Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Mais ciência e menos ideologia

AVALIAÇÃO IMPLODIDA

Orlando Tambosi (*)

Além de reproduzir e aprofundar na economia o que o governo FHC fez de pior, o governo Lula corre o risco de destroçar o que o anterior fez de melhor em outras áreas. Na área de educação, por exemplo, a extinção do Exame Nacional de Cursos ? o Provão ?, conforme proposta da comissão nacional designada pelo ministério, conduzirá a um grave retrocesso no sistema de avaliação das instituições de ensino superior. A anunciada morte do Provão é motivo de festa particularmente nas baiúcas que vendem diplomas nos fins de semana. Às instituições sérias, públicas ou privadas, trará mais prejuízos do que benefícios.

Argumentam seus detratores que o Provão é deficiente, inexato, parcial, envolvendo apenas os alunos, em vez de avaliar a instituição como um todo (professores, administração). Ora, omite-se que o exame realizado pelos universitários é apenas um dos componentes da avaliação, que é complementada, sobretudo, pela Análise das Condições de Ensino. É a esta última que incumbe a análise detalhada do projeto pedagógico, do corpo docente, da grade curricular e da estrutura física e laboratorial dos cursos. Não se pode negar que, no conjunto, essas avaliações produziram sensível melhora nas instituições de ensino, principalmente nas escolas privadas, que, em função das deficiências apontadas, se viram obrigadas a mudar currículos, contratar professores pós-graduados, criar e reequipar laboratórios etc. Tudo isto engendrou, na maioria das IES, uma benéfica cultura de avaliação.

Ressalte-se que o objetivo do Provão não é, na verdade, avaliar os alunos, mas a qualidade dos cursos e das instituições. Para tanto, o desempenho médio dos estudantes parece ser de fato o melhor indicativo. Não se busca um conceito absoluto: as notas são relativas a cada curso. A comparação se dá entre semelhantes: cursos de jornalismo com cursos de jornalismo, cursos de biologia com cursos de biologia. Os melhores cursos de cada área obtêm conceito A, enquanto os piores ficam com E, pouco importando que um A em Odontologia signifique, em termos de nota, um B ou C em Engenharia Mecânica. Mas, para maior transparência e para evitar mal-entendidos, bem que se poderia publicar também as respectivas notas nas atribuições de conceitos.

Modelos hegemônicos

Esmerando-se na formulação de siglas, a comissão de enterro do Provão propõe em seu documento a criação de um "Sistema Nacional de Avaliação de Cursos" (Sinaes), cujo filhote, batizado de "Processo de Avaliação Integrada do Desenvolvimento Educacional e da Inovação da Área" (Paideia), substituirá o Provão. Em resumo, o Paideia ? que será realizado por amostragem aleatória e por área de conhecimento ? deverá se guiar por uma nebulosa "racionalidade formativa" (valham-nos, filósofos!) que elimine "a conotação mercadológica e competitiva", essa horrenda característica do Exame Nacional de Cursos. Desaparecem os rankings, as comparações, as classificações por notas e menções ? e com elas "a ideologia da competitividade, da concorrência e do sucesso individual"! Nada de competição entre as instituições: "solidariedade" é a regra. Embevecida, a tradição católica agradece esse hino ao paroquialismo.

O processo terá como ponto de partida uma auto-avaliação feita pelas próprias instituições, certamente outro motivo de júbilo para as baiúcas de final de semana e as faculdades de fundo de quintal. Afinal, reza o documento, agora com tintas liberais, "cada instituição tem sua história e constrói concretamente suas formas e conteúdos próprios que devem ser respeitados". A auto-avaliação seguirá apenas um roteiro básico, comum a todas as instituições, mas "adaptável no que couber ao perfil de cada uma delas, conforme as especificidades institucionais". Em suma, encolhe-se o campo do poder regulador e fiscalizador do MEC. As instituições e centros universitários privados, que figuram entre os mais ferozes inimigos do Provão, juntamente com algumas federais mais corporativistas, serão apaziguados com tanta liberalidade. Acertou quem disse que o fim do Exame Nacional de Cursos unirá a todos num "pacto da mediocridade". Nas brumas do Paideia, todos os gatos serão solidariamente pardos.

Quais os pressupostos filosóficos do novo sistema de avaliação? Por mais vago que seja, o documento da comissão especial deixa isto claro já na introdução, ao traçar um rápido histórico dos dois modelos hegemônicos: o anglo-americano, que privilegiaria aspectos meramente técnicos e quantitativos, visando "produzir resultados classificatórios", e o francês, que combinaria "dimensões quantitativas e qualitativas". Dada a manifesta ojeriza a termos como competição, eficiência e produtividade, não surpreende que o Sinaes opte por este último, considerando-o "emancipatório" ? denominação que evoca o marxismo frankfurtiano dos anos 70.

Sinal vermelho

Vivos fossem, os autores da Dialética do iluminismo, Adorno e Horkheimer, certamente subscreveriam por inteiro a crítica ao "modelo inglês", que o documento chama de "regulatório". Para esse modelo, "a atual crise do ensino superior remete à questão da eficiência ou ineficiência das instituições em se adaptarem às novas exigências sociais, entendendo que a educação superior funciona como fator de incremento do mercado de trabalho. Nessa linha, a avaliação se realiza como atividade predominantemente técnica, que busca a mensuração dos resultados produzidos pelas instituições em termos de ensino, sobretudo, e também de pesquisa e prestação de serviços à comunidade. Sua ênfase recai sobre indicadores quantitativos que promovem um balanço das dimensões mais visíveis e facilmente descritíveis, a respeito das medidas físicas, como área construída, titulação de professores, descrição do corpo docente, discente e servidores (….), muitas vezes permitindo o estabelecimento de rankings de instituições, com sérios efeitos nas políticas de alocação de recursos financeiros".

Não, o Sinaes não se contenta com informações objetivas, mensurações, essas coisas que se pode ver, descrever e analisar facilmente com métodos científicos. Movido, como vimos, pelo interesse "emancipatório", ele busca algo mais difícil, sutil e, talvez, transcendental ? em todo o caso, algo que vá além dos meros "juízos de fato", essa camisa-de-força das ciências. Não, não só os impessoais juízos de fato, "coleta de informação, medida e controle de desempenho": o Sinaes abre-se também aos juízos de valor, isto é, ao político-ideológico, ao subjetivo. Daí o especial carinho pelo modelo francês (mais qualitativo), já que as universidades têm "funções múltiplas", entre as quais a de ser "um instrumento de cidadania"; daí a pretensão de fundar uma "outra lógica" de avaliação, comprometida "com a igualdade e a justiça social". Morte ao Provão, portanto, nefasta criatura que encarna o "modelo de inspiração inglesa"!

Este linguajar, de indisfarçável sabor romântico-dialético, não deixa dúvidas de que o Sinaes, com seu filhote Paideia, é um passo atrás no sistema de avaliação das instituições de ensino superior. Apega-se mais a vagos princípios ideológicos que a padrões científicos objetivos. Prejudicará as boas instituições (públicas ou privadas, repito) e protegerá as medíocres, além de deixar incólumes as arapucas caça-níqueis, que se auto-avaliarão como excelentes.

O sinal vermelho do retrocesso está aceso. O Brasil precisa de mais ciência e menos ideologia.

(*) Doutor em Filosofia, professor de Filosofia, Ética e Epistemologia do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina

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