Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Luz sobre Euclides da Cunha

ESCRITOR & JORNALISTA

Deonísio da Silva (*)

La vasta noche / no es outra cosa / que uma fragrancia.

Que esses versos de Jorge Luis Borges sirvam de metáfora para Os Sertões, caderno especial que O Estado de S. Paulo fez circular em sua edição de quarta-feira (31/7/02). A obra vulcânica do atormentado e infeliz Euclides da Cunha pôde ser contemplada em seu esplendor pelas frestas permitidas por somente oito páginas. Os caudalosos textos, escritos, entre outros, por Geraldo Mayrink e Manuela Pereira de Queiroz, são boa amostra de como coisas fundamentais podem ser ditas na imprensa, em se tratando de literatura, sem que os autores abdiquem da necessária conciliação entre rigor na pesquisa e leveza no modo de expressar os resultados. Leveza apenas? Não. Rapidez, também. E o vasto século que já repousa sobre o relato de Canudos pareceu pouco mais do que uma fragrância. Ah, mas que aroma!

Logo à pág. 2, Adriane Sene Egashira trouxe à lembrança as palavras do crítico José Veríssimo que passaram a nortear, a servir de mapa aos que comentaram o livro depois dele, que abriu o caminho. Com efeito, no dia seguinte à chegada de Os Sertões às livrarias, o célebre Correio da Manhã já trazia o juízo de Veríssimo sobre um calhamaço que viria a constituir-se em obra solar em nossas letras: “É um livro de um homem de ciência, um geólogo, um etnógrafo; um homem de pensamento, um filósofo, um sociólogo, um historiador; e de um homem de sentimento, um poeta, um romancista, um artista, que sabe ver e descrever”.

O crítico não exagerava. Araripe Júnior foi ainda mais entusiasta e achou-o incomparável: “Único no seu gênero”. E Sílvio Romero, que desancara até Machado de Assis, rendeu-se ao estreante: “Euclides da Cunha deitou-se obscuro e acordou célebre”.

Manuela Pereira de Queiroz chama a atenção para um domínio conexo de grande relevância: o filme Guerra de Canudos (1997), de Sérgio Rezende, épico de 160 minutos, que custou 6 milhões de reais. O cineasta, para quem o protagonista e o grande tema de Os Sertões é o povo e não o conflito, numa humildade rara em companheiros de ofício, resumiu assim a sua concepção: “Tudo aquilo é ainda um mistério”.

Lúcia Camargo ocupou-se num texto curto, porém esclarecedor, da minissérie Desejo, em que Ana de Assis, a mulher do escritor, é interpretada por Vera Fischer, dividida entre o amor (?) possessivo do marido (Tarcísio Meira) e o arrebatamento ensejado por uma das mais clássicas heresias da sexualidade, o adultério, que comete com o militar Dilermando (Guilherme Fontes), cujo duplo crime ? matou a Euclides e também ao filho que, ao crescer, tentou vingar o pai ? estarreceu a sociedade brasileira e ensangüentou nossas letras para sempre.

“Segundo Fulano”

O grande autor do caderno é, porém, Geraldo Mayrink. Sua abertura já dá bem as medias res em que envolverá o leitor. O autor da frase já lendária, dando conta de que “o sertanejo é antes de tudo um forte”, foi um fraco, diz Mayrink. Semelhando o que sugeriu Junqueira Freire, fez lenha para sua própria fogueira, pois se não tivesse levado a vida que levou, abandonando esposa e lar, provavelmente não teria erigido o monumento literário de que Os Sertões é obra capital, mas não a única.

Há décadas, todos os anos, pesquisadores debruçam-se sobre o autor e sua obra. Destacaram-se nesses trabalhos intelectuais de grande reputação, entre os quais Walnice Nogueira Galvão (No calor da hora: a guerra de Canudos) e Marco Antônio Villa (Canudos: o campo em chamas), sem contar o romance de Mário Vargas Llosa, A guerra do fim do mundo, este último, aliás, um aviso a escritores brasileiros que costumam desprezar as ligações perigosas que os romancistas podem manter com as sociedades epocais, procurando espelhar seus temas e problemas, atentos ao murmurar do povo, atitude que rendeu grandes obras em todas as literaturas, de Dante a Camões, de Cervantes a Dickens, de Balzac aos nossos Otávio de Faria, Jorge Amado, João Guimarães Rosa, Erico Verissimo e Benito Barreto, respeitadas as naturais idiossincrasias de cada um dos citados.

