ELEIÇÕES NA FRANÇA
Gilson Caroni Filho (*)
Lênin, o bolchevique, dizia que a melhor maneira de se apreender a verdadeira
dinâmica da história era "a análise concreta de uma
realidade concreta". Lênin está fora de moda. O bolchevismo
se traduziu num pouco eficiente capitalismo de Estado e a realidade, para fins
de análise, deixou de ser concreta. Capturada pelo espetáculo,
se apresenta fluida e fragmentada.
A história, percebida como registros pontuais e sem articulação
entre si, passa a ser uma sucessão de raios em dia de céu azul.
Um dia, do nada, surgem o Iraque e Saddam Hussein. Ao nada retornam por determinação
conjunta do Pentágono e da CNN. Duas torres viram pó em Nova York,
e o cenário que emerge é o inóspito Afeganistão
e seu relevo beirando a impossibilidade geográfica. O Oriente Médio
é percebido como local de morticínio perpetrado por um louco general
contra fanáticos suicidas. Da América Latina surgem panelaços
na Argentina e golpes e contragolpes na Venezuela. Como som e fúria,
nada faz sentido.
A semana começa com nova gritaria na imprensa mundial. Para "estupor"
do cidadão francês, a extrema-direita vai para o segundo turno
das eleições presidenciais. A Frente Nacional do fascista Jean-Marie
Le Pen derrotou o socialista Lionel Jospin e enfrentará o candidato Jacques
Chirac, da direitista RPR. O que mais nos espanta é o espanto. Não
temos bola de cristal, mas análise de conjuntura não faz mal a
ninguém.
Desconhecer a força política do fascismo francês é
ignorar parte integrante da cultura política daquele país. A mesma
que nos deu Bourdieu, Foucault, Levi-Strauss, Guattari, Sartre, Deleuze, entre
tantos outros. Eles são parte de uma formação social que
gesta atores e processos que lhes são, em tudo e por tudo, antípodas.
Sem o colaboracionismo de tantos franceses, teria sido impossível à
Alemanha nazista implantar o regime de Vichy, após ter invadido o país.
E o marechal Pétain não pecou por impopularidade. Convém
lembrar que o anti-semitismo e o ódio ao imigrante, clara e gema do ovo
da serpente, nunca deixaram o imaginário francês. Latentes em períodos
de prosperidade econômica, sempre se fizeram manifestos em período
de crise e desemprego.
Nas eleições de 1995, Le Pen conseguiu, com um discurso tão
simplório quanto racista, obter 15% do eleitorado. Era visto, pela imprensa
internacional, como algo exótico. Um espécime raro da majestática
Quinta República. Quase um convite para se ver o passado como algo inerte
numa sala escura do Louvre. Fazia parte de uma parcela reativa da população
às injunções do neoliberalismo na vida nacional. Nada a
temer, embora seu eleitorado permanecesse fiel. E em crescimento constante.
Nesse ponto gostaríamos de fazer uma inflexão: o crescimento
do voto na extrema-direita ocorre num cenário marcado por três
vetores que não podem ser desconsiderados.
** O primeiro diz respeito ao declínio
das formações socialistas e de sua crise identitária ?
instalada a partir da fragmentação da clássica base de
apoio: a velha classe trabalhadora atomizada pela nova dinâmica do capital.
Sem movimento social de corte clássico, opta por eleger o campo institucional
como único espaço de ação. Adota o figurino das
forças conservadoras e elegem o discurso da competência como substituto
da proposta alternativa. Quer ser percebida como tão competente quanto
a direita na gestão da ordem solicitada pelo capital. Descola-se inteiramente
da realidade, buscando uma farsesca terceira-via.
** Decorrente do primeiro vetor, a descrença
na ação política leva à intolerância e ao
atendimento imediato ao chamado fascistóide. Tanto mais sedutor quanto
mais simplista. Estabelece uma relação causa-efeito que retira
da conjuntura qualquer necessidade de reflexão crítica. Não
há que se perder tempo com considerações históricas.
Segurança pública é questão de repressão
policial, e "não se fala mais nisso". Desemprego é provocado
por imigrantes que devem ser banidos. O "outro " volta à sua
recorrente função de bode expiatório.
** O terceiro reside no papel da imprensa.
Mostrando a política como apêndice de manuais de economia e candidatos
como possíveis gestores de uma ordem inconteste, o jornalismo vem colaborando
para o esvaziamento do campo político e seus principais atores. Qualquer
ameaça aos interesses do capital é vista a partir das reações
negativas do mercado, das reações do câmbio e da subida
da bolsa. A despersonalização é a contraface do fetiche.
A perda da substância histórica é retratada no noticiário
político. Seus personagens tornam-se anódinos, os partidos extensões
das idiossincrasias das lideranças, e os processos sucessórios
momentos tediosos que nada dizem. Rituais de eterno retorno que os jornais noticiam
por dever de ofício. Nada mais simplificador. Nada mais semelhante à
lógica fascista.
Súplica vã
O problema não é o fascismo como projeto. Sua formatação
requer condições objetivas que não estão presentes.
O desapreço pela democracia representativa e pelo Estado de Direito é
o recado claro da expressiva votação de Le Pen. E, nesse crime,
a mídia deixa suas impressões digitais. Mas não está
sozinha e não pode se dar ao direito de fingir surpresa e/ou indignação.
A esquerda plural (comunistas, socialistas e verdes) caiu na armadilha. Chegou
a dizer, na fase inicial da campanha, que seu programa não era socialista,
e nada propôs como alternativa ao programa neoliberal. A julgar pelos
resultados dos grupos de extrema-esquerda, fez o cálculo errado. A Liga
Comunista Revolucionária (4,4% dos votos) e os 2% dos votos obtidos pela
candidata do Partido Radical de Esquerda, Christhiane Taubira, teriam garantido
Jospin no segundo turno. Contra os 17,02% dos votos de Le Pen, a esquerda, dividida
entre sete partidos, obteve 45% dos votos. Quando Jospin assume a derrota como
sendo pessoal, não está longe da verdade. Votos a esquerda ainda
tem.
A opinião pública (se existe, ao contrário do que afirmava
Bourdieu) em "estado de choque" é algo muito interessante.
Menos exigida que a mulher de César, ela só deve parecer honesta.
De onde vem o estupor, se os institutos de pesquisa apontavam para um elevado
número (41%) de indecisos? A parcela "esclarecida" do eleitorado
francês ou se absteve ou abdicou de qualquer ação efetiva
para exorcizar os riscos anunciados.
Muito se diz sobre a política: sua época heróica acabou,
sobrevive apenas uma teatralização desprovida de historicidade,
e a rua não é mais locus da cidadania.
A extrema-direita não acreditou nos arrazoados teórico-políticos
da suposta razão pós-moderna, partiu para os slogans surrados
e para a militância ameaçadora. Apostou no passado, dado como morto,
e logrou capitalizar dividendos presentes. O pungente "NON" que estampa
a primeira página do Liberátion é uma súplica
vã. Seremos "salvos" por Chirac e sua corrupta RPR (Reunião
pela República). Eis o consolo daqueles que lutaram contra a banalização
promovida pela imprensa, contra a indiferença do cidadão comum
e contra um socialismo que se quer palatável custe o que custar. Pretendendo
ser novo, é a reedição dos seus antepassados de salão
denunciados por Marx no Manifesto. Que isto sirva de lição
para alguns atores tupiniquins que se preparam para o pleito de outubro.
(*) Professor das Faculdades Integradas Hélio Alonso,
Rio de Janeiro