JORNALISMO LITERÁRIO
“Saudades das Pretinhas”, copyright Carta Capital, 24/09/03
“Certo dia, andando pelo Leblon, o jornalista Joel Silveira encontrou na rua o poeta e cronista Paulo Mendes Campos (1922-1991). ?Encontrei-o no começo da tarde na avenida Ataulfo de Paiva e ele foi logo dizendo:
– Estou faminto e sedento. Passei o dia inteiro lá no centro. Um horror! Meu cavalo por um uísque. Cavalgas comigo??
Joel Silveira anota então que começaram a conversar num bar e seguiram para o apartamento do cronista. ?Na época, eu estava escrevendo uma série de reportagens-entrevistas para a revista Status, e vi logo que aquela conversa com Paulinho, que estava com toda corda, daria uma excelente matéria. Expliquei a situação:
– Vamos gravar tudo isso, Pablito. Você está de língua solta, e vai salvar o meu ?vale? mensal.?
Dessa forma tem início uma saborosa conversa – ?das cinco da tarde às dez da noite, ou seja, cinco horas e quase um litro de J&B? – sobre casamento, amizades, Mário de Andrade, uísque, Otto Lara Resende, Vinicius de Moraes, Pablo Neruda, Paris, o chofer de Picasso, Sartre e mais um pouco.
O perfil – Paulo Mendes Campos: um erudito sem erudição – está incluído no volume A Milésima Segunda Noite da Avenida Paulista, uma coletânea de textos de Joel Silveira escritos ao longo de 60 anos de jornalismo – no qual consta, entre muitos outros, o famoso texto que dá título à coletânea, sobre o casamento da filha do conde Francisco Matarazzo Júnior.
Mais que a marca e o estilo de Silveira, notáveis, por sinal, salta aos olhos no texto sobre Paulo Mendes Campos o exercício de um tipo de jornalismo que, com poucas exceções, não é mais praticado no Brasil – um tempo em que os jornalistas ?batucavam as pretinhas? (como se dizia sobre o ato de datilografar em Remingtons e Olivettis).
Em Encontro com Chatô, Silveira conta que, em 1944, recebeu a seguinte tarefa de Carlos Lacerda, então diretor da agência de notícias do Grupo Diários Associados:
– Você vai percorrer todas as capitais do Nordeste, de Fortaleza a Salvador, e de cada uma delas me mandar uma reportagem sobre um assunto local.
Ou seja, Silveira partiu para uma viagem que durou 25 dias sem uma pauta predefinida, sem pressa para cumprir prazos, sem limites de orçamento, sem qualquer preocupação sobre o espaço que seus textos deveriam ter – com liberdade total, enfim.
Num tempo sem tevê e internet, comunicações por telefone precárias, Silveira podia se dar ao luxo até de ignorar os apelos que passou a receber, por telegrama, nas diversas escalas da viagem, para que retornasse urgentemente ao Rio de Janeiro. Ao regressar, foi recebido no escritório de Assis Chateaubriand, o Roberto Marinho da época, que primeiro lhe deu uma bronca de pai pra filho:
– Onde diabos o senhor se meteu, seu Silveira? Vosmicê não sabe cumprir ordens, seu Silveira?
A conversa prosseguiu com um pedido de demissão de Silveira, assim retrucado por Chatô:
– Seu Silveira, desde que o senhor chegou já me deu muita dor de cabeça, já me indispôs com amigos, me criou problemas seriíssimos, seu Silveira. E agora sobe aqui para me dizer que vai embora. Não vai não, seu Silveira.
E seguiu-se então o convite/convocação de Chatô para Silveira embarcar para a Itália, onde viria a ser o correspondente dos Diários Associados junto à Força Expedicionária Brasileira. Uma ordem que se encerrou com a célebre frase de Chatô:
– Vá para a guerra, seu Silveira, mas, por favor, não me morra! Não me morra, seu Silveira! Repórter não é para morrer. Repórter é para mandar notícias. Vá, seu Silveira.
Fernando Morais anota no posfácio desta coletânea que os textos de Silveira retratam ?o surgimento no Brasil do gênero jornalístico chamado de grande reportagem?. Segundo Silveira, escreve Morais, a grande reportagem surgiu como resposta à censura imposta aos meios de comunicação pela ditadura Vargas (1937-1945). ?Sem poder falar do que importava – a política – os jornais abriam espaço para a investigação de temas menos candentes?, escreve o autor de Chatô e Olga.
