Andréia Barbieri (*)
No dia 16 de julho, o caderno Mais! da Folha de S.Paulo publicou como artigo de capa um texto do jornalista e escritor Tom Wolfe, conhecido no Brasil por seu romance A fogueira das vaidades. No artigo "O império do marxismo rococó", Wolfe trata de exaltar a posição que os EUA ocupam na sociedade contemporânea e critica os intelectuais americanos que não reconhecem esse auge que, segundo ele, tomou todo o século XX e se estenderá ao próximo.
No texto, Wolfe insta os historiadores a perceber todo o poder e grandeza que o "império americano" alcançou. Não pretendo, neste texto, pronunciar-me sobre essa questão mas, como historiadora, não posso me furtar à denúncia das distorções de caráter histórico a que o autor recorre para defender sua posição.
O primeiro século americano
O primeiro problema que um historiador detecta nesse texto é o anacronismo. Wolfe analisa o século que agora finda (e não em 1999, como ele afirma) do ponto onde estamos, e não em sua totalidade. A posição de destaque político-econômico ocupada pelos EUA é recente. A economia americana, que florescia desde o final do século XIX, foi terrivelmente abalada pelo crash da bolsa de 1929 e, no campo político, seu espectro de influência restringia-se aos países pobres vizinhos. Nada comparável ao poder político da Inglaterra, França e Áustria, que dominavam a cena geopolítica desde o século anterior.
O anacronismo manifesta-se outra vez quando autor, descuidadamente, compara as ações realizadas pelos povos hunos e magiares com as de nazistas (e comunistas), produzidas em épocas e culturas totalmente distintas da contemporânea. Violência e morte são conceitos produzidos culturalmente, que sofrem grandes transformações no curso da História. Traçar paralelos históricos é uma tarefa complexa, pode-se facilmente cair no abismo da incoerência.
Leviandades históricas
Um dos maiores problemas do texto talvez seja a facilidade, a naturalidade com que Tom Wolfe confere igualdade a nazistas e comunistas. O nazismo tem como fundamento de seu discurso a diferença racial. Sua expansão visa não só a dominação das outras raças como também sua eliminação. A morte e o genocídio são intrínsecos ao discurso nazista. Por outro lado, a base do discurso comunista é a igualdade entre os homens e seu pleno desenvolvimento pessoal. Os julgamentos em massa (conhecidos como expurgos) que condenaram milhares à pena capital ou os outros tantos que morreram de fome pela falta de gêneros na Rússia não podem ser usados para colocar no mesmo patamar regimes tão diversos.
O autor recorre a distorções tão gritantes em sua ânsia de emparelhar nazismo e comunismo que listá-las todas seria tarefa exaustiva. Sua frase a seguir é tão cheia de absurdos históricos que fica difícil dizer por onde começar: "fascismo era um neologismo marxista, a que tomaram de empréstimo ao nome do partido de Mussolini – os ‘fascisti’ –, habilmente acobertando o fato de que os nazistas (assim como os porta-estandartes do marxismo, os comunistas soviéticos) eram socialistas revolucionários: para irritação dos marxistas, Nazi era uma abreviatura de Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães." Vale reproduzir o único fragmento que contém uma informação correta: nazi era realmente a abreviação para Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães. Entretanto, socialista não está aqui relacionada com o socialismo marxista e sim referindo-se ao social, à sociedade. E fascismo não vem de nenhum neologismo marxista (seria interessante que Wolfe apontasse onde aparece essa palavra em Marx) e sim da idéia de um poder forte, autoritário, mas que representasse o povo: " uma só face e um só povo". Só para acrescentar um dado a mais, os partidos comunistas foram perseguidos desde a criação tanto do partido fascista quanto do nazista, e estes surgiram justamente para fazer frente ao crescimento da esquerda em seus respectivos países.
Uma última palavra
O texto segue ainda com outros problemas, e não valeria a pena enunciá-los todos, mas gostaria ainda me posicionar quanto a crítica que Tom Wolfe produz com relação ao papel do intelectual na sociedade contemporânea. Ao contrário dele, acredito ser de extrema importância o posicionamento crítico que o intelectual estabelece em relação aos consensos estabelecidos. Por mais que eles possam parecer pessimistas para aqueles que pretendem ver um futuro promissor para a humanidade, é por meio do discurso dissonante que a sociedade pode estabelecer um ponto de reflexão sobre as decisões que toma cotidianamente e, deste modo, entender com menos ingenuidade a realidade que vive. Foi por meio do discurso dissonante de muitos desses intelectuais que aconteceram as transformações sob as quais baseia-se a sociedade contemporânea, como a Revolução Francesa, a Revolução Russa e a própria Independência dos Estados Unidos.
(*) Historiadora
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