11 DE SETEMBRO
"Mídia americana atenua o patriotismo", copyright Folha de S. Paulo, 12/09/02
"A mídia dos EUA recuperou seu papel de crítica imparcial e a objetividade que, segundo várias análises, desapareceram nos meses seguintes aos atentados de 11 de setembro 2001. É o que dizem observadores tradicionais do jornalismo americano, para quem o alto grau de patriotismo e a natureza fechada do atual governo já não influenciam ou inibem a linha editorial e o ímpeto investigativo dos principais diários e emissoras americanas.
Ainda que essa opinião não seja unânime, prepondera a sensação de que a mídia americana retomou sua frieza. Sinais de jornalismo exemplar e independente teriam proliferado, como críticas veementes aos serviços de inteligência e reportagens sobre erros dos militares no Afeganistão.
Entre essas reportagens estaria a matéria de Steve Inskeep, correspondente da rádio pública NPR (National Public Radio), que revelou militares americanos compensando, com dez notas de US$ 100, familiares de vítimas civis de um bombardeio que, naquele momento, nem o Pentágono reconhecera ter sido equivocado.
?Inskeep não foi o único?, disse Al Tompkins, professor do instituto de jornalismo Poynter, na Flórida. ?O ?New York Times? acumula uma montanha de matérias sobre vítimas civis de bombardeios americanos. Além disso, a Casa Branca e os serviços de inteligência são diariamente criticados por terem ignorado indícios de terrorismo antes de 11 de setembro e de causar pânico com alertas excessivos depois disso.?
Tompkins lembra que não se confirmou a previsão de que todos os jornalistas americanos no Afeganistão operariam em ?pool?, grupo de repórteres sujeitos a restrições impostas pelos militares. ?Jornais, rádios e TVs enviaram seus próprios correspondentes, que puderam trabalhar de forma independente.?
Para Michael Getler, ombudsman do ?Washington Post?, a mídia impressa começou a parecer mais equilibrada e independente na mesma velocidade com que a dissensão floresceu na opinião pública. Para ele, os aparentes oficialismo e imobilismo dos diários impressos não decorreram de covardia ou do governismo da direção, mas da falta de visões distintas, dentro da sociedade, sobre a natureza do que ocorreu e sobre os rumos da guerra antiterror.
?Jornais não publicaram visões dissidentes porque elas não existiam. Havia falta de dissensão na sociedade?, disse Getler à Folha. Segundo o ombudsman do ?Post?, os jornais exibiram autonomia logo no dia seguinte ao dos atentados, quando cobraram uma atuação mais pública do presidente George W. Bush, que havia sido ?sequestrado? pelo serviço secreto. ?Naquela ocasião, houve dissensão e os jornais a publicaram com ênfase.?
Getler não quis confirmar versões de que o ?Post?, a pedido do governo, omitiu várias informações de seus leitores que, segundo a Casa Branca, poderiam ter violado a segurança nacional. ?Tenho certeza que o jornal recebeu pedidos para não publicar informações e pode ter decidido atender a alguns desses pedidos. No entanto, o fato não tirou a independência do jornal nem o impediu de criticar o caráter fechado dessa administração.?
No entanto, Getler faz uma crítica ao jornal para o qual é pago para analisar. Ele acredita que o ?Post? não tem publicado com ênfase adequada a opinião de políticos e analistas contrários a um ataque preventivo ao Iraque. ?Tenho escrito isso nas minhas colunas. Mas o jornal tem melhorado recentemente.? De modo geral, ele acha importante registrar que os atentados de 11 de setembro foram ?uma história humana e a mídia acertou ao refletir a emoção que as pessoas sentiram?, apesar de alguns exageros.
Numa entrevista em maio à TV britânica BBC, o conhecido âncora Dan Rather, da TV CBS, fez um mea culpa por ter se deixado contaminar pelo clima de patriotismo e não ter questionado adequadamente o governo.
Em setembro de 2001, Rather chorou durante entrevista na TV, na qual responsabilizou a inveja pelos atentados de 11 de setembro. ?Eles têm inveja de nós?, disse. ?Não aceitam que sejamos os melhores em tudo.?"
"O 11 de setembro e suas projeções", copyright Folha de S. Paulo, 11/09/02
"Logo depois do ataque ao World Trade Center, era comum observar que o mundo nunca mais seria o mesmo e que tudo tinha mudado. Por volta de outubro, um amigo me disse: ?Muito bem, concordo. O mundo mudou. Mas mudou em quê??. A pergunta me pareceu ao mesmo tempo simples demais e difícil demais para ter alguma resposta.
Àquela altura, eu estava como que convicto de minhas próprias incertezas: lembro-me de temer a expansão dos taleban nos países vizinhos. A estridência do discurso maniqueísta de Bush, por sua vez, prenunciava um tipo de conflito do qual não haveria como voltar.