Na visão de Morais, o gênero ganhou posteriormente outros nomes, sendo também conhecido como: novo jornalismo, jornalismo investigativo e jornalismo literário. Há controvérsias.
Esses três termos têm origem nos Estados Unidos, onde, a partir dos anos 40 e 50, uma geração de jornalistas desenvolveu técnicas narrativas que se distinguiam claramente das praticadas pelos profissionais então em atividade.
Uma parte da produção daquele período está sendo resgatada por uma coleção de livros da Companhia das Letras, coordenada pelo jornalista Matinas Suzuki Jr., intitulada Jornalismo Literário. Os primeiros títulos lançados foram Hiroshima, de John Hersey, e O Segredo de Joe Gould, de Joseph Mitchell. A eles seguem agora o livro de Joel Silveira e A Sangue Frio, de Truman Capote (1924-1984).
Na orelha da primeira edição (Nova Fronteira, 1966), A Sangue-Frio, então grafado com hífen, é apresentado como ?uma obra-prima? e ?resultado de um antigo sonho? de Capote: ?O lançamento de uma nova forma literária – o romance de não-ficção?.
O jornalista Ivan Lessa usa um outro termo para definir o trabalho de Capote: romance sem ficção. Lessa traduziu a primeira edição e agora assina o prefácio desta edição (que tem tradução de Sergio Flaksman). ?Para ele (Capote), jornalismo era apenas fotografia literária. Ele ambicionava algo mais?, escreve.
Do que se trata? Para início de conversa, Capote passou seis anos (atenção: seis anos) apurando e escrevendo a história que resultaria em A Sangue Frio. O subtítulo incluído na capa da nova edição anuncia o tema, incluindo o desfecho, sem fazer rodeios: ?A história dos quatro membros da família Clutter brutalmente assassinados, e dos dois criminosos, executados cinco anos depois?.
Capote já era um escritor conhecido quando leu, em 1959, uma pequena notícia no The New York Times a respeito do assassinato de uma família na cidade de Holcomb, no Estado de Kansas. Já sonhava em realizar um trabalho de vulto com a técnica que batizou de romance de não-ficção. Apoiado pela revista New Yorker, embarcou para Holcomb.
Algumas características do método de Capote são elencadas por Suzuki no posfácio do livro. O escritor orgulhava-se de fazer entrevistas sem tomar notas ou gravá-las. Afirmava ter grande capacidade de memorizar o que era dito, com a vantagem de não constranger o entrevistado com o gravador ou o bloco de notas. Capote evitou se colocar ao longo do texto, reforçando uma idéia de objetividade jornalística. O escritor também afirmava ter feito rigorosa investigação jornalística, debruçando-se sobre o inquérito e fazendo centenas de entrevistas.
Assim como Capote, também John Hersey e Joseph Mitchell, todos editados na coleção Jornalismo Literário, publicaram seus textos originalmente na revista New Yorker. Se Joel Silveira fosse americano, provavelmente também o faria.
Por muitas décadas, a revista ofereceu recursos de todo o tipo a jornalistas interessados em produzir textos com qualidade e profundidade sem paralelo na imprensa. Tornou-se ?o veículo por excelência do jornalismo literário?, como observa Suzuki. Desnecessário dizer que, assim como não se fabricam mais Capotes e Silveiras como antigamente, a New Yorker também não é mais aquela. Ainda é uma revista de qualidade, diferenciada, mas hoje sujeita a injunções do mercado que horrorizariam os seus fundadores.”
“A sedução entre jornalismo e literatura”, copyright O Estado de S. Paulo, 21/09/03
“Durante seis anos, o escritor Truman Capote pesquisou exaustivamente os fatos que cercavam o assassinato de um fazendeiro e sua família em uma pequena cidade do Estado do Kansas, em 1959. Ele descobrira a notícia nas páginas internas do The New York Times e tamanha persistência foi recompensada: o assunto rendeu-lhe uma série de artigos na revista The New Yorker que, reunidos, transformou-se em um livro clássico, A Sangue Frio (424 págs., R$ 39,50), relançado pela Companhia das Letras nesta semana.
