BRUXO DO COSME VELHO
Marcos Fabrício Lopes da Silva (*)
Gênero híbrido entre o jornalismo e a literatura, a crônica foi utilizada por Machado de Assis como meio para se comunicar com os seus leitores, durante a segunda metade do século 19. Ao longo de sua trajetória como jornalista, Machado de Assis escreveu sobre sua própria atividade, diagnosticando problemas e sugerindo soluções para uma adequada atuação da imprensa.
A crônica O jornal e o livro, de 10 e 12/1/1859, demarca a noção do jovem Machado em relação ao papel do jornalismo como formador de opinião e promotor da liberdade de expressão do homem comum:
O jornal é a verdadeira forma da república do pensamento. É a locomotiva intelectual, em viagem para mundos desconhecidos, é a literatura comum, universal, altamente democrática, reproduzida todos os dias, levando em si a frescura das idéias e fogo das convicções (grifo meu)
(…)
O jornal é a liberdade, é o povo, é a consciência, é a esperança, é o trabalho, é a civilização (Machado de Assis, 1997:945; 948). [As indicações de páginas das crônicas referem-se sempre a Machado de Assis, Obra completa, organização de Afrânio Coutinho, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, v. III.]
Instaura-se, nestas passagens, a pretensão de Machado em legitimar o campo jornalístico, posicionando-o como uma espécie de tribuna de idéias e ações do cidadão, cujo o papel é o de ouvir as pessoas, conhecer suas queixas, identificar suas carências reais e cobrar soluções dos dirigentes. Ora, isso só é possível quando o espírito crítico e a disposição para a ação se encontram suficientemente aguçados pelo jornalismo. Assim, Machado de Assis não deixa de escrever em suas crônicas situações em que o jornalismo praticado se distanciava dos pressupostos da “república do pensamento”. São momentos em que o cronista carioca lança provocações veementes sobre a relação entre o apetite do público pelo macabro e a intensa disposição do jornalismo em saciá-lo. Trata-se de uma crítica machadiana a forma sensacionalista de fazer jornalismo. Tal estratégia é praticada até os dias de hoje na nossa imprensa diária.
A pesquisadora Rosa Nívea Pedroso (1983) pontua como características marcantes do jornalismo sensacionalista:
Intensificação, exagero e heterogeneidade imagética; ambivalência lingüístico-semântica, que produz o efeito de informar através da não identificação imediata da mensagem; valorização da emoção em detrimento da informação; exploração do extraordinário e do vulgar, de forma espetacular e desproporcional; adequação discursiva ao status semiótico das classes subalternas; destaque de elementos insignificantes, ambíguos, supérfluos ou sugestivos; subtração de elementos importantes e acréscimo ou invenção de palavras ou fatos; valorização de conteúdos ou temáticas isoladas, com pouca probabilidade de desdobramento nas edições subseqüentes e sem contextualização político-econômico-social-cultural; discursividade repetitiva, fechada ou centrada em si mesma, ambígua, motivada, autoritária, despolitizadora, fragmentária, unidirecional, vertical, ambivalente, dissimulada, indefinida, substitutiva, deslizante, avaliativa; exposição do oculto, mas próximo; produção discursiva sempre trágica, erótica, violenta, ridícula, insólita, grotesca ou fantástica; (…) escamoteamento da questão do popular, apesar de pretenso engajamento com o universo social marginal; gramática discursiva fundamentada no desnivelamento sócio-econômico e sociocultural entre as classes hegemônicas e subalternas (Pedroso, 1983:114).
O fenômeno do fait divers (Barthes,1962) é o agente estrutural que sustenta a estratégia de sensacionalizar acontecimentos durante a produção da notícia. Entende-se por fait divers o termo francês que designa a notícia do dia (crimes, desastres, sexo, roubos, escândalos, monstruosidades, acontecimentos extraordinários), mostrada como um acontecimento “trivial simples”, com importância circunstancial.
