve queimaduras e foi tratada pelo médico, representado pelo ator Daniel Filho. Mas o mendigo não foi hospitalizado nem correu risco de vida.

A mesma brincadeira de mau gosto imaginada por Dias Gomes, autor da novela, foi posta em prática pelos quatro jovens, só que com consequências dez vezes mais graves. Se Dias Gomes, um escritor culto e bem-sucedido, se enganou sobre os efeitos do álcool no corpo humano, como não aceitar que quatro jovens ignorantes cometessem o mesmo erro?

Longe de mim sugerir que os jovens sejam absolvidos. Eles têm que pagar pelo que fizeram, como, aliás, estão pagando. Os três que eram maiores de idade estão há quatro anos e meio encarcerados. O que eu não aceito é que se aplique uma pena injusta para satisfazer a sede de sangue da imprensa local.

Quanto à tal promotora, que posa de perseguida, ela está agindo a favor da maré da opinião pública. Isso não requer tanta coragem assim. Não sei quais são seus motivos, mas o fato é que ela conseguiu seus 15 minutos de fama.

A única personagem que agiu com coragem e independência foi a juíza que tentou desclassificar a tese de homicídio intencional?.

 


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"A volta do linchamento", copyright Folha de S. Paulo, 7/11/01

"A cobertura do julgamento dos rapazes que assassinaram o índio Pataxó é vergonhosa e mostra descaso da imprensa com direitos individuais mínimos.

Tem-se um caso complexo pela frente. Os rapazes são culpados confessos. Discute-se o nível da culpa: se planejaram o assassinato ou se foram autores de uma brincadeira estúpida que resultou na morte do índio.

Ambas as hipóteses exigem punição, mas em graus diferentes. Há um conjunto de elementos a ser analisados para chegar ao veredicto final. Em todo julgamento -seja jurídico, seja de qualquer caso da vida real- há atenuantes e agravantes a ser pesados. Não existe o crime único passível da punição única. A severidade da punição deve ser proporcional, não apenas ao crime como à intenção de quem o cometeu. Se houve premeditação, a gravidade é uma. Se não houve, é outra. Se se pretendia cometer o crime ou se foi uma brincadeira estúpida, há diferenças.

O caso é complexo por várias razões. A primeira é a própria estupidez do ato em si. Há muitos casos de adolescentes que recorrem a essas agressões, que têm que ser severamente punidas, mas que não podem ser equiparadas a assassinatos premeditados.

A segunda razão é que os rapazes têm bons antecedentes. Nas reportagens publicadas à época, levantou-se a vida deles, mostrando que não tinham histórico de violência. É diferente da ?gangue do jiu-jítsu?, os jovens violentos que espancaram um rapaz até a morte, quebrando-o completamente. Praticaram a primeira agressão, avaliaram as consequências e prosseguiram no espancamento.

A melhor maneira de avaliar o grau de culpa dos rapazes é permitir ao júri analisar serenamente os argumentos da defesa e da acusação e ao juiz julgar sem pressões de lado a lado.

A mídia não tem permitido isso, apelando a um prejulgamento indecoroso. Quase todas as reportagens esmeram-se em mostrar os rapazes como ?filhinhos de papai?. Traça-se o perfil do primeiro, cuja mãe é casada com um juiz do Tribunal Superior Eleitoral. Fala-se do segundo, cujo pai é juiz de direito de primeira instância, como fosse um alto cargo de Judiciário. Sonega-se a informação de que o juiz em questão foi o primeiro a proferir uma sentença de reconhecimento de terras indígenas e se comportou com a maior dignidade durante todo esse período em que seu filho permaneceu preso. Do terceiro e do quarto rapazes não se fala nada, porque informar que os pais não fazem parte da ?elite? brasiliense seria comprometer a tese e a campanha de linchamento.

As reportagens esmeram-se em falar do drama real vivido pelos familiares do índio Galdino. Nenhuma linha sobre o drama vivido pelos familiares dos rapazes, cuja vida foi arrebentada por um ato estúpido que eles próprios cometeram. Esmeram-se em exagerar a importância dos pais dos meninos. Nenhuma linha sobre o papel de um dos pais em favor das causas indígenas. Por que isso? Por que não permitir que o leitor receba todas as informações e faça, ele próprio, seu julgamento? Qual o direito que tem o jornalista de julgar, ele próprio, o que deve chegar a seu leitor?

Fala-se de presumíveis pressões sofridas pela procuradora incumbida do caso, como se fossem pressões políticas, desferidas por poderosos. É possível que a procuradora se sentisse pressionada por pressões de ordem social, de seu meio, por sua obsessão em aplicar a pena máxima aos rapazes. Não há nenhuma informação objetiva de que as pressões fossem de ordem funcional. No entanto a cobertura que vem de Brasília insinua pressões de outra ordem, lembrando que a juíza Sandra de Santis é mulher do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), induzindo o leitor a acreditar que o caso Galdino estaria enfrentando a elite do Judiciário.