Capote dizia que não encerraria a história sem saber o destino dos acusados, que terminaram enforcados. Seu relato entrou para a história das relações entre jornalismo e literatura, criando um texto apurado e definitivo sobre como um momento traumático pode marcar profundamente uma sociedade considerada provinciana. Lançou também um conjunto de regras básicas, que seria avidamente utilizado pelos seguidores do jornalismo literário no mundo inteiro.
?Li A Sangue Frio mais de 20 vezes como um aprendizado, analisando cuidadosamente a estrutura dos capítulos e a forma como Capote iniciou cada parágrafo?, conta o jornalista e escritor Caco Barcelos, autor de Rota 66 e Abusado (ambos editados pela Record), livros em que tratou de temas delicados, como métodos de extermínio da Rota e o violento controle do tráfico de drogas. ?Em cada palavra do escritor americano é possível identificar um exaustivo trabalho de pesquisa.?
Barcelos, atual correspondente da Rede Globo em Londres, utilizou uma técnica semelhante à de Capote, que se dizia o autor do ?romance de não-ficção (ou sem-ficção)?, na apuração de suas histórias. ?Construí minha literatura na rua, ou seja, entrevistando um grande número de pessoas que me oferecessem todos os detalhes possíveis?, explica. ?Com isso, pude escrever um texto com menos adjetivos e mais verbos.?
Ao contrário de Capote, porém, Barcelos gravou algumas conversas – o escritor americano dizia que gravador e bloco de anotações intimidavam os entrevistados, que perdiam a naturalidade e, por isso, deixavam de relatar detalhes importantes. ?Procuro apenas ouvir e depois reproduzir a essência do diálogo, mas, especialmente na apuração de Abusado, gravei para mostrar ostensivamente que a pessoa estava diante de um repórter?, conta. ?E, antes da conversa, eu alertava que comunicaria à polícia qualquer fato relacionado ao presente, pois o que me interessava eram justamente histórias do passado.
Fiz isso também como forma de proteção.?
Também o escritor e jornalista Fernando Morais considera o gravador um instrumento vital – autor de diversas biografias, ele enfrentou dificuldades ao pesquisar para o livro Corações Sujos (Companhia das Letras), sobre a Shindo Renmei, grupo de fanáticos japoneses que não aceitava a derrota de sua nação na 2.? Guerra Mundial e, por isso, cometeu diversos assassinatos no Brasil. ?As principais fontes eram senhores de idade que falavam mal o português e não se dispunham a tratar do assunto?, lembra. ?Assim, como tive de contrapor versões conflitantes, as gravações eram indispensáveis.?
Morais, que montou no Rio um escritório temporário para angariar votos para a vaga de Roberto Marinho na Academia Brasileira de Letras, só não registra as conversas quando o entrevistado solicita. ?Mas sempre é bom gravar por questão de segurança.?
Joel Silveira, um dos principais repórteres brasileiros e autor dos textos contidos em A Milésima Segunda Noite da Avenida Paulista (Companhia das Letras), também lançado nesta semana, acrescenta mais um detalhe fundamental: ?É essencial que a entrevista seja feita na casa da pessoa, pois, ao analisar os livros de sua estante e os quadros pendurados na parede, o repórter já descobre características da personalidade do entrevistado.?
Aos 85 anos, Silveira tem ficha extensa em relatos jornalísticos com contornos literários. Segundo ele, o estilo foi moldado por uma necessidade.
?Senti a necessidade de romancear o texto para me diferenciar do que era escrito na imprensa dos anos 30 e 40?, conta Silveira, que acredita na eficácia de uma boa pesquisa para a produção de uma reportagem confiável.
Truman Capote dizia ter feito investigações em mais de 8 mil páginas para A Sangue Frio, refazendo o percurso dos dois assassinos desde o local do crime até a prisão em Las Vegas. O recurso também é recomendado por Morais. ?Com uma boa pesquisa, o livro tem 90% de chance de ficar bom?, garante. ?Tem de ser uma atividade obsessiva e, a partir do momento em que não se têm mais dúvidas no momento da escrita, é possível dar piruetas de alegria.?
