Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Mídia e o monólogo dos poderes

JORNALISMO CONTROLADO

Luís Eblak (*)

Alguns governantes e detentores do poder econômico costumam achar de tempos em tempos que o jornalismo não serve para determinar o que é ou não é de interesse público. Pensam que a mídia existe para falar o que eles querem e não o que os cidadãos precisam ou gostariam saber. Em épocas de ditadura, esse impasse resulta pura e simplesmente em censura ? como no Brasil do Estado Novo (1937-45) e do regime militar (1964-85).

Hoje não há mais repressão política, mas o jornalismo parece estar sendo sutilmente controlado nos últimos tempos pelo poder político de Brasília e pelo setor econômico. O que ocorreu há duas semanas, quando o Luiz Inácio Lula da Silva só deu entrevistas a jornalistas seguindo as condições impostas pelo presidente ? conforme relatou este Observatório ? , é só a ponta desse iceberg [veja remissão abaixo]. Se ninguém gritar contra isso, a moda pode pegar e o jornalismo perderá sua razão de ser.

Vamos por partes:

1. Nos anos 1970, foi comum ouvir a crítica, por parte dos jornalistas, contra os assessores de imprensa, que teriam restringido o acesso direto dos repórteres às fontes ? sobretudo na área econômica. Além disso, o jornalismo econômico, por causa disso, teria perdido em qualidade, pois os assessores de imprensa, defendendo os interesses de seus patrões, "preparavam" empresários e executivos para divulgar apenas o "lado bom" de suas empresas. Nesse contexto, eventuais notícias que pudessem ferir a imagem dessas empresas seriam de alguma forma "escondidas" do público leitor. Embora ligados umbilicalmente ao jornalismo, os assessores estariam mais próximos ao marketing, que se preocupa tão-somente com o lado comercial.

A questão, embora datada naquele período, ainda parece não estar totalmente resolvida e vale para hoje. Essa realidade, dizia a crítica, vai de encontro a uma das essências do jornalismo, que é justamente tentar mostrar as coisas como elas são e não como seus "proprietários" querem que elas pareçam.

A crítica, no entanto, é exagerada. Claro que há assessores de imprensa que, pelo contrário, facilitam o trabalho dos jornalistas. Afinal, eles sabem que, se o assunto realmente tiver interesse público, o jornalista sério fará a matéria do mesmo jeito e com a mesma qualidade.

2. Nos esportes, sobretudo no futebol, o campo de atuação da imprensa vem sendo estrategicamente reduzido. Primeiro, os patrocinadores dos grandes clubes armaram verdadeiros outdoors com suas marcas expostas ao fundo de salas destinadas às entrevistas coletivas. Para diminuir as possibilidades de entrevistas que possam render frases para reportagens negativas aos times (como a crise de um time após uma derrota no campeonato), clubes e empresas chegam até a limitar o acesso da imprensa a determinados atletas. Aos patrocinadores não interessa ver sua marca associada à campanha pífia do Corinthians, por exemplo, e, além disso, às manchetes negativas nos jornais, TV e rádio.

Até pouco tempo atrás ? cinco, seis anos ? este repórter cobria os grandes times de futebol em campos do interior paulista e tinha acesso garantido para entrevistar quantos atletas quisesse, já que os vestiários eram abertos para a imprensa após as partidas. Hoje, em determinados momentos, os clubes fecham os vestiários e só liberam dois atletas para falar diante daqueles outdoors nas entrevistas coletivas. Se ninguém falou em campo após o final da partida, poderá restar ao jornalista escrever uma matéria com as duas fontes da entrevista coletiva. Lembrem-se que não estamos falando só de futebol, pois quem patrocina esses clubes são grandes empresas.

