Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Mídia, mudança e transição democrática

TRÊS ESTUDOS


Mídia e política no Brasil: jornalismo e ficção, de Alzira Alves de Abreu, Fernando Lattman-Weltman e Mônica Almeida Kornis, Editora FGV, Rio de Janeiro, 2003; tel. 0800-21-7777, e-mail <editora@fgv.br>, URL <www.editora.fgv.br>


[Do texto da orelha do livro]

Uma análise da trajetória de mudanças da mídia no Brasil nas últimas três décadas deve necessariamente percorrer a história do país, pois ela é o produto de um contexto geral, no qual os fatores econômicos, políticos, sociais e culturais são determinantes na sua estruturação e funcionamento.

Neste livro, os autores analisam as relações entre a cultura e a política através da mídia e sua periodização, por três ângulos diferentes: o de sua profissionalização e especialização, o de suas construções narrativas e o de sua institucionalização política.

Alzira Alves de Abreu [doutora em sociologia, pesquisadora do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas (Cpdoc) e professora do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ] analisa o papel desempenhado pelo jornalismo econômico durante o regime militar no Brasil (1964-1985), identificando as motivações políticas que levaram muitos jovens ao jornalismo econômico e como eles se organizaram para fazer oposição ao regime. Explica, ainda, a influência que esse tipo de jornalismo exerceu sobre a sociedade civil na fase de transição para a democracia.

Mônica Almeida Kornis [doutora em ciências da comunicação e pesquisadora do Cpdoc] procura analisar, através da minissérie Anos dourados, escrita por Gilberto Braga e exibida pela Rede Globo em 1986, o momento de restauração da ordem democrática no país, quando se faz a associação com o período de governo de Juscelino Kubitschek, que ficou no imaginário político brasileiro como de otimismo, esperança, desenvolvimento e democracia.

Fernando Lattman-Weltman [doutor em ciência política, pesquisador do Cpdoc e professor da PUC-Rio] mostra a complexidade da mídia brasileira ao final da longa transição do regime militar. Ela sofre forte reestruturação e sua inserção política permite a formulação de um modelo teórico para a investigação dos mecanismos pelos quais ela interfere diretamente na prestação de contas dos ocupantes de cargos públicos: o chamado processo de accountability.

Os três estudos apresentam a preocupação dos autores em ressaltar a importância da mídia na compreensão das mudanças políticas e institucionais na fase de transição democrática.

 


Introdução de Mídia e política no Brasil: jornalismo e ficção, de Alzira Alves de Abreu, Fernando Lattman-Weltman e Mônica Almeida Kornis, Editora FGV, Rio de Janeiro, 2003; título e intertítulos da redação do OI


Periodizações históricas são sempre arriscadas. Mormente aquelas que se pretende estabelecer em torno dos fenômenos culturais, por natureza mais evidentemente polissêmicos e de difícil classificação.

Quando se busca incorporar também os significados e as implicações especificamente políticos de tais processos as dificuldades aumentam ou diminuem em relação inversamente proporcional aos novos riscos que a empreitada assume. Pois, se, por um lado, a política é mais afeita às formalizações e às delimitações espaço-temporais ? em calendários, jurisdições, prerrogativas, direitos e deveres etc. ?, por outro, o perigo dos reducionismos é permanente. A política ajuda a delimitar a cultura, mas pode excluir da análise elementos importantes e eventualmente mais rebeldes à classificação e aos confinamentos institucionais.

Já a cultura tem o poder ? saudável ou perturbador, conforme o ponto de vista ? de turvar as fronteiras e as percepções dos fenômenos políticos, subvertendo significados e descobrindo novos usos e abusos para as instituições e as práticas características de outras esferas. Acima de tudo a cultura e seus produtos podem nos fazer enxergar o mundo social e suas formas sob novas e, freqüentemente, contraditórias luzes.

Falar da mídia e de sua história ? em especial a do "tempo presente" ? é o tipo de empreitada que expõe todas essas dificuldades e riscos logo à primeira aproximação.

Isso porque a mídia é, desde sempre, fenômeno complexo, que freqüenta desembaraçadamente estas e outras esferas totalmente distintas, como, por exemplo, as da economia e da tecnologia. Sua produção subordina-se a imperativos e a racionalidades de cada uma delas, ao mesmo tempo que as modifica.

Desse modo, periodizar os meios de comunicação é ter de lidar com marcos e temporalidades diversas, que embora possam freqüentemente se interpenetrar e se condicionar mutuamente, nem sempre assim o fazem, muito menos necessariamente.

Falemos de mídia e da "transição democrática brasileira", por exemplo: seria correto delimitar a história dos meios de comunicação em função de marcos definidos exclusivamente pela agenda política e institucional, como a revogação de atos institucionais ou