Se perseguir a obsessão é uma virtude, o resultado pode também trazer problemas. Caco Barcelos conta que, para o Rota 66, montou um arquivo com 4.200 nomes identificados por ele nos extermínios promovidos pela Rota.
?Tornei-me um refém do meu próprio banco de dados e, como não escrevo nada sem ter fatos que sustentem a informação, perdi muito tempo limpando os exageros?, conta.
A preocupação com futuras polêmicas, depois de publicada a obra, habitualmente acompanha os escritores. Durante os quatro anos em que preparou Abusado, Barcelos sempre temeu ser acusado de ter recebido benefícios dos traficantes. ?Como convivi com pessoas que têm a violência como rotina, fiquei contaminado, pois me habituei a viver perto desse risco?, conta. ?Durante a escrita do livro é que fui incisivo em manter o distanciamento necessário.?
O perigo das repercussões também manteve Fernando Morais em alerta, especialmente em temas polêmicos. Em Olga, por exemplo, o escritor viu-se em uma situação delicada, quando descobriu um documento que comprovava uma ordem de Luiz Carlos Prestes para matar, em nome do Partido Comunista Brasileiro, uma militante que não estaria agindo de forma adequada. ?Aquilo me pareceu uma revelação tão grave como a de Getúlio Vargas ter ordenado o envio de Olga a um campo de concentração?, conta ele, que relutou em mostrar o documento a Prestes. ?Temi por sua saúde.?
A busca pela fidelidade faz com que os autores busquem a objetividade do texto jornalístico ao produzir uma obra literária. Assim como Capote, que se esquivou de interpretações e comentários, Barcelos e Morais adotam a impessoalidade na escrita. ?Prefiro ser a mosca que ronda o fato e não participa?, brinca Morais, revelando, como observa Matinas Suzuki Jr. no posfácio de A Sangue Frio, a existência de uma sedutora zona cinzenta entre jornalismo e literatura.”
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“Silveira usava o sarcasmo para escapar da censura”, copyright O Estado de S. Paulo, 21/09/03
“Se Caco Barcelos e Fernando Morais buscam, em seus textos, a objetividade plena, o veterano Joel Barcelos tornou-se uma estrela do jornalismo nacional nos anos 40 justamente com um texto em que a presença do autor era constantemente denunciada: na reportagem Grã-Finos em São Paulo, publicada no semanário Diretrizes, ele apresentava sua impressão do high-society paulistano em uma narrativa irônica e debochada. Publicada em 1943, a matéria deliciou inclusive o presidente-ditador Getúlio Vargas e é a porta de entrada do livro A Milésima Segunda Noite da Avenida Paulista (212 páginas, R$ 31), coletânea de artigos lançada nesta semana pela Companhia das Letras.
?Foi nessa época que ganhei o apelido de víbora, dado pelo Assis Chateaubriand?, conta Silveira, que logo seria contratado pelo dono dos Diários Associados. A mudança de empresa não foi planejada pelo jornalista, mas provocada justamente por um texto de sua autoria – ao destacar como título uma frase dita por Monteiro Lobato durante uma entrevista (?O governo deve sair do povo como a fumaça sai da fogueira?), Silveira despertou, desta vez, a ira de Getúlio, que mandou fechar Diretrizes. ?Não me sobrou alternativa senão aceitar o chamado do Chatô?, comenta ele, que explica o sarcasmo de seus textos daquela época como uma tentativa de escapar da censura imposta pelo Estado Novo.
A primeira grande missão do repórter foi a cobertura da 2.? Guerra Mundial e, antes de embarcar para a Itália com os pracinhas da Força Expedicionária Brasileira, Silveira ouviu a célebre frase do patrão: ?O senhor vai para a guerra, mas não me morra, Seu Silveira! Repórter é para mandar notícia, não é para morrer. Se o senhor morrer, eu o demito.?
Na guerra, com a patente de capitão, Joel Silveira aproximou-se dos pracinhas para conseguir mais notícias. ?Ganhei também a simpatia dos americanos que, curiosamente, conheciam e gostavam da Diretrizes por conta dos perfis que fizemos com Truman e Roosevelt?, explica ele, que mais de uma vez chegou ao campo de batalhas. ?Certo dia, o mais terrível deles, vi a morte de um sargento brasileiro, metralhado pelos alemães. Só conseguimos resgatar seu corpo quatro dias depois.?
