CASO SONINHA
Josenildo Guerra (*)
A reportagem de Época (n? 183) "Eu fumo maconha", com Soninha e Angeli, entre outros, levanta uma temática recorrente em assuntos de jornalismo: o dilema privacidade versus publicidade. E deixa evidente que não apenas os jornalistas devem estar atentos a essa questão, mas também as fontes. Toda a polêmica criada pela reportagem é fruto da ausência de limites entre o que concerne ao interesse público, objeto do jornalismo, daquilo que é de caráter privado, portanto, relativo à vida particular de cada um.
Discernir e respeitar tais limites não significa hipocrisia, com argumentos do tipo "as pessoas fazem e não assumem". Significa que as experiências que cada um vive, no âmbito de sua vida privada, não precisam ser de conhecimento público. Há casos, porém, que experiências particulares ilustram um problema social, este sim, de efetivo interesse público. Essa foi a justificativa da reportagem para a forma de abordar o assunto: entrevistar e identificar pessoas que fazem uso da droga ? o problema social ? e que tocam suas vidas normalmente.
Numa reflexão sobre a reportagem, a primeira pergunta a ser feita, do ponto de vista jornalístico, é o que acrescentou ao debate social sobre a descriminalização da maconha saber que Soninha, Angeli e outras pessoas bem sucedidas fazem uso dela? De significativo, nada, pois como eles há tantos outros. O mero relato de usuários que preservam suas relações familiares e profissionais ao longo dos anos em que cultivam o hábito não pode ser considerada informação confiável, principalmente, numa questão sobre a qual os próprios especialistas reconhecem que o volume de conhecimentos ainda é muito pequeno (p. 96).
Nesse tipo de argumento, as estatísticas são mais confiáveis, e a reportagem até mostra: menos de 10% se tornam dependentes, mas com o "consumo da maconha aumenta em 56 % a possibilidade de consumo de outro tipo de droga"(p. 97), cujos índices de dependência são maiores, como o da cocaína, que chega a 50 %.
Se as entrevistas não acrescentaram nada de significativo ao debate, justificou-se a exposição das fontes, num tema extremamente polêmico? Não, aliás, porque a reportagem, em si, não tem nada de especial que justificasse inclusive ser capa da revista. A não ser suas fontes…
De qualquer forma, houve um acordo entre a equipe de reportagem e as fontes sobre a decisão de expor publicamente aquilo que elas não o fazem publicamente. Os entrevistados sabiam o que estavam dizendo, e o fizeram por livre e espontânea vontade. "Vai dar o maior rebu", já previa Soninha, ao falar para as filhas sobre a matéria (Folha de S. Paulo, 21/11/2001). Uma vez dito, resta às fontes assumir o que disseram e as suas conseqüências. Isso não elimina, por&eeacute;m, a responsabilidade dos jornalistas sobre o uso que fizeram do material que tinham em mãos.
A edição da capa sugere pelo menos dois problemas. Primeiro, a frase estampada como manchete não corresponde exatamente à forma como os usuários a diriam, mas a uma inferência dos editores. Soninha diria "sou a favor da descriminação da maconha" (Folha Online, 21/11/2001), Angeli reclamou que a informação está fora de contexto (Folha de S. Paulo, 21/11/2001). Trata-se, portanto, de uma caso de distorção daquilo que as fontes tão abertamente confessaram à reportagem. Um caso clássico no jornalismo.
Talvez tenha faltado também um pouco de sensibilidade aos editores. A manchete não foi nem um pouco sutil, como convém ser quando se trata de assuntos delicados. Se manchetes não puderem ser sutis, assuntos delicados não podem ser manchetes. A forma direta, "eu fumo maconha", seria o jeito mais indicado para se dizer usuário da droga? Assim diria um filho, diante dos pais, ao fazer tal revelação? Da parte dos pais, o usuário pode até obter a compreensão, como aconteceu com os entrevistados, dependendo de como se diga. Mas, de estranhos, não se pode esperar a mesma coisa.
A infelicidade da manchete foi repetida no subtítulo: "Um número cada vez maior de brasileiros ignora a lei e usa a droga". Além de delatar as fontes como foras-da-lei, contradiz frontalmente àquilo que a reportagem se propôs: tirar a "sombra" dos usuários. "Um número cada vez maior de brasileiros fazem uso recreativo da maconha" seria mais condizente com a proposta da matéria e a própria situação das fontes.
Se a intenção era causar impacto, a capa conseguiu. Mas, a que preço? Ao preço de colocar os entrevistados numa situação desconfortável. Os editores mostraram as fontes e revelaram o prazer proibido do qual são apreciadoras com uma naturalidade incompatível com o tratamento dispensado à questão. São hábitos sobre os quais pesam sérias restrições sociais, médicas e legais, impossíveis de serem ignoradas. Não se avaliou corretamente qual o peso de tais restrições sobre a vida pessoal e profissional de cada um dos mostrados.
Essas revelações, óbvio, comprometeram a imagem pública das fontes, como ficou patente no caso de Soninha. Mas, curiosamente, ao invés de Soninha pensar em processar a revista por danos morais, por exemplo, em função de como foi editada a capa, ela pretende "processar a revista pelo que considera uso indevido de sua imagem na capa da revista e no outdoor usado para publicidade" (Folha Online, 22/11/2001).
O argumento dela é curioso porque reclama uso indevido de imagem em material jornalístico. Sem a precisão e competência de uma análise jurídica, pode-se sustentar que o fotojornalismo está isento desse tipo de cobrança. Mas, Soninha, de forma indireta, abre a discussão sobre os limites entre uma capa de natureza jornalística e outra, de natureza promocional. Essa é a questão de fundo presente no seu argumento, mesmo que de modo meio enviesado, ao reclamar do uso indevido de imagem.
Manchetes não raro são objeto de polêmica porque necessitam de três características difíceis de serem conciliadas: informação, apelo e técnica (ajustar-se ao tamanho pré-determinado). Mas, no caso especifico das revistas, observa-se um fenômeno cada vez mais comum: a montagem de "cenas" virtuais, facilitadas em muito pela tecnologia de tratamento digital de imagem. A capa de Época retrata uma dessas cenas, que não dá conta, nem no conteúdo nem no tratamento, do que as fontes disseram. De valor jornalístico duvidoso, acentua-se o seu valor promocional.
A discussão se complica ainda mais quando a capa vai parar em outdoors, espaços até então essencialmente publicitários. A capa da revista, material jornalístico, pelo menos em tese, preservaria esse atributo ou tornar-se-ia publicidade? O caso de Soninha é particularmente interessante porque ela, assim como o Angeli, é uma profissional de mídia, conhecida publicamente, o que confere um apelo maior à reportagem de Época. Teria a revista se beneficiado da imagem dela ? do Angeli e até mesmo dos demais entrevistados ? como chamariz para promover a reportagem?
Que a reportagem e a capa estiveram centrada nos seus "personagens", não resta a menor dúvida. Por tratar-se de um tema delicado, o "rebu" foi previsto com antecedência, inclusive. Os problemas de edição podem ter pontecializado ainda mais o que já era por si só explosivo. No entanto, a origem da polêmica foi a exploração da vida privada das fontes, com o seu próprio consentimento, como gancho para a matéria. Caso se insista que tais experiências possam mesmo ser relevantes para o debate público sobre o uso da maconha, não se justifica abrir mão de um recurso que só o jornalista tem ? o sigilo da fonte (Lei de Imprensa, Art. 7) ? justamente para situações como essa.
(*) Jornalista, professor da Universidade Federal de Sergipe, doutorando na Facom/Ufba.