Machado de Assis foi um crítico ferrenho da prática do sensacionalismo na imprensa. Na crônica de 14/3/1885, publicada na seção Balas de estalo, o cronista carioca afirma que o jornal torna-se co-autor da violência e da criminalidade ao transformá-las em espetáculo, oferecendo ao infrator uma certa notoriedade, um certo glamour motivado por um “erotismo de publicidade” produzido e promovido pela própria imprensa:
(…) Não é crível que tamanho número de pessoas se divirtam em rasgar o ventre alheio, só para fazer alguma coisa.(…)
Capoeira é homem. Um dos característicos do homem é viver com o seu tempo. Ora, o nosso tempo (nosso e do capoeira) padece de uma coisa que poderemos chamar ? erotismo de publicidade. (…)
(…) (O capoeira) Recorre à navalha, espalha facadas, certo de que os jornais darão notícias das suas façanhas e divulgarão os nomes de alguns (Machado de Assis, 1997:443-444).
Machado de Assis observa nos meandros da práxis jornalística uma cultura que espetaculariza, banaliza e naturaliza a violência. Percebe-se sem muito esforço que o meio sensacionalista sinaliza para uma pedagogia de medo que toma conta das formas de interação social. Ou seja: tal cultura acaba viabilizando a formação de indivíduos insensíveis, indiferentes e amedrontados. Opera-se, assim, um desinvestimento na idéia do outro como parceiro, como sujeito. O outro é um corpo estranho, um elemento, simplesmente um “outro”.
O pensamento crítico de Machado de Assis, na crônica em questão, aborda também a incapacidade do jornalismo, atrelado ao esquema sensacionalista, refletir sobre os seus próprios métodos de representação da realidade social. O cronista carioca se encarrega de noticiar o enigma implícito presente na imprensa, pois ao mesmo tempo em que ela é uma das grandes, senão a maior instituição capaz de mobilizar a sociedade para coibir a violência e a criminalidade, ela mesma não busca melhorar a sua qualidade editorial. Antes do processo de consolidação dos meios de comunicação de massa ocorrido no século 20, Machado de Assis ? atuando como cronista em um período de transição entre a imprensa política e a empresa jornalística (Abramo,1997) ? já revelava a importância do sensacionalismo como integrante que fundamenta o produto final da notícia.
(…) Embarco, desembarco, dou ou recebo um mimo, nasce-me um porco dom duas cabeças, qualquer caso desses pode muito bem figurar em letra redonda, que dá a vida a coisas muito menos interessantes. E, depois, o nome da gente, em letra redonda, tem outra graça, que não em letra manuscrita; sai mais bonito, mais nítido, mete-se pelos olhos a dentro, sem contar que as pessoas que o hão de ler, comprar as folhas, e a gente fica notória sem despender nada (Machado de Assis, 1997: 443).
Conforme noticia o cronista Machado, a exploração do caráter emocional da notícia, viabilizada pelo sensacionalismo, relaciona-se com a natureza comercial da informação, que irá se consolidar no século posterior ao jornalismo exercido pelo cronista carioca. Ciro Marcondes Filho, contemporâneo das tendências mercadológicas assumidas pelos meios de comunicação do século 20 e 21, diz que o sensacionalismo:
…é o grau mais radical da mercantilização da informação: tudo o que se vende é aparência e, na verdade, vende-se aquilo que a informação interna não irá desenvolver (…) O jornalismo sensacionalista extrai do fato, da notícia, a sua carga emotiva e apelativa e a enaltece. (Marcondes Filho, 1989:78).
Para Machado de Assis, cabe à imprensa adotar uma medida enérgica para coibir a criminalidade e se desvencilhar da “ideologia da notícia” que “prefere debater-se pelo monstro ou pelo morto, que não educa nem o público e nem o jornalista, a debater-se pelo vivo, pelo normal” (Eco apud Marcondes Filho, 1989). O cronista carioca aconselha, na crônica de Balas de Estalo, que a imprensa deve ser indiferente ao criminoso, não reservando espaço às práticas ilícitas em suas páginas:
(…) Já o leitor adivinhou o meu medicamento. Não se pode falar com gente esperta; mal se acaba de dizer uma coisa, conclui logo a coisa restante. Sim, senhor, adivinhou, é isso mesmo: não publicar mais nada, trancar a imprensa às valentias da capoeiragem. Uma vez que se não dê mais notícia, eles recolhem-se às tendas, aborrecidos de ver que a crítica não anima os operosos (grifo meu) (Machado de Assis, 1997:444).
