RACISMO & TV
"?Tá faltando preto na televisão?, canta Ivo Meireles", copyright Folha de S. Paulo, 10/02/02
"Parceiro de Lobão em sucessos como ?Essa Noite Não? e ?Bangu 1, Polícia 0?, autor do samba-enredo com que a Mangueira ganhou o Carnaval de 1986, Ivo Meirelles, 35, está lançando seu terceiro disco solo, ?Samba Soul?, pelo selo Regata. A música de trabalho é ?Tá Faltando Preto na Televisão?, cujo clipe tem as participações de Hélio de La Peña (do grupo ?Casseta e Planeta?), Milton Gonçalves, Isabel Fillardis e Neuza Borges, entre outros artistas. ?Convidei pessoas que se destacaram pelo talento, sem ter que pedir favor a ninguém?, diz Meirelles. Ele falou ao TV Folha sobre a realidade que vê diariamente na TV, e que só deve mudar um pouco hoje e amanhã porque é Carnaval.
Como nasceu a inspiração para essa música que fala da falta de negros na TV?
No nosso dia-a-dia. A televisão dita moda, cabelo, roupa, gíria, comportamento, tudo. E está faltando negro na TV como está faltando nos shoppings, nas casas noturnas, nas faculdades, nos desfiles de moda. Qual programa de TV tem o perfil do negro brasileiro? Se isso começar a mudar na TV, vai abrir a discussão e podemos até consertar o que acontece no dia-a-dia.
E como fica a cabeça de uma criança negra que só vê os negros aparecerem na televisão como empregados subalternos ou como marginais?
A auto-estima dela fica lá embaixo. O menino não vê negros apresentando programas, protagonizando novelas. Não há uma auto-referência para ele. Vendo a TV, eu não me identifico com o país em que vivo.
Você acha que algo como a cota mínima obrigatória de negros nas universidades deveria existir também na TV?
Não acho certa essa cota, nem para as universidades nem para a televisão ou qualquer outro setor. Isso só vai aumentar o preconceito. Vão dizer: ?Você só está aqui por causa da lei?. A realidade só vai mudar se houver um processo de discussão no dia-a-dia. É preciso conscientização, informação e educação.
Você já se sentiu discriminado por produtores ou apresentadores de TV?
Sinto e vejo isso, todos os dias.
Você sentiu isso, por exemplo, quando levou o grupo Funk?n Lata para cantar em programas de TV vestido de gari?
Também. Fiz aquilo para homenagear os pais daqueles meninos. A maioria trabalha como gari. Foi para mostrar, principalmente para os próprios garotos e para a sociedade que discrimina, que aquela é uma profissão digna."
O CLONE
"Temas atuais viram delírios em ?Clone?", copyright O Estado de S. Paulo, 10/02/02
"Telespectadores irados não fizeram outra coisa senão reclamar esta semana; acham que o capítulo de terça-feira da novela O Clone fez a apologia da droga. O problema é que a própria novela de Glória Perez é uma droga, o que permite lembrar uma história ocorrida com a jornalista Leila Reis. A titular deste espaço sonhou que devia entregar a O Clone o prêmio de melhor novela do ano. Acordou suando do que, obviamente, era um pesadelo. O Clone não é a melhor novela, mas talvez seja o melhor humorístico. Você não ri a metade com Zorra Total.
Glória Perez é a Janete Clair do terceiro milênio. Você com certeza já ouviu que Janete, certa vez, tendo de resolver o imbróglio em que se transformara a novela Anastácia, providenciou um terremoto que matou metade dos personagens. Glória Perez continua fazendo esse tipo de coisa. E o faz com convicção. Leva o absurdo ao limite, sem nenhum compromisso com a realidade.
Tem respaldo no público. Faz uma média de 47/ 48 pontos no ibope. Não são os 90 que Janete obteve com O Astro, mas representam muito hoje em dia.
Manoel Carlos escreve novelas com o pé na realidade. Introduz assuntos do cotidiano nas suas tramas. Glória delira. Até quando trata de assuntos ?atuais? – cultura muçulmana, clonagem -, o negócio dela é a piração. E não adianta dizer que é adepta de campanhas sociais. No caso de Explode Coração, foi a das crianças desaparecidas. Aqui, serão as drogas e a hanseníase. Mel, desiludida, vai virar drogada e logo teremos um leproso. A questão das drogas começou mal, com protestos do público, mas isso logo, logo vai mudar.
E a novela? Adianta dizer que é, como já foi definida, o ?samba do muçulmano doido?? No plano internacional, tem se beneficiado do impacto da tragédia de 11 de setembro. A curiosidade por temas muçulmanos tem feito O Clone vender até no mercado norte-americano.
Semanas atrás, a novela foi usada para vender o Maranhão e a candidatura da presidenciável Roseana Sarney. A pergunta que não quer calar: a campanha era de Glória ou da Globo? Há muita política embutida em O Clone. Stênio Garcia pode estar convencido de que seu personagem ajuda a vender as idéias do profeta, mas é duro agüentar seus discursos humanistas – com aquele sotaque – em meio à cantoria na casa dos marroquinos. Homens e mulheres passam o tempo dançando e as mulheres, no melhor estilo de Avassaladoras, só pensam em homens. É a maneira delas de afirmar-se num mundo dominado pelo machismo.
Glória Perez pode até dizer que tem assessoria de pesquisadores para fundamentar essa visão ?islâmica?, mas não seria nada mau se, como seu colega Sílvio de Abreu, fosse um pouquinho cinéfila. O grande filme marroquino O Silêncio dos Palácios discute a condição da mulher nessa cultura por meio de silêncios que seriam bálsamos para os olhos e ouvidos poluídos por O Clone.
Do ponto de vista da emissora, a novela vai bem de audiência e, portanto, é um sucesso. Do ponto de vista cultural, é um desastre. Muito já se falou sobre o aumento do público, a partir do real, nas faixas menos favorecidas, economicamente. É um discurso que parece negar aos excluídos a possibilidade de acesso à TV. Ninguém duvida quanto esse bem de consumo faz parte do imaginário das pessoas. O próprio Telejornal já publicou uma reportagem sobre o público que tem TV e não tem refrigerador nem fogão. A programação, hoje, reflete muito o baixo nível cultural do público – ou é o público, que não teve acesso à educação, que se ressente do baixo nível da programação, que o puxa para baixo? Programas como o de João Kleber, o êxito de Casa dos Artistas e de O Clone, tudo isso tem a ver com uma pauperização do gosto.
Essa questão do gosto é polêmica. Não é de hoje que é chique ser brega. A TV vende a idéia de que todos somos. Dentro dessa crença, os personagens dançam em cena e nós, o público, dançamos fora dela."