O espetáculo televisivo da mobilização popular norte-americana, com bandeiras, hinos e cenas edificantes em toda parte, deixava-me francamente inquieto. Os Estados Unidos nunca haviam sido atacados em seu território; natural que reagissem.
Mas toda a ideologia hollywoodiana em torno de mocinhos e bandidos parecia pronta a criar, de maneira mais intensa do que durante a própria Guerra Fria, uma espécie de discurso único, pronto a considerar qualquer discordância ou reserva como sinal de traição.
Da perspectiva daqueles primeiros dias depois do atentado, era bem razoável supor, assim, uma mudança profunda no cenário ideológico. Toda a mentalidade do ?politicamente correto? iria ser substituída; aquilo que o famoso ?Consenso de Washington? representara no plano da economia estava prestes a encontrar, pensava eu, uma tradução no âmbito cultural e político. Mais repressão interna, mais intolerância, mais ortodoxia. Nessa perspectiva, os anos Reagan seriam comparativamente amenos perto daquilo que George W. Bush estava preparando.
Previsões desse tipo acabam se revelando mais imprecisas do que pareciam no momento em que foram formuladas; é sempre possível considerá-las mais ou menos certas -e mais ou menos erradas-, já que tudo é muito uma questão de grau.
O certo, entretanto, é que não houve expansão do extremismo islâmico; contra muitas previsões, aliás, os taleban foram derrotados no Afeganistão, depois de uma guerra não tão demorada nem tão difícil quanto se dizia.
George W. Bush parece-me detestável como sempre -um pouco mais até. Mas sua inclinação para o fundamentalismo logo encontrou fortes resistências; iniciativas de defesa das liberdades individuais surgiram em resposta à famosa ?guerra contra o terrorismo?, e manifestações de intolerância contra muçulmanos foram rechaçadas com rapidez.
Mesmo as movimentações de crítica à globalização -eu temia que fossem reprimidas e estigmatizadas pelo maniqueísmo galopante- não sofreram abalo depois do atentado; ao contrário, se alguma coisa caiu de moda nestes últimos tempos foi o hábito de classificar como ?xiitas? os participantes do Fórum de Porto Alegre. Mesmo em Davos, o clima foi menos fundamentalista do que em anos anteriores.
O que concluir disso tudo? Não só que o mundo mudou menos do que se supunha, mas também outra coisa, que me parece mais importante e um pouco mais difícil de resumir.
Creio que as imagens do 11 de setembro -primeiro, as do próprio atentado; depois, todas aquelas cenas de mobilização patriótica transmitidas pela CNN- tenham sido de algum modo ?maiores? ou mais eloquentes do que os acontecimentos em si mesmos.
A quantidade de bandeiras americanas, os olhos lacrimejantes de Bush, as cenas dos bombeiros salvando vidas, todo o espetáculo cívico transmitido pela televisão pareceu-me, naquele momento, evidência de que uma nova mentalidade, ultranacionalista, estava a ponto de se impor nos Estados Unidos.
Esqueci-me de que aquilo era também -e acima de tudo- um espetáculo. Claro que refletia a comoção autêntica de todo um país, agredido brutalmente. Mas as cenas obedeciam às imposições típicas do espetáculo: uniformidade estética, de concentração semântica e também de transitoriedade.
Eram unívocas, repetitivas, altamente emocionantes -mas não se destinavam a durar para sempre; todo espetáculo, por mais importante que seja, também tem hora para acabar.
O próprio atentado também foi concebido como um espetáculo. Se fosse um filme (e naquele dia estávamos certos de que a realidade estava imitando o cinema com exatidão), aquele ataque seria apenas um primeiro aviso, uma primeira demonstração de força, à qual novas ameaças e exigências haveriam de se seguir. Pensou-se numa ?terceira guerra mundial?, um pouco como nas histórias de invasão marciana.
Entretanto, para manter o raciocínio -que é de mau gosto, reconheço-, o ataque não foi exatamente comparável a um filme, mas, sim, ao ?trailer? de um filme que não houve.
Sem dúvida, tanto do lado do ?Bem? quanto do ?Mal?, a realidade foi menos carregada de sentido do que as imagens produzidas pela televisão. Talvez por isso mesmo o 11 de setembro seja hoje lembrado como uma ?data? -obviamente marcante-, mas não como o início de uma ?nova era?, como por exemplo a tragédia de Hiroshima, que marca o início da era nuclear. Novamente não sei se estou certo, mas sinto algum alívio."
"Jornalista britânica detida pelo Taleban se converte ao islã", copyright Folha de S. Paulo, 11/09/02
"A jornalista britânica Yvonne Ridley, 44, que ficou detida no Afeganistão de 28 de setembro a 8 de outubro por ter entrado no país sem permissão do grupo extremista islâmico Taleban, converteu-se ao islamismo.
Ridley, que voltou ao Afeganistão duas vezes após a libertação, critica a guerra antiterrorismo e o provável ataque ao Iraque.
A seguir, trechos da entrevista que concedeu à Folha, por telefone, de Londres.