Malgrado tal afirmação soe de certo modo reducionista, na alusão feita pelo cronista permanecem, de toda sorte, alguns elementos que devem ser preservados, tendo-se que se lhes acrescentar outros. Ao afirmar que “(o capoeira) recorre à navalha, espalha facadas, certo de que os jornais darão notícias das suas façanhas e divulgarão os nomes de alguns” e sugerir como antídoto da questão “não publicar mais nada, trancar a imprensa às valentias da capoeiragem”, Machado de Assis, assim como Platão, acreditava que as narrativas de violência representavam uma ameaça na medida em que poderiam estimular o indivíduo a condutas negativas/imorais (mimese). O norteador desta convicção baseia-se na idéia da imitação, ou seja, os indivíduos são induzidos a imitar aquilo que vêem e ouvem.
O argumento de Machado de Assis parece encontrar eco na discussão sobre os efeitos dos meios de comunicação nos anos 30 (século 20), quando começaram estudos norte-americanos na área. Nesta década, os pesquisadores da teoria hipodérmica (Wolf, 1995: 20-30) acreditavam que os mass media exerciam um efeito direto e uniforme junto ao público. Apoiados teoricamente na fórmula behaviorista “estímulo-resposta” (E > R), esses teóricos concebiam o processo de recepção como homogêneo e linear. Tal teoria logo caiu em descrédito devido ao simplismo com que explicava o processo comunicativo. Existe uma série de fatores e mediações que interferem no processo de recepção, contribuindo, assim, para reelaborar, reinterpretar, resistir, negligenciar ou mesmo negar esses conteúdos veiculados pelo jornal.
Outro detalhe é de que não é tão simples assim deixar de noticiar a violência, como deseja Machado de Assis, se consideramos que “a sociedade brasileira tradicional, a partir de um complexo equilíbrio de hierarquia e individualismos, desenvolveu, associado a um sistema de trocas, reciprocidade na desigualdade e patronagem, o uso da violência, mais ou menos legítimo, por parte de atores sociais bem definidos” (Velho, 2000:57). Sendo assim, a violência enquanto fato social não pode ficar a revelia da cobertura jornalística.
Se essas razões expostas ficam ofuscadas na análise machadiana sobre a relação entre a violência e o jornalismo, não se pode perder de vista a visível preocupação do cronista com o tratamento particular que o jornal dá a crimes, desastres, escândalos, discutindo as questões da morbidez e da ética que levam veículos informativos a explorar o caráter emocional da notícia, recorrendo ao sensacionalismo.
Machado de Assis retorna ao tema na crônica de 16/9/1894, publicada na seção A Semana. O cronista prepara algo como uma alegoria das semanas. Ele conta que adora receber as visitas de uma semana pobre: “(…) e aí vamos, eu e a semana pobre, papel abaixo, falando de mil cousas que se ligam à banana, desde a botânica até a política. (…) Não há tempo nem espaço, há só eternidade e infinito, que nos levam consigo (…)”(Machado de Assis, 1997:623). Já as semanas ricas contrariam as expectativas do cronista. Elas “são ruidosas e enfeitadas, aborrecíveis, em suma” (idem:622), pois “(…) despejam as algibeiras sem ordem e a gente não sabe por onde lhes pegue, tantas e tais são as cousas que trazem consigo (…)” (idem:623).
O enredo da crônica se desenvolve com a visita inesperada e indesejada de uma entregadora de notícias. O cronista fica boquiaberto com a quantidade de “pacotes” trazidos por aquela senhora. É uma forma irônica utilizada por Machado para demonstrar o bombardeio sufocante de informações provocadas pelas semanas ricas. A intenção da semana rica é a de oferece acontecimentos imediatos e não indicar a tendência da nossa percepção para processos a longo prazo. Lá, moram o desejo da morte, de esgotamento da vida, a produção em larga escala dos “(fatos) de maior melindre” (Machado de Assis, 1997:623). A semana rica leva ao suicídio da transcendência. Por isso, ela é considerada por Machado de Assis como “a pior de todas as visitas” (idem:623).
As semanas ricas são justamente a matéria-prima do sensacionalismo, revela Machado. Ao comentar que o edifício da fábrica da Chitas caiu, os personagens da crônica (a senhora e o cronista), ficaram frustrados por não haver vítimas decorrentes da queda do prédio. O acidente não gerou mais um “pacote” para o estoque da entregadora de fatos e, conseqüentemente, não ofereceu um assunto inusitado para o jornalista desenvolver a sua crônica e ser bastante lido e comentado, o que proporcionaria uma maior venda de jornais:
(A SENHORA) ? (…) o edifício da Fábrica da Chitas, que afinal recebeu o último piparote do tempo (…) caiu. Pelo resultado, podemos dizer que (…) não matou ninguém. Imagine se o bond que descia passasse no momento de cair o monstro e que o homem que queria ir ver na casa arruinada a cadela que dava leite aos filhos houvesse chegado ao lugar onde estavam os cães. Que desastre, santo Deus! Que terrível desastre?
