LITERATURA DA PERIFERIA
Associação de Incentivo às Comunicações Papel Jornal (*)
O NO. publicou reportagem sobre a revista Literatura Marginal, organizada pelo escritor Ferréz e, segundo ele próprio, feita "pela escória" da sociedade. Ainda que essa expressão soe estranha na boca de Ferréz e que haja alguns erros factuais pelo texto (o livro "Capão Pecado" foi lançado no ano 2000, e não "há dois anos"), o artigo mostra uma boa compreensão do universo dos autores da revista, o que é pouco comum na imprensa brasileira ? tão perspicaz para compreender toda a dialética do exercício do poder, a complexidade da gerência de grandes empresas, as várias tendências da moda nos bairros e lojas elegantes e, cada vez mais, as catástrofes e os dramas existenciais dos ricos, chiques e famosos, tão rasteira e revanchista quando é obrigada a pôr o pé na periferia deste universo, ainda que no centro da cidade.
Elogio feito, é preciso dizer que, mesmo que involuntariamente, o NO. se atrapalha quando afirma que "a revista é lançada no rastro de um interesse crescente e com certa dose de inclinação politicamente correta pela produção cultural das periferias". E nos cita, completando que "nos últimos meses, há uma coleção de iniciativas do gênero. A revista independente Simples dedica duas páginas a cada número para a seção Becos e Vielas Z/S, onde escrevem moradores da periferia".
Os conceitos nunca foram o forte do jornalismo mesmo, mas convém estar mais atento a eles. O professor de Filosofia da USP Renato Janine Ribeiro, em seu recente livro "A sociedade contra o social", dedica um capítulo apenas à discussão do termo "politicamente correto". Na sua opinião, o "PC" não cola no Brasil não por seus defeitos, mas por suas qualidades. Ou seja: para ele, não é o exagero da postura politicamente correta que encontra resistência nos meios políticos e intelectuais brasileiros, mas o fato de ser ele uma estratégia de defesa de parcelas da população discriminadas ou mesmo perseguidas pela sociedade e/ou pelo Estado.
Ruído com alvo certo
A conseqüência prática disto é que o rótulo "politicamente correto" acaba servindo para excluir da arena política toda voz discordante ? ou, pelo menos, para colocá-la no seu devido lugar: de oprimido. Por essa razão, Becos e Vielas Z/S não rejeita completamente o rótulo de politicamente correto, o que apenas ajudaria a reforçar o preconceito contra ele. Se querem nos chamar de politicamente corretos, que o façam, mas que continuem nos escutando.
Continuem, mas saibam que achamos mal aplicado o termo "politicamente correto". Coloca no mesmo saco o interesse por obras de arte como o CD dos Racionais e o livro de Ferréz e o por materiais jornalísticos como a seção Becos e Vielas Z/S da Simples. Se o intuito não era desmoralizar o sentido desses trabalhos, certamente o texto ajuda a mantê-los um tanto marginalizados.
Essa confusão toda pede uma explicação melhor do projeto Becos e Vielas Z/S. Na verdade, mais que uma seção na Simples, Becos e Vielas Z/S é um jornal-laboratório sem periodicidade fixa (a segunda edição acaba de ser publicada), ainda, realizado por um grupo de moradores do Jardim Ângela (Zona Sul de São Paulo), auxiliados por instrutores que são também jornalistas profissionais, de vários órgãos da grande imprensa. Todos os textos, as fotos e a diagramação são realizadas pelos moradores. A seção na Simples é apenas um dos laboratórios do projeto, que quer estimular a produção e a difusão cultural nas periferias de São Paulo. Becos e Vielas não é um pedido de ajuda ou mera lamentação ou murmúrio de cidadãos indefesos. É uma manifestação cultural de cidadãos com direitos, nem sempre respeitados, é verdade. Não é uma concessão "politicamente correta" de um veículo de comunicação, muito menos benemerência.
Se Becos e Vielas, Capão Pecado, Sobrevivendo no Inferno e Literatura marginal falam para um público que vai além da periferia, a ponto de interessar leitores tão diversos como os da Simples e os da Caros Amigos, não há mal nenhum: esse alcance, longe de descaracterizá-los como discursos, faz parte deles. Num sentido amplo, essas obras são ações políticas, que atingem moradores da periferia e moradores de fora da periferia ? às vezes, tão desrespeitados quanto. Dizer que só há interesse por Becos e Vielas, Literatura Marginal, Racionais, Capão Pecado graças a uma cultura "politicamente correta" acaba por colocar à margem quem já está lá. Trata-se de um ruído que embaralha vozes que têm algo a dizer a toda a sociedade e que, com razão, queixam-se de tanto bater de caixa para calá-las.
(*) Grupo que edita o jornal-laboratório Becos e Vielas Z/S, da Zona Sul de São Paulo