Em suma, seria o caso de perguntar se não há certa omissão de nossas letras frente às grandes lutas travadas pelo povo brasileiro a caminho de construir a sua redenção. Ou, vista a questão de outro modo, para que a saída não seja Paulo Coelho, é preciso que haja outras entradas.

É neste ponto que os artigos de Geraldo Mayrink engrandecem o Caderno e os nossos ensaios leves. Aqueles docentes que costumam confundir valores e méritos, tratando escritores fundamentais dos vários períodos literários como se fossem iguais, nas respectivas obras, àqueles que a mídia bafeja por razões extraliterárias, bem que poderiam tomar a leitura do suplemento como “deveres para casa”, “trabalho domiciliar”, vez que certa arrogância, infelizmente não muito rara nos campi, às vezes impede de prestar atenção à vida intelectual que vibra fora de teses, monografias, ensaios, painéis, simpósios, alguns dos quais, às vezes financiados pelo CNPq ou pelo-que-eu-não-sei-pra-quê, cumprem apenas a triste função de manter o compadrio dos pareceres, mas que, em sua esterilidade, amargam há décadas a escassez de boas interpretações de obras fundamentais de nossas letras.

Há sempre algumas surpresas no ensaio universitário que intenta
examinar nossa produção literária, mas infelizmente
a maioria, ou é ilegível, sendo publicada apenas para
untar as figuras que sofrem de curriculite, ou é legível,
mas não ousa dizer nada a não ser com apoios ou muletas
do tipo “segundo Fulano”, “de acordo com Sicrano” etc. E assim acabam
por dizer muito pouco além do que já sabíamos
pelas fontes consultadas. Aliás, se não houvesse orientadores
opressivos, teríamos vôos mais ousados de seus orientandos.

Detestado e adorado

Euclides da Cunha, aluno de Benjamin Constant nos anos de formação, queria ser poeta. Fazendo versos chegou à matemática. Um paradoxo. Mas não para ele. Engenheiro militar, viveu em várias cidades paulistas, como São José do Rio Pardo, onde escreveu Os Sertões, Descalvado e São Carlos. Hoje, não são poucas as que insistem em atestar indícios de sua passagem por suas antiguidades. Prefeituras organizam eventos, quase todas despreocupadas em formar intelectuais semelhantes a Euclides da Cunha. Semelhantes, porque à semelhança de Pelé e Garrincha no futebol, um Euclides demora séculos a ser gerado no seio da mãe gentil, a pátria amada Brasil, ao som do mar e à luz do céu profundo, buscando decifrar esses notáveis escuros que a condição humana vive nessas paragens.

Vivo ou morto, Euclides produziu polêmicas. Gerardo Mello Mourão, mesmo reconhecendo-lhe o talento, vislumbrado no barroco da linguagem, foi cruel: “O barroco euclidiano degenerou no rococó dos deslumbrados”. Darcy Ribeiro, ao recomendar a leitura de Os Sertões, sugeriu que os novatos pulassem a primeira parte, “A Terra”, mas, como nos explicava em suas aulas o querido professor Guilhermino César, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que fora professor de Darcy Ribeiro no curso ginasial, o futuro chefe da Casa Civil de João Goulart, fundador da Universidade de Brasília, grande antropólogo e inventivo romancista, era um rebelde de berço, um herético contumaz. O signatário não pode concordar com tal mutilação na obra euclidiana. E o jornalista Augusto Nunes, que dá especial atenção aos escritores brasileiros, lembra sempre nas conferências: “Ainda não completou sua alfabetização o jornalista jejuno de Euclides”.

Face às controvérsias, diz Mayrink: “Mas ele interpretava. Psicólogo das multidões, Euclides foi um mestre na descrição de seus movimentos e certamente por isto, na apresentação de um mundo desconhecido, o livro atraiu um vasto rebanho de curiosos nas cidades”. Na companhia dele, o professor Leopoldo M. Bernucci, professor universitário nos EUA, autor da edição comentada Os Sertões, campanha de Canudos: “O sentimento do leitor é de assombro e perplexidade. É detestado e adorado. Tem acertos e deslizes, mas não deixa ninguém indiferente”.

(*) Escritor e professor da UFSCar; seus livros mais recentes são De onde vêm as palavras e o romance Os guerreiros do campo