SÃO PAULO, 450 ANOS
Alberto Dines
Jornalões e revistões paulistanos resolveram investir, apesar das magérrimas vacas. O cidadão que gosta de ler ? espécie em extinção ? não teve do que se queixar no último fim de semana. Contratada pela prefeitura para lembrar os velhos tempos, a velha garoa ajudou a manter os leitores em casa desfolhando fartos cadernos e suplementos suculentos.
Cada um a sua maneira ? o Folhão com suas inseparáveis sondagens de opinião e o Estadão distribuindo a palavra final ?, esforçaram-se para lembrar aos leitores que eles vivem numa cidade e cidade é algo mais do que um conjunto de ruas, casas, veículos e gente.
Ao longo das 48 horas dos festejos natalícios pareceu que a imprensa reaprendeu a localizar-se. Obviamente ninguém citou o estudioso das utopias, tecnologia e cidades Lewis Mumford (1895-1990), mas ele esteve presente com o seu aforisma: "Antigamente o mundo era a cidade, hoje a cidade é o mundo".
Elitismo popular
Para a mídia informativa, a descoberta da cidade é vital. O jornalista que fala sobre a sua cidade é obrigado a largar o telefone, sair à rua e ser igual aos demais cidadãos. O jornalista citadino é obrigatoriamente cidadão. Pode até abastecer-se com releases mas não pode enganar o vizinho. Pode até distorcer os fatos em favor do seu partido ou do seu ídolo político, mas é obrigado a encarar a vida coletiva.
Enquanto a cobertura política é abstrata, a cobertura econômica (quando compreensível) é remota, a cobertura de cidade é ambiental ? portanto, imediata. Se a matéria diz que está tudo bem é imperioso que a maioria das pessoas sintam que efetivamente está tudo bem. Não há como mentir ou manipular uma evidência que qualquer cidadão pode comprovar. Talvez por isso o jornalismo de cidade perdeu o glamour ? é o mais facilmente fiscalizável. Não pode ser praticado com o salto alto, exige o pé no chão.
Mas no day after, a segunda-feira (26/1), a cidade voltou para o segundo plano ? sobraram apenas o eco da festa, o lado coreto da metrópole e, obviamente, a exploração festivo-eleitoral.
Da análise daquela montanha de papel impresso no último fim de semana restaram algumas conclusões. A mais evidente relaciona-se com o descaso em relembrar as comemorações do IV Centenário. Como se não tivessem acontecido, como se aquele marco na história da cidade não merecesse ser lembrado.
Nem as autoridades tiveram interesse em submeter-se a uma comparação que lhes seria muito desfavorável nem a mídia procurou ressaltar uma diferença que, em última análise, muito a compromete ? já que é a principal responsável pelo relaxamento nos padrões de exigência.
Embora em 1954 São Paulo estivesse dominada pelo populismo de Adhemar de Barros e do seu adversário Jânio Quadros, as comemorações do IV Centenário pautaram-se pelo empenho cultural. Os dois políticos apelavam para os instintos mais primitivos enquanto a tônica do projeto de comemorações estimulava o intelecto. Ninguém teve medo de ser patrulhado de "elitista", ao contrário: este tipo de elitismo mostrou-se extremamente popular e, com isso, diminuiu o fosso que separava as vanguardas do grosso da população.
Omissão exemplar
A verdade é que a Semana de Arte Moderna de 1922 vitalizou-se 32 anos depois, em 1954, com a escolha de Oscar Niemayer para desenhar o Ibirapuera e conceber o logotipo das comemorações; com os convidados para expor na II Bienal de São Paulo (Calder, Henry Moore, Leger) e os seus premiados (Di Cavalcanti e Aldemir Martins, entre outros).
O Festival Internacional de Cinema trouxe Eric von Stroheim, Ingmar Bergman e Norman McLaren, o criador do desenho animado verdadeiramente moderno.
O Balé do IV Centenário mobilizou compositores nacionais de música erudita, coreógrafos e dançarinos.
Hoje não interessa lembrar a figura de Francisco Matarazzo Sobrinho, o famoso Cicillo Matarazzo, porque nossos mecenas praticamente desapareceram. A fonte luminosa no lago do Ibirapuera, paga pelo Grupo Pão de Açúcar, é puro marketing, caricatura do conceito mecênico (Caio Cilino Maecenas, 60 a.C ? 8 d.C.) de que cabe aos ricos a missão de desenvolver as coisas de espírito em benefício dos "excluídos".
São Paulo abandonou formalmente o status de província com o projeto de comemorações de 1954 e a grande festa quatrocentona reduziu drasticamente a diferença com a então Capital Federal. Este é um dado histórico, sociológico, político, econômico e cultural que não deveria passar em brancas nuvens. Sem ele, estes 450 anos são apenas um megaforró da grã-finada teoricamente correta, comício-com-trio-elétrico do qual não sobra coisa alguma no dia seguinte. Omissão exemplar, desvenda como a história pode ser manipulada por aqueles que deveriam ser os seus artífices.
Cartões-postais
A imprensa também esqueceu dela mesma. A cidade foi mostrada de todos os ângulos, escala e perspectivas. A ninguém ocorreu mostrar o papel dos jornais e das emissoras de rádios (e naturalmente dos jornalistas e radialistas) na construção e funcionamento desta megalópolis.
Compreendem-se os escrúpulos dos jornalões em falar de si mesmo ? gente fina costuma ser reservada. Mas por que não lembram do grande jornalista que foi Cásper Líbero e dos seus feitos jornalísticos? Alguém hoje lembra que ao meio-dia, quando a Gazeta começava a rodar, soava uma poderosa sirene para avisar que o jornal já estava indo para as bancas?
Alguém sabe o que representou para a cidade o Correio Paulistano, a Rádio Record, a Excelsior? Alguém lembra dos feitos do repórter radiofônico Tico-Tico?
Compreende-se que a Editora Abril, por recato, também não queira falar dela mesma, mas em 1954 Victor Civita já iniciava o desmonte do mito de que São Paulo não sabia fazer revistas nacionais ? não é assunto?
Auto-estima hoje virou lugar comum, panacéia para todos os males e aflições. Mas a verdade é que a nossa imprensa não gosta de olhar-se no espelho. Nem para lembrar os belos traços que já ostentou.
Em 1954, a matéria-prima foi uma vontade de se afirmar. Em 2004, apostaram apenas na nostalgia dos cartões-postais. É melancólico.
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