Como tinha franquia telegráfica pela amizade com os soldados, Silveira enviou diversos relatos. ?Enfrentei os momentos pesados e não fiquei em Roma, como os correspondentes mais velhos, como Ernest Hemingway.? Dez meses depois, o repórter retornou e foi recrutado para outra guerra: Chateaubriand comprou briga com o conde Francisco Matarazzo Jr., que pediu de volta o prédio que os Associados ocupavam no Viaduto do Chá. O troco veio com a cobertura do casamento da filha do milionário, Filly, a cargo de Silveira.
Em A Milésima Segunda Noite da Avenida Paulista, título da reportagem em duas páginas publicada no Diário da Noite, o repórter narrou tanto o faustoso matrimônio como o enlace de um casal de operários, trabalhadores justamente das indústrias Matarazzo. Ou seja, a união dos ricos tinha sido paga com o trabalho de pessoas como os noivos pobres. O texto consta no livro agora lançado. ?Eu não freqüentava a alta sociedade, mas tinha bons informantes?, explica o repórter que, apesar dos 85 anos e em recuperação de uma catarata, garante ter ainda disposição para novos desafios. ?Gostaria de encontrar e entrevistar o Saddam Hussein.?”
“A arte da objetividade como recurso de estilo”, copyright O Estado de S. Paulo, 21/09/03
“A Sangue Frio é um clássico e clássicos geram sua própria mitologia. Tantos anos mais tarde, e depois da imensa influência exercida, já não faz mais muito sentido lembrar que Truman Capote evitava o uso de gravador e nem mesmo tomava notas – ?Arruína as entrevistas?, dizia. Contava que tinha memória prodigiosa, exercitada por uma ginástica mental simples.
Lia um livro e recitava depois o texto para um amigo, para ver se batia.
Acertava em 95% do conteúdo. Pelo menos era o que dizia, pois, como se sabe, Capote era mentiroso crônico.
E essa talvez seja uma pista para entender A Sangue Frio e tantos outros exemplares do ?romance jornalístico?: até que ponto expressam a realidade e até onde dependem da imaginação do escritor, ou seja, de sua capacidade de mentir?
Vasta questão que, claro, não deixou de aparecer quando o texto foi publicado, em quatro números sucessivos da revista New Yorker. Capote foi acusado de falsear o real, de inventar diálogos e situações. Mandaram um checador profissional ao Kansas e ele se confessou impressionado com a minúcia e o cuidado obsessivo do levantamento de dados. Mas basta ler o livro e constatar que nele há coisas que Capote não poderia saber. São suposições, ?construções? que preenchem vazios. De que outra forma poderia saber o que determinado personagem estava pensando em certo momento? Como reconstruiu alguns diálogos? De modo que A Sangue Frio é um relato tão verdadeiro quanto possível de um fato, ou conjunto de fatos, de natureza peculiar. Porque não se pode esquecer que ele não estava lidando com amenidades, mas andava em zonas sombrias da experiência humana: o assassinato de uma família, a mente criminosa, as motivações para um crime, as reações da comunidade e da família dos assassinos, etc.
Não sabemos – nunca saberemos – se há correspondência exata entre texto e os fatos tais como se passaram. O que sabemos, sim, é que o livro faz essa experiência mais do que plausível – ele a torna real para nós. Os crimes de Kansas são os que Truman Capote relatou. E essa força de persuasão vem mais do estilo que do rigor da pesquisa. Tivesse ele devaneado muito, adjetivado e interpretado, e não alcançaria o tremendo efeito de convencimento dessa prosa em aparência apenas objetiva. Uma ?objetividade? que não passa de genial efeito literário.”
ELES MUDARAM A IMPRENSA
“Série de entrevistas relata história da mídia”, copyright Folha de S. Paulo, 20/09/03
“Esses três pesquisadores produziram um livro fascinante. Focados na cabine de comando dos mais importantes órgãos de imprensa no período 1970-80, eles os apresentam como protagonistas das grandes mudanças em curso no país, naqueles momentos decisivos, ao mesmo tempo em que examinam as intensas metamorfoses pelas quais esses periódicos passavam internamente.
