Wednesday, 27 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Marcelo Marthe

A PADROEIRA

"Ave Maria", copyright Veja, 10/09/01

"Provocar reviravoltas na trama de uma novela para melhorar seus índices de ibope é uma prática antiga na TV. O caso mais notório remonta aos anos 60, quando Janete Clair se livrou do excesso de personagens que prejudicava o folhetim Anastácia sem nenhuma sutileza: inventou logo um furacão para exterminar parte deles. A atual atração da Rede Globo no horário das 6, A Padroeira, passou recentemente por uma dessas plásticas emergenciais. Está irreconhecível. Ao ser lançada, em junho, era uma produção de época com forte carga dramática, que buscava ser fiel à caracterização da vida no interior paulista do século XVIII. Seus fracos índices de audiência, no entanto, desencadearam mudanças incríveis. O pano de fundo continua sendo a história de Nossa Senhora Aparecida, mas A Padroeira hoje é uma comédia com um pezinho na chanchada. Treze personagens foram ceifados, enquanto oito novos entraram em cena, com a miss&aatilde;o de injetar romantismo e humor na trama. Os figurinos, antes escuros e austeros, ganharam colorido – e decotes abusadinhos. Quanto ao galã Luigi Baricelli, teve de raspar o cavanhaque e podar o cabelão para agradar às adolescentes, que o queriam com visual mais limpo (veja quadro). ?Virou outra novela?, resume um diretor da emissora carioca. Ainda é cedo para avaliar se as mudanças surtiram efeito. O ibope subiu logo que elas entraram no ar, mas na semana passada já rondava outra vez o patamar crítico de 25 pontos – o que configura um mero empate com a atração que o antecede, Malhação. Por causa disso, há rumores na Globo de que o final da novela poderá ser antecipado de janeiro de 2002 para ainda este ano.

A verdade é que a fórmula das produções de época do horário das 6, das quais o exemplo mais célebre é Escrava Isaura, já não funciona como antigamente. A não ser quando se apela ao humor explícito, como foi o caso de O Cravo e a Rosa, no ano passado. Uma explicação para isso está numa pesquisa que a própria Globo encomendou sobre A Padroeira: o espectador não está interessado em história com H maiúsculo. Havia rejeição, por exemplo, às cenas em que os escravos eram açoitados, como ocorria no século XVIII. ?Fiquei assustado, porque até associações de defesa dos negros reclamaram?, diz o autor, Walcyr Carrasco, que tratou de abolir os chicotes do script. O público do horário – composto principalmente de crianças, adolescentes e donas-de-casa – prefere temas leves e com os quais possa se identificar. No processo de metamorfose de A Padroeira, nem a santa escapou: os efeitos especiais dos milagres, inicialmente contidos, agora são quase tão espalhafatosos quanto as cenas de evolução dos bichinhos do Pokémon. Ave Maria, que imbróglio…"

 

PRESENÇA DE ANITA

"Ausência indômita", copyright Folha de S. Paulo, 9/09/01

"Não foi apenas a voluptuosidade das formas de Mel Lisboa que chamou a atenção em ?Presença de Anita?. Os dois principais personagens da minissérie fumavam. Fumavam compulsivamente, a ponto de despertar a ira do Ministério da Saúde.

Se eu fosse sacana, diria que o ministro José Serra quis censurar o programa. A iniciativa de ?advertir? Manoel Carlos, o autor de ?Presença de Anita?, contudo, não partiu de Serra, mas do Instituto Nacional do Câncer, o Inca, que é apenas ligado ao ministério.

Destaco o entrevero entre as autoridades sanitárias e a Globo para ilustrar o grau de cobrança -alguns diriam patrulha- que a sociedade impõe sobre espetáculos televisivos.

Com todo o respeito pelo trabalho do Inca na área médica, a idéia de sugerir que o autor da novela mude a caracterização de seus personagens para não prestar um desserviço à nobre causa da saúde pública é, em termos estéticos, ridícula. ?Mutatis mutandis?, deveríamos pedir a Homero contenção nos versos em que descreve mortes violentas. Dostoiévski seria proscrito, por ensinar estudantes a roubar e assassinar velhinhas. Nem Rabelais escaparia, pois -sabemos hoje- os desbalanceados banquetes pantagruélicos fazem mal à saúde.

Não estou, obviamente, comparando Manoel Carlos a Homero, Dostoiévski ou Rabelais. Só quero enfatizar que existe uma tensão entre a liberdade de criação, os imperativos estéticos, e a obra que admite interferências externas, de autoridades ou do público. E o que me pergunto é se essas intervenções, de algum modo, não comprometem a obra de arte. Será que o autor, para contentar a todos, não trai a lógica da história?

?Presença de Anita? deveria retratar o romance entre um homem maduro casado e uma ninfeta. Trocando em miúdos, a série abordava, ainda que meio veladamente, a pedofilia, a qual segue sendo, mesmo em tempos de liberação sexual, a perversão maldita. Mais do que o cigarro.

Avançou-se um pouco na aceitação do homossexualismo; o sadomasoquismo já não provoca o mesmo escândalo de outrora; um fetichismo ?light? é tido como tempero saudável para a vida sexual. Até aquelas parafilias que nem sabíamos que existiam são tratadas menos como sem-vergonhice do praticante e mais como distúrbio psicossexual. Mas a pedofilia, por conspurcar nossas idéias sobre a pureza das crianças, permanece anátema, condenada pela totalidade dos códigos penais do Ocidente e um dos poucos temas incessantemente patrulhados até na libérrima internet.