3. Mas o assunto em pauta nos últimos meses tem sido outra limitação ao trabalho da mídia. Neste ano, tornou-se famosa a predisposição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva com relação à imprensa. Conforme divulgou o jornal Valor Econômico, de janeiro a maio deste ano o presidente da República não havia dado nenhuma entrevista ? nem exclusiva nem coletiva ? a jornalistas. A sociedade só ouviu sua voz em seus longos e preparados discursos. Só recentemente, após protestos da mídia, é que ele se dignou a falar. Mesmo assim, foi do jeito dele. Primeiro, só ao Fantástico, da TV Globo ? numa entrevista que estava mais para o programa da Hebe Camargo do que para um material supostamente jornalístico ?, e à Veja. Depois, recebeu alguns veículos impondo uma série de condições, como por exemplo, não permitindo entrevistas gravadas.

No último dia 22, o jornalista Janio de Freitas, em sua coluna na Folha de S. Paulo, veio a público para se indignar contra os atos do presidente. Resumidamente lembrou que a equipe de Lula tem afrontado os métodos universais do jornalismo. Primeiro, inventou a entrevista sem perguntas. Depois, decidiu permitir um "encontro social" com repórteres desde que não houvesse gravações. Janio levantou também em seu texto uma questão que, se confirmada, revela tristes ares para a liberdade de imprensa: Lula teria escolhido, em alguns casos, os jornalistas que poderiam participar desse "encontro social".

Por trás desse fato se esconde a estratégia de evitar a exposição de Lula aos repórteres. Desse contato, presume-se, muitas besteiras podem sair da boca de um presidente empolgado com o poder e, eventualmente, fazer declarações que possam causar crises políticas e econômicas.

Limitação sutil

Como bem lembrou Luiz Weis neste Observatório, Lula é o presidente que já disse a seguinte frase: "Notícia é tudo o que a gente não quer ver publicado. O que a gente gostaria de ver publicado é publicidade". Ou seja, quem diz isso não deve ver no jornalista um representante do cidadão disposto a divulgar o que é de interesse público. Prevalece aí o interesse pessoal do presidente, não o público.

No livro Entrevista, o diálogo possível, a jornalista e professora da Escola de Comunicações e Artes da USP Cremilda Medina critica, com razão em muitos aspectos de sua obra, o fato de os jornalistas, com suas questões direcionadas, preestabelecerem as respostas das fontes. Ou seja, segundo a autora, muitas vezes os repórteres exercem um monólogo e não um diálogo nas entrevistas realizadas.

O que Lula e sua equipe estão fazendo é inverter esses papéis. Ao evitar o contato com a imprensa, o próprio presidente está fazendo prevalecer o monólogo, excluindo os jornalistas do cenário político, como se o público não tivesse o direito de receber uma visão crítica de seus atos ? bastaria, para ele, o que a sociedade fica sabendo por meio das campanhas publicitárias produzidas por profissionais como Duda Mendonça.

Eleito democraticamente, Lula faz jus à comparação publicada pelo Valor Econômico, em maio. A reportagem mostrava que a ausência de entrevistas do petista lembrava o general Emílio Garrastazu Médici, o presidente do período mais autoritário da última ditadura brasileira (1969-74), também avesso a esse tipo de contato.

Mas o que vem ocorrendo nos casos descritos é grave. Estamos vivendo um período em que o jornalismo vem sendo cuidadosamente controlado. Não se trata de repressão ou de censura, mas de uma sutil limitação da liberdade de imprensa. Políticos, empresários e dirigentes estão boicotando o trabalho da mídia.

Por trás desse conjunto de restrições está, sem dúvida, o descrédito de alguns setores da sociedade em relação à imprensa: costuma-se questionar os critérios adotados pela mídia para determinar o que é ou não é notícia ? ou seja, ou que é ou não é de interesse público. Critica-se a imprensa por destacar quase sempre apenas o lado negativo dos fatos. Não cabe determinar, aqui, se essa crítica é correta ou não ? a discussão já existe e deve continuar. O que não podemos fazer é permitir esse controle sem um debate prévio.

É preciso questionar: numa sociedade democrática, presidentes e outros políticos podem ficar sem dar entrevistas? Empresários, executivos e dirigentes, que empregam milhares de pessoas e administram milhões de reais por mês, podem também vetar ? mesmo que parcialmente ? o trabalho da imprensa?

(*) Jornalista

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