Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Mal de Artemidoro

MÍDIA GAÚCHA

Gilmar Antonio Crestani (*)

Lê-se a biografia do imperador romano César, escrita por Plutarco, com o deleite e a curiosidade de quem parece estar participando dos acontecimentos. A construção da narrativa atrai pelos detalhes e empolga pela emoção que a trama dos fatos aos poucos vai tecendo. No ápice dos acontecimentos, mesmo sabendo o que vai acontecer, o leitor segue angustiado os passos daquele professor de Literatura Grega em Roma, Artemidoro de Cnido, que dispõe de informações sobre conspirações que poderiam evitar a morte de César. Acompanhamos com apreensão as tentativas frustradas de entrega do bilhete salvador, e continuamos torcendo para que a vítima o leia tão logo o receba. Ao cabo, levado de roldão pela turba, César não consegue ler o bilhete salvador, e nos deixa consternados ver a vida do líder que sobrevivera a tantas peripécias esvair-se, literariamente, por entre os dedos.

Não é somente pelo significado de que os homens ocupados por vezes deixam as soluções escaparem por entre os dedos. É também o exemplo de que boas oportunidades de se informar podem residir, como os melhores perfumes, em pequenos recipientes. Mas nem todo estafeta é professor de Literatura Grega e tampouco abundam césares no jornalismo, por mais que almejem monopolizar as fontes de informação.

O jornal Zero Hora abriga uma central de recados, talvez sintoma do "mal de Artemidoro", na esperança de que a publicação do bilhete premie também o portador. Se o bilhete lhe for indigesto, sai como carta, mas, em se enquadrando aos propósitos políticos, vira "informação". Quem sabe pensando num grande furo, ou numa grande alça, acabou dando com os burros n`água, uma barrigada. No mesmo dia que o Grupo Sinos de Comunicação, que publica vários jornais na região metropolitana de Porto Alegre, agora associado à Band, revelava mais um esquema de corrupção na Câmara de São Leopoldo, a "central de recados" publicava mais um bilhetinho premiado, anunciando o apoio do prefeito daquela cidade à Cleópatra da RBS. No outro dia, o jornal repercutiu as denúncias, mas sem atrelá-las a uma questão partidária.

Embora seja este o comportamento esperado, porquanto correto, só é praxe da empresa quando envolve corrupção na sua base parlamentar. Tanto no caso da CPI que tratou da Segurança Pública, na Assembléia Legislativa do RS, como no dos fatos que estão sendo investigados em Santo André, este não foi o tratamento dispensado. Só entendendo esta estranha forma de construir a informação que se compreende o silêncio obsequioso diante da perseguição política desencadeada no Hospital Conceição de Porto Alegre, administrado pelo governo federal, por grupos políticos indicados por uma ex- funcionária da RBS, hoje deputada federal. Aliás, é costume desta empresa praticar a adjetivação com antolhos, pois escreve que o regime cubano é comunista mas nunca diz que o regime argentino é capitalista. Nestes casos o contínuo da redação sempre chega atrasado com o bilhete salvador quanto ao bom emprego dos adjetivos.

Se um vereador é preso por formação de quadrilha, o aspecto partidário desaparece, afinal quadrilha não exige filiação ideológica, basta o resultado. Um prefeito do interior é preso, outro é cassado e vários são denunciados. Mas o aspecto ideológico somente ganha relevo se for do PT. Por quê?

Pauta partidária

Num domingo desses o jornal construiu uma "reportagem especial" ? aliás, sempre que se trata de manchar algo referente às administrações do estado e da capital gaúcha a matéria ganha a rubrica de "reportagem especial" ? sobre a segurança nas escolas públicas. Quem olhasse a agenda do candidato representante do Partido Pró-Sirotsky saberia que a segunda-feira seria de encontros políticos em tais escolas.

Na seqüência, antecipando-se ao horário eleitoral gratuito, construiu duas "reportagens especiais" para desmerecer a construção de um importante complexo viário que, uma vez concluído, vai desafogar o trânsito em locais com alguns problemas estruturais de Porto Alegre. Primeiro, denunciando que alguns pontos e cruzamentos da III? Perimetral teriam problemas de lentidão, sem apresentar qualquer fundamento lógico. Depois, numa elucubração capaz de arrepiar psicanalistas, construíram outra "reportagem" denunciando o "complexo das perimetrais". Na mesma linha de raciocínio seguiu-se uma série de manchetes que denunciavam a "indústria de multas", com a chamada de que a cada hora tantos são multados.

Ora, uma análise mais conseqüente, diante do espectro legal vigente apontaria, na verdade, que aquele era o número de motoristas infratores que colocavam em perigo os demais condutores e pedestres, em afronta ao Código de Trânsito. O tratamento dado pelo coronelismo eletrônico é de uma irresponsabilidade inconcebível, pois incentiva os motoristas desonestos e prejudica os pedestres que dependem da sinalização eletrônica para poderem trafegar em determinadas avenidas ou cruzamentos. Aliás, não é só nesta questão que insuflam à desobediência.

Também na questão da segurança pública tem servido de portadora de recados, desde que contra qualquer iniciativa da Secretaria de Segurança Pública. Recomendo aos leitores deste Observatório que confiram a diferença de enfoque dado pelo Diário Catarinense em comparação ao jornal Zero Hora, particularmente na rubrica "Polícia". Para se ter uma idéia, mesmo informando que na Grande Florianópolis duplicaram os índices de violência no último período, em nenhum momento atribui-se o alto índice à política de segurança daquele estado. O candidato à presidência Ciro Gomes foge de Curitiba e Foz do Iguaçu, no Paraná, por problemas de violência, mas a culpa certamente não é do governador Jaime Lerner e de sua política de segurança.

A bem da verdade, não se faz necessária uma postura claramente a favor de determinado candidato para que se possa imputar conjunção de interesses. Basta que se direcione a pauta das matéria em conluio com o programa e a agenda de seu pré-eleito. Aí temos aquela história do cavalo do comissário, que por ser da empresa tem de vencer o páreo.

Ética de campo e lavoura

Diante da insistência com que a empresa se perfila ao lado dos latifundiários gaúchos, particularmente quanto à postura da Farsul e do Ministério da Agricultura, para defender o uso de organismos geneticamente modificados e contra a forma de atuação do MST, não parece ético que se deixe de informar aos eleitores os vínculos empresariais que os unem. Primeiro no sítio Agrol, já noticiado em artigo anterior para este Observatório, agora em outra triangulação um tanto quanto nebulosa.

A empresa desenvolveu um sistema de rastreabilidade bovina (Sisbov), a Farsul o adotou e o Ministério da Agricultura passou a exigi-lo dos criadores de gado em nível nacional. Único fornecedor de algo tornado obrigatório sem maiores explicações. Pode ser legal, mas, na medida em que a cobertura política envolve questões agrárias de tal monta, seria conveniente que tais enlaces ficassem claros para os leitores/eleitores. Qualquer notícia que envolva estas questões agropecuárias, ou mesmo os conflitos entre a Farsul e o Incra, na delimitação de produtividade, por exemplo, compromete a credibilidade da informação, dados os fortes interesses da empresa jornalística envolvida. No mínimo, falta transparência, a mesma transparência que cobra dos entes políticos com os quais não comunga. Esquece da velha lição de dar a César somente o que é de César!

César também atravessou o Rubicão da ética ao entrar em Roma com seu exército ? as leis romanas não permitiam que generais entrassem em Roma com seus exércitos. (Diz-se que na noite que antecedeu a travessia do Rubicão César tivera um sonho em que mantinha relações incestuosas com a mãe…) O mesmo César que, tendo derrotado Pompeu na Grécia, perseguiu-o até o Egito, onde recebeu a cabeça do general fugitivo e os "serviços de Cleópatra". Ciente dos crimes que cometera, e tendo desobstruído o caminho com a morte de Pompeu, o magnânimo César mandou cartas aos amigos em Roma em que se podia ler que "o fruto mais real e doce de sua vitória consistia em salvar, todos os dias, alguns dos cidadãos que haviam tomado das armas contra ele". Amanhã os mesmos que atravessam os limites da ética, molhando os pés nos rubicões do incentivo ao desrespeito, pelo lucrativo prazer de beneficiar apaniguados, perseguindo os pompeus da concorrência, talvez não tenham mais tempo para lerem bilhetes de artemidoros.

O culto ao fundador do Império Romano levou o poeta florentino Dante a colocar em cada uma das três bocas de satanás, que estão em contínuo mastigar, nada menos que Judas, Cássio e Bruto. Desconheço, contudo, em que parte da Divina Comédia pôs Artemidoro, portador do bilhete que salvaria a vida de César, e, por conseqüência, o Império Romano. Como sonhos de construir impérios ainda existem, cujos Diários Associados seriam apenas mais um feudo agregado, não é de se admirar que políticos gaúchos que sufragaram os bilhetinhos eleitorais que aplainariam tais caminhos estejam sendo tão ferozmente mastigados. Não sendo César, nem sempre poderão vangloriar-se: vim, vi, venci! Contudo, "alea jacta est!"

(*) Funcionário público federal