A maior pressão, o poder maior é o da mídia sufocando qualquer possibilidade de defesa. É o espírito de linchamento prevalecendo mais uma vez."

 


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"O que pensam os ?justiceiros?", copyright Folha de S. Paulo, 10/11/01

"Tenho recebido muitos e-mails a respeito das colunas dos últimos dias, defendendo um julgamento isento para os assassinos do índio Galdino. Qualquer leitura imparcial constatará que não estou advogando sua absolvição, mas o direito dos jurados de apreciar as provas serenamente, avaliar agravantes e atenuantes, sem se fiar nas versões parciais da mídia. E, depois disso, proferir a sentença, qualquer que seja ela.

O primeiro impulso do jornalista, nesses casos polêmicos, é publicar os e-mails de apoio -que têm sido vários, reconfortantes e equilibrados. Mas a parte mais interessante para entender esses processos de catarse são os e-mails contra, dos ?indignados?.

O que pensa uma pessoa que não aceita que um criminoso possa ter um julgamento isento? Contra quem ela deseja, de fato, investir para ser tomada de uma indignação quase irracional quando se depara, em meio à unanimidade de julgamentos, com uma só voz dissonante? É bom tema para cientistas e psicólogos sociais.

O leitor J.K. recorre a uma das versões mais correntes, de que os rapazes são filhos de ?figurões de Brasília?. Esse elemento está em praticamente todas as manifestações. ?Será que, se os jovens do caso Galdino não fossem filhos de figurões de Brasília, o senhor estaria tão empenhado em que a mídia os tratasse com ?neutralidade??? Fui o primeiro a defender as vítimas dos episódios Escola Base e bar Bodega, mas não vem ao caso.

Em muitos e-mails -como é o caso do leitor P.A.L.-, o sacrifício ritual dos rapazes permite malhar figurativamente o ?governo?. ?Governo?, na maioria dos casos, é visto como uma entidade abstrata, que sintetiza todas as mazelas do mundo, toda injustiça, toda opressão. Afinal, nenhum dos rapazes -nem seus pais- pertence ao ?governo? nem à chamada ?elite de Brasília?. Ao governo, pertence o presidente FHC, que -para vergonha do intelectual FHC- sancionou o linchamento.

Os defensores do direito absoluto das maiorias são, por definição, propensos ao autoritarismo. Alguns disfarçam, outros são bastante explícitos, como é o caso do leitor em questão: ?É revoltante que um jornal como a Folha abra seu espaço, por três dias seguidos, para um senhor chamado Luís Nassif fazer a apologia de quatro assassinos! (…) De minha parte espero uma posição da Folha a respeito desse episódio, uma vez que penso seriamente em suspender minha assinatura?.

Esse tipo de público não se prende muito a análises críticas de fatos. Busca a catarse, e alguns perdem o prumo quando acontece algo que atrapalhe essa celebração ritual. Em alguns casos, mais raros, os leitores não extravasam frustrações nem buscam outros inimigos na ?malhação dos Judas?, mas advogam simplesmente a lei de talião -o famoso ?olho por olho?, ultrapassado pelos processos judiciais modernos. É o caso do leitor G: ?Li seu artigo hoje e gostaria de lhe dizer que, segundo a Bíblia, aqui colhemos o que semeamos. Podemos (e devemos) perdoar nossos inimigos, como nos diz Jesus Cristo, mas Deus não vai deixar de puni-los?.

Esse sentimento -de que o processo judicial, o contraditório (ou seja, contrapor os fatos), é uma maneira de evitar a punição- está presente em boa parte dos e-mails, demonstrando o descrédito na Justiça. Diz o leitor C.: ?O ?coitadismo? não pode prevalecer sobre a idéia de Justiça. E será que o que você chama de linchamento não é simplesmente uma reação legítima diante da verdade incontroversa dos fatos apurados??. Mesmo sem ter consultado os autos, o leitor considera a verdade ?incontroversa?, inclusive acerca da motivação e dos antecedentes dos jovens, mostrando o excepcional poder de convencimento da mídia.

É evidente -e não poderia ser diferente- que no meio dos e-mails apareceriam os membros das torcidas organizadas de futebol. Como o leitor A.C.S., que mandou o e-mail todo em maiúsculas: ?LUIS NASSIF, CADA VEZ MAIS V. TORNA-SE UM JORNALISTA CHAPA-BRANCA. DEFENDEU A CPMF, ESTÁ DEFENDENDO ASSASSINOS FILHINHOS DE JUÍZES. AFINAL, QUEM LHE PAGA? A FOLHA DE SP, PARA UM JORNALISMO ISENTO, COERENTE, JUSTO, OU ALGUM PISTOLÃO DO GOVERNO FEDERAL??.

Fazer parte dessas maiorias autoritárias expõe seus membros a companhias desse naipe. No fundo, é apenas uma diferença de verniz."