Folha – Cogitou-se a possibilidade de que a síndrome de Estocolmo [em que o sequestrado manifesta simpatia pelo captor] tenha levado a sra. à conversão ao islamismo…
Yvonne Ridley – Não é verdade. No sexto dia da detenção, um líder religioso me visitou. Quis saber se eu gostaria de me converter [Ridley era protestante]. Pensei que, se dissesse ?sim?, acusariam-me de oportunismo. Se dissesse ?não?, de insultar o islã e me apedrejariam. Argumentei que não podia mudar tanto minha vida na prisão. Disse que, se me libertassem, estudaria mais sobre o islã. Depois de solta, o que começou como um exercício puramente acadêmico transformou-se em uma viagem espiritual. Na verdade, gostaria de saber naquela época o que sei hoje porque eu perguntaria por que eles tratavam as mulheres tão mal. Aquilo não tinha nada a ver com o islã.
Folha – O que a atraiu no islã?
Ridley – Uma série de fatores. Comecei a ler sobre o islã e sobre a crença geral de que as mulheres são subjugadas. O Alcorão deixa bem claro que as mulheres são iguais aos homens. Foi uma surpresa. Fui a centros islâmicos e fiquei impressionada com as irmãs. Houve uma campanha de desinformação sobre o islã desde as cruzadas. Dizem que é violento, mas não é verdade. Inspirou muitos estudiosos, poetas e artistas.
Folha – Em geral, como as pessoas reagem à sua decisão?
Ridley – Amigos e familiares, em sua maioria, ignoraram minha decisão e fingiram que nada mudou. Não querem nem falar sobre o assunto. Algumas pessoas me ridicularizaram e outras me deram bastante apoio. Uma de minhas melhores amigas, que é judia, deu-me muita força.
Folha – A sra. entrou no Afeganistão usando uma burga [roupa afegã que cobre o corpo todo?. Qual a sua opinião sobre uso obrigatório da burga e sobre o Taleban?
Ridley – A burga é usada há séculos por razões culturais. O Taleban tornou seu uso obrigatório, mas não há nada no Alcorão sobre essa roupa.
Folha – Quantas vezes a sra. voltou ao Afeganistão desde sua libertação? O que mudou lá?
Ridley – Fui duas vezes. Quando o Taleban estava no controle, havia leis, apesar de absurdas. Hoje, o país está em caos. As mulheres continuam a usar a burga e ainda não têm a mesma voz que os homens. Por exemplo, no mês passado abriram uma piscina pública apenas para homens e garotos.
Folha – Como está a reconstrução do país?
Ridley – Os EUA são muito bons em fazer guerras, mas não em consertar o estrago. O Exército ainda está lutando essa guerra ridícula contra o terrorismo, mas os EUA não participam das forças de paz. Ninguém sabe onde está Bin Laden, o mulá Omar. O que essa guerra conseguiu até agora?
Os norte-americanos ainda sentem uma dor profunda. Muitos nem podem enterrar as pessoas que perderam nos atentados, mas o governo deveria questionar por que isso ocorreu. Inocentes não devem pagar pela política externa dos EUA. As atrocidades israelenses contra os palestinos são ignoradas, e sinto-me revoltada com a situação em Guantánamo. Se eu tivesse sido detida, espancada e colocada em uma jaula, seria um ultraje. Essas pessoas ainda precisam ser julgadas e não têm direito a advogado. Temos sete cidadãos britânicos lá.
Folha – Em seu livro ?In the Hands of Taleban? (nas mãos do Taleban), a sra. diz que a CIA tentou matá-la ou incentivou o Taleban a fazer isso. Por quê? A sra. tem provas?
Ridley – Quando fui sequestrada, havia muito apoio para a guerra no Afeganistão. Os EUA precisavam contrapor os que se opunham à guerra. Se eu tivesse sido morta pelo regime afegão, isso teria ajudado a começar rapidamente a guerra e a silenciar os críticos. Foi um presente divino para eles quando uma mãe branca e ocidental, com uma filha de nove anos, foi sequestrada. O Taleban recebeu um arquivo que informava que eu era uma espiã, por iniciativa do serviço secreto dos EUA e do Mossad [serviço secreto israelense?. Quando voltei para casa, descobri que meu apartamento havia sido vasculhado.
Folha – Qual sua opinião sobre a teoria do choque de civilizações, do professor Samuel Huntington?
Ridley – É ridículo falar em uma civilização judaico-cristã de um lado e de uma ?não-civilização? islâmica, ameaçadora, do outro. Os EUA são uma superpotência que busca um controle total sobre o mundo. Nosso premiê, Tony Blair, cada dia parece mais o poodle de George W. Bush.
Folha – Qual sua opinião sobre o provável ataque contra o Iraque?
Ridley – Sabemos que, quando os norte-americanos vão à guerra, vão a 30 mil pés de altura. Esse tipo de guerra só prejudica os civis."