(O CRONISTA) ? Terrível, minha senhora? Não nego que fosse feio, mas o mal seria muito menor que o bem. Perdão; não gesticule antes de ouvir até o fim… Repito que o bem compensaria o mal. Imagine que morria gente, que havia pernas esmigalhadas, ventres estripados, crânios arrebentados, lágrimas, gritos, viúvas, órfãos, angústias, desesperos… Era triste, mas que comoção pública! Que assunto fértil para três dias! Recorda-se da Mortona.
(A SENHORA) ? Que Mortona?
(O CRONISTA) ? Creio que houve um desastre deste nome; não me lembro bem, mas foi negócio em que se falou três dias. Nós precisamos de comoções públicas, são os banhos elétricos da cidade. Como duram pouco, devem ser fortes (…). (grifos meus) (Machado de Assis, 1997:623).
Os excertos demonstram os mecanismos psicológicos que estão por trás do processo de produção, atração e consumo do sensacional. Machado de Assis compreende o meio sensacionalista como um agente catártico das instâncias psíquicas. A teoria da catarse encontra em Aristóteles o seu pioneiro. O filósofo acreditava que as narrativas e imagens de horror e de violência resultavam prospectivas, na medida em que serviam como “escape” à agressividade natural do ser humano. Sobre essas narrativas, o fait divers, Edgar Morin assinala:
Os fait divers vão até o fundo da morte, com a lógica irreparável da fatalidade, ao mesmo tempo em que estão integrados à vida cotidiana sendo consumidos não como um rito criminal, mas na mesa, no metrô, com café e leite (…) as vítimas são oferecidas em sacrifício à infelicidade e à morte. (…) Este sacrifício evitaria novos sacrifícios: eles morrem em meu lugar (…) são os outros que morrem e não eu (Morin, 1977: 55).
Nesse sentido, compreende-se o papel que o sensacionalismo absorve para si como agente realizador, mesmo que momentaneamente, de nossas emoções obscuras e reprimidas e apaziguador de nossas pulsões. O material sensacionalista atua como um escoadouro dos impulsos. Dessa forma, são trabalhados os dois lados opostos: o de satisfação projetiva dos desejos anti-sociais recalcados e, ao mesmo tempo, o de preservação do leitor, o alívio de não ser ele o morto ou transgressor castigado. A fórmula sensacionalista de enaltecer os aspectos emocionais da notícia é bem sucedida, justamente por trabalhar com as emoções que o público desconhece ou recusa em si. A necessidade de um desastre a que tanto se refere o personagem da crônica de Machado de Assis é a existência e o reconhecimento de um desejo de morte presente em todos nós. Virna Luna explica em que consiste a pulsão de morte:
O desejo de morte pode ser metaforizado e surge a partir da luta contra a imagem do eu ideal definida e imposta pela civilização. Queremos que morram as expectativas do outro, a imagem projetada sobre nós, o ideal. Sofremos com os imperativos de uma sociedade que torna o viver dificílimo para a maioria das criaturas humanas e queremos destruí-la em nós (Luna, 2000: 53).
Em decorrência disso, o personagem da crônica machadiana admite:
? … um grande abismo. Nem falo só pelos outros, mas também por mim. Não tenho dúvida em confessar que o espetáculo de uma perna alanhada, quebrada, ensangüentada, é muito mais interessante que o da simples calça que a veste. As calças, esses simples e banais canudos de pano, não dão comoção. As próprias calças femininas, quando comovem não é por serem calças… (Machado de Assis, 1997:624).
Quando o cronista diz que os fait divers representam “comoções públicas, são os banhos elétricos da cidade” e “um grande abismo” (idem, 1997:624), revela as pulsões de morte que nos seduz a vida toda, como um retorno ao estado anterior: o alívio de todas as frustrações experimentadas em vida.