Para isso, interpelaram os próprios timoneiros desses veículos de comunicação, através de entrevistas ao longo das quais eles vão revelando desde suas trajetórias pessoais, até seus projetos de percurso, os obstáculos com que se confrontaram e as metas que cumpriram.
A ênfase dos depoimentos recai, claro, sobre o desafio dos tempos tormentosos, os riscos de mares desconhecidos, os motins, os desvios de rota, a piratagem e o horror das calmarias, quando tudo fica plano, chato e vão, sem os ventos da aventura ou as correntes da imaginação.
Os três pesquisadores em questão são Alzira Alves de Abreu, Fernando Lattman-Weltman e Dora Rocha, ligados ao Centro de Pesquisa e Documentação (Cpdoc), da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, organizadores do volume ?Eles Mudaram a Imprensa? (Editora FGV).
Os ?condottieri? da imprensa escolhidos foram Evandro Carlos de Andrade, encabeçando ?O Globo? e mais tarde também o jornalismo da TV Globo; Alberto Dines, responsável pelo ?Jornal do Brasil? e depois articulador do ?Observatório da Imprensa?; Mino Carta, criador sucessivamente de ?Quatro Rodas?, ?Jornal da Tarde?, ?Veja?, ?Isto É? e ?Carta Capital?; Roberto Müller Filho, o estrategista da ?Gazeta Mercantil?; Augusto Nunes, reformulador de ?O Estado de S.Paulo? e do ?Zero Hora? gaúcho e, finalmente, por ser o mais jovem, Otavio Frias Filho, diretor de Redação da Folha, que levou adiante as reformas introduzidas no jornal por Cláudio Abramo.
Como se vê, uma proeza. Que se traduz, para nós leitores, num autêntico privilégio, o de acompanhar essas criaturas determinadas, submetidas a tensões extremas de diferentes matrizes, tomando decisões e assumindo alternativas em três fronts simultâneos: o ético e político, o jornalístico e o administrativo.
Em nenhuma dessas frentes o confronto foi mais leve, o que era acentuado pela atmosfera opressiva desses anos de chumbo e de radicais transformações tecnológicas, com um impacto forte no âmbito das comunicações.
Da difusão em massa da televisão, da internet, da telefonia digital, dos satélites estacionários, às TV a cabo, o jornalismo impresso tinha que se redefinir num mundo dominado cada vez mais pela espetaculosidade dos recursos orais e visuais. Nenhuma aposta era garantida, nenhum resultado previsível, nenhuma conquista permanente.
E no entanto, para a surpresa do leitor, esses capitães da imprensa renunciam a qualquer imagem de heroísmo, seu pessoal ou do jornalismo em geral, insistindo no caráter coletivo do trabalho, na pressão excepcional das circunstâncias e na inexorabilidade das mudanças.
Por mais diferentes que eles sejam, pelas personalidades, pelas gerações, pela formação, pelos estilos de atuação, esse traço lhes é comum. Suspeitam de qualquer concepção salvacionista do jornalismo, suscetível de alimentar a arrogância de que se tem a posse da verdade. Enfatizam o papel, não menos crucial, de instilar a dúvida, relativizar as posições e nutrir o diálogo que mantém pulsante o espírito público, mantendo um compromisso abnegado com a honestidade, a lisura e a transparência.
Os depoimentos convergem em admitir que esse é um ideal difícil de cumprir à risca; mas é o único pelo qual vale a pena lutar.
O livro não se prende ao período 1970-80, abrangendo desde pelo menos os anos 1950 até hoje. Nem se limita aos personagens entrevistados, envolvendo toda uma plêiade de intelectuais, de Lima Barreto a Cláudio Abramo e Raymundo Faoro. Dado o impacto inovador que tiveram, sente-se a falta de capítulos dedicados à revista ?Realidade?, aos alternativos e, sobretudo, ao ?Pasquim?. Prevalece o raio-X de algumas das mais ousadas aventuras culturais na história recente do país. E nada como a história contada por quem a fez e ainda faz.
Nicolau Sevcenko é professor de história da cultura na USP e autor de, entre outros, ?Orfeu Extático na Metrópole? (Companhia das Letras)
Eles Mudaram a Imprensa Autores: Alzira Alves de Abreu, Fernando Lattman-Weltman, Dora Rocha (orgs.) Editora: FGV Quanto: R$ 44 (400 págs.)”