Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Mídia e os sintomas da neobarbárie

FUZILARIA DE IMAGENS

Muniz Sodré (*)

Nem sempre é possível confiar no adágio, aliás já muito gasto, de que uma imagem vale mil palavras. Há imagens semanticamete pobres, apesar de toda sua exuberância estética. Outras podem valer certamente milhares de palavras, desde que não se dêem como tão evidentes assim, desde que arrancadas de sua latência para o plano manifesto.

É bem este o caso da foto, publicada na primeira página de O Globo (8/2/2003), da família de um reservista americano na base militar de Camp Pendleton, num dia aberto ao público. Colorida, a imagem mostra um militar com seu bebê no colo, assistindo à esposa experimentar a mira de uma bazuca. O soldado é enorme, bem-alimentado, um redneck típico: a mulher, loura, de óculos escuros, tem a desenvoltura de uma majorette, essas moças de saias curtas, botas brancas e bastões evolutivos nas mãos, que acompanham desfiles ou compõem a torcida de times de futebol americano. A bazuca, ultramoderna.

Patriotadas a granel

Como trazer as palavras latentes para o plano manifesto? Um procedimento plausível, coerente com a metodologia pragmatista, consiste em cotejar a imagem com outras análogas e também com diferentes, para tentar obter da comparação algum traço de sentido. É uma tarefa analítica que demanda tempo. Vale a pena, entretanto, inserir agora a imagem jornalística em questão no quadro do roteiro e cenas de um filme atualmente exposto nas locadoras de vídeo, com o título de A Última Fortaleza.

No filme, o ator Robert Redford interpreta o personagem veterano de um general do exército norte-americano, condenado a cumprir pena numa prisão exclusiva para militares. O general é um herói de guerra, adorado pela classe guerreira por seus feitos no Vietnã, Golfo e Bósnia. Não ficam nada claras as razões de sua condenação, mas isto pouca importa no roteiro.O que importa mesmo é a guerra que se trava no interior da prisão, uma antiga fortaleza adaptada, entre o general e o diretor ? também militar, mas sem experiência de combate.

O confronto entre os dois registros é o pretexto para que emerjam as mais anacrônicas e absurdas patriotadas em torno da virtude intrínseca da nação americana no cenário mundial, da qual se deduz por elementares silogismos o seu direito de intervenção militar em qualquer parte do mundo. O sentido do filme é inequívoco: os Estados Unidos são um país guerreiro, por transcendência ou puro destino, a serviço do Bem universal.

Moral guerreira

O filme é péssimo, claro, mas pode interessar enquanto material analítico, como costuma acontecer com a maioria dos produtos da indústria americana do entretenimento, seja cinema, televisão ou literatura de grande consumo. Nos filmes fáceis e agradáveis de Frank Capra é possível encontrar princípios de longo alcance do pensamento americano, assim como nas entrelinhas de livros e filmes banais pode-se colher elementos para uma radiografia de um imaginário social conformado por mitos fortes de origem (o pioneirismo heróico da fundação do país, o puritanismo regenerador) e por apelos a um destino imperial. São constantes a polícia no lugar da política e a incitação à violência e à guerra como soluções para impasses e conflitos.

Da simplificação ideológica que sustenta o imaginário bélico surge o pensamento esquemático que divide as pessoas e as nações pelas categorias de "bons" e "maus?. Isto se verifica tanto no mais rebarbativo filme de ação quanto em artigos de jornalistas conceituados. Um exemplo é Thomas L. Friedman, colunista do New York Times, republicado por O Globo:


"O mundo de hoje está dividido entre ?O Mundo da Ordem? ? ancorado pelos Estados Unidos, pela União Européia, Rússia, Índia, China e Japão, aos quais se uniram diversos países menores ? e o ?Mundo da Desordem?. O Mundo da Desordem é dominado por regimes fora-da-lei como o do Iraque e o da Coréia do Norte, e as redes de terrorismo que se alimentam de países que vão do Oriente Médio à Indonésia".


É a mesma lógica que preside ao roteiro dos filmes de Chuck Norris, da SWAT, do SEALS (força especial da marinha americana), da permissão estatal a serviços de inteligência para matar adversários políticos ou bisbilhotar mensagens eletrônicas e bancos de dados. Há uma manipulação do sentimento que está presente com boas intenções na filosofia pragmatista americana, como se vê no pensador Richard Rotty:


"A visão do progresso moral nos faz resistir à sugestão de Kant de que a moralidade é uma questão de razão. Nós, pragmatistas, temos mais simpatia pela sugestão de Hume de que a moralidade é uma questão de sentimento".


Em princípio, tudo bem. O problema é que o sentimento dominante nos Estados Unidos de hoje é mais imperial do que republicano.

A conseqüência disso é a predominância
de uma moral guerreira, pregada pelos senhores da indústria
petrolífera, pelos falcões do Pentágono e pela
extrema-direita no poder que repercute no imaginário midiático
e popular dos bolsões conservadores da América "profunda".
É o país que se vê imaginariamente como "a
última fortaleza". É o país em que, numa
tarde de domingo, a esposa do fuzileiro mostra a seu bebê
como empunhar uma bazuca. A foto da primeira página de O
Globo
pode ser "lida" como outro sintoma da neobarbárie.

(*) Jornalista, escritor e professor-titular
da UFRJ