Por meio da leitura e análise das crônicas publicadas em Balas de estalo (14/3/1885) e A Semana (16/9/1894), verifica-se que o pensamento psicológico de Machado de Assis a respeito do nutriente psíquico presente no sensacionalismo, antecipa no final do século 19 os estudos de Sigmund Freud, que vai conceber, no início do século 20 a sofisticação teórica para a análise do inconsciente humana, esse “grande abismo”, como diz o personagem da crônica machadiana.
Freud divide estruturalmente o aparelho mental em: id (o princípio do prazer, responsável pela satisfação imediata dos impulsos), ego (o princípio de realidade, regulador do id) e superego (o princípio da consciência moral, norteador das exigências da civilização). Sem conhecer esses instrumentos teóricos, o jornalista Machado de Assis já investiga os meandros dessa nessa busca do jornalismo pelo bizarro, pelo inesperado, pela violência, pela morte. A estratégia do sensacionalista é relacionar as camadas obscuras do inconsciente (as necessidades do id) com os ideais de consciência (as exigências do superego). O agente politizante, contextualizador dos acontecimentos, é neutralizado pelo sensacionalismo (Macedo, Júlio C. B.; Silva, Marcos F. L.; Diniz, Thiago J, 1999). Na crônica de A Semana, Machado de Assis traduz esse fenômeno ao comentar, por exemplo, que nas semanas ricas, local por excelência do fait divers, “não há tempo de fazer estilo com elas, nem abrir a porta à imaginação. Todo ele é pouco para acudir aos fatos” (Machado de Assis, 1994:623).
Por trás do esquema sensacionalista, as crônicas de Machado de Assis revelam que a imprensa encarrega-se de colher do humus social o sentido mais básico e rudimentar da moral coletiva e a traduz em norma, que verbera para audiência e para os convidados, adquirindo uma função social ainda mais fundamental do que a de veiculadora de informações. O jornalismo está imbuído da premência em aplicar sanção pública (Costa Neto, 2002), em punir direta e imediatamente, em expor o malfeitor a um suplício midiático e sem intermediação, que se resolve com rapidez e agilidade, construindo e tornando visível o fato, com uma feição parcializante que afronta os mais comezinhos princípios que regem a atuação do Poder Judiciário (ampla defesa, contraditório, plena informação etc.). Pode-se dizer que o sensacionalismo atua, portanto, como “id personificado” e “superego acessório”. Dessa forma, as tarefas do ego, como o controle dos sentimentos e a repressão dos impulsos, tornam-se menos exaustivas. Nesse sentido, é que repousam a temática dessas crônicas de Machado de Assis e a preocupação do cronista quanto ao uso deliberado das estratégias sensacionalistas por parte da imprensa.
Machado de Assis mostra em Balas de estalo (14/3/1885) e A Semana (16/9/1894) que é inadmissível encarar o jornalismo como simples veículo de comunicação, portanto, mero “espelho” da sociedade. Ele não é apenas um meio formador, consolidador ou confirmador de tendências preexistentes na sociedade. O jornalismo não apenas veicula e divulga imagens violentas, como também exerce, ele próprio, uma “invisível” dose de violência diária. Esse estado de coisas compromete uma qualidade editorial que projete o ideal de jornalismo como “a verdadeira forma da república do pensamento” (Machado de Assis, 1994:944; Schwarz, 1992:64).
Não existe apenas a violência “no” jornalismo, como também, e principalmente, a violência “do” jornalismo. Porém, a imprensa não pode ser considerada “culpada” por esta visível e espetacularizada espiral destrutiva, na medida em que é uma entre várias e várias outras influências possíveis. Além do mais, o processo de recepção é complexo e depende, fundamentalmente, do “mundo vivido” do sujeito, das mediações das quais ele participa. Contudo, se não cabe a imputação de “culpa”, seguramente cabe a de co-responsabilidade social pela pedagogia do medo e da insegurança, perpetrado a longo prazo junto à sociedade contemporânea.
Da alteridade do processo de focalização, entre a dualidade mimese/catarse encontrada no espetáculo da violência, entre os detalhes existentes na prática capitalista do jornalismo e nos desejos obscuros da mente humana, a “pena da galhofa e a tinta da melancolia” de Machado de Assis avaliam e discutem paradigmaticamente, por meio das crônicas Balas de estalo (14/3/1885) e A Semana (16/9/1894), a exploração do caráter emocional da notícia praticada pelo sensacionalismo e o papel social do jornalismo.
(*) Aluno do Programa de Pós-Graduação em Letras-Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais
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