A idéia de falar de pedofilia na TV aberta já nasce, portanto, sob formidáveis pressões, que obviamente afetam conteúdo e forma do programa. A própria escolha de Mel Lisboa para interpretar a protagonista é um aspecto. A lógica da trama certamente exigiria uma Anita ainda mais jovem, com idade inferior aos parcos 19 anos da atriz. É claro que haveria aí um impedimento legal, principalmente no Rio de Janeiro do incansável juiz Siro Darlan.

Algo parecido ocorre com as cenas de sexo, que são mais insinuadas do que propriamente mostradas. Se, por um lado, essa estratégia dá plasticidade e graça à série, ela também ajuda a escamotear a questão principal, que passa, sim, pela conjunção carnal, entre um homem maduro e uma jovem que não deveria ser mais do que uma criança.

Não estou evidentemente sugerindo que a Globo vá para um paraíso sexual filmar cenas que a legislação brasileira veda. Além de moralmente errado, o resultado estético correria grande risco de ser ruim, algo não muito diferente de apenas mais uma fita pornográfica.

De resto, como já observou Voltaire, ?o segredo de aborrecer é dizer tudo?. Qualquer história, para ter graça, deve deixar coisas no ar. O totalmente explícito, ao castrar a imaginação do leitor/espectador, como que se anula.

Essa é uma das razões pelas quais, em minha modesta opinião, a literatura é essencialmente superior a formas de expressão artística que lidam com imagens, como a TV e o cinema. Assistir a um filme é como assinar um contrato de adesão: você acaba ficando com o pacote fechado, sem a possibilidade, que existe no livro, de moldar um personagem mais a seu gosto, isto é, de imaginar a protagonista com aquelas curvas que o deixam especialmente maluco.

Mas já estou me perdendo. É claro que todo autor escreve para um público, de carne e osso ou apenas imaginado pelo escritor. E esse público evidentemente acaba de algum modo influindo no trabalho. Quando interfere demais, é maior o risco de a obra sair desfigurada, traindo sua própria lógica interna.

Em ?Presença de Anita?, caminha-se sempre a um passo do paradoxo: como falar de pedofilia sem falar de pedofilia? O resultado é um texto que não convence, apesar das convincentes sinuosidades de Mel Lisboa.

A pergunta que fica é se a TV não é um veículo permeável demais a pressões -alguns diriam covarde- para tratar de temas polêmicos, como a pedofilia, que resvalem no limite da ilegalidade."

 

AS FILHAS DA MÃE NO JARDIM DO ÉDEN

"A chanchada volta ao horário das 7", copyright O Estado de S. Paulo, 8/09/01

"Agora que Jenifer se entregou e está devidamente encarcerada, é capaz que a espetacular história do seqüestro de Silvio Santos receba menos destaque e a TV volte à vida normal. Isso quer dizer que, tranqüilizado, o telespectador pode prestar atenção no resto da programação. Bom para o público, melhor para Silvio de Abreu que, depois de três anos, volta às novelas com a corda toda.

As Filhas da Mãe no Jardim do Éden, que substitui Um Anjo Caiu do Céu na Globo, devolve a boa e velha chanchada ao horário das 7. O que é um alento no mar de dramalhões que inunda a emissora – A Padroeira e Porto dos Milagres viraram um chororô sem fim.

Está certo que As Filhas da Mãe teve audiência menor do que sua antecessora na primeira semana (32 pontos de média no Ibope na Grande São Paulo, contra 36 de Um Anjo Caiu…), mas deve-se considerar que a estréia ocorreu em um período atípico, no qual o que não envolveu segurança, Silvio Santos, governador Geraldo Alckmin e polícia, esteve completamente fora de pauta.

O bom é que a nova novela devolve Sílvio de Abreu ao seu hábitat natural, que é a comédia. São dele, as memoráveis Guerra dos Sexos e Sassaricando.

Não quer dizer que ele é autor de um gênero só, Sílvio é responsável pelo melhor thriller que a TV produziu – A Próxima Vítima – no departamento de novelas.

Mesmo mergulhando em águas bem conhecidas, Sílvio consegue inovar. Por exemplo, utilizar o rap para situar o público a respeito da história de determinado personagem. Difícil saber se o recurso vai estar disponível durante a longa jornada de sete ou oito meses da história.

As Filhas da Mãe tem outro mérito, o de colocar os atores nos lugares certos. Regina Casé espirrada do vídeo quando a sua Muvuca fez água, está engraçada e convincente como a mulher do povo arretada, que quer acertar as contas com as amantes do finado. A Rosalva da novela remete à Darlene do filme Eu Tu Eles, de Andrucha Waddington, mas isso não é problema, os talentos devem ser aproveitados no campo em que mais rendem.

Fernanda Montenegro, como a estrela de Hollywood Lulu de Luxemburgo, está em sua melhor forma. A disputa das irmãs interpretadas por Andréa Beltrão, Bete Coelho e Cláudia Raia pela empresa da família é meio over, mesmo assim o o nonsense dos figurinos e recursos não prejudica a performance.

Essa volta de Silvio de Abreu, no entanto, veio meio impregnada do estilo Carlos Lombardi, seu ex-assistente em outras eras. Faz tempo que nenhuma novela coloca tantos homens bonitos – e tão sem roupa – em cena. Entre eles, Reinaldo Gianechini, Alexandre Borges, Thiago Lacerda e Lulo que, para deleite da maioria das telespectadoras, ajudam as gordinhas a manter a forma à custa de exercícios e muitos galanteios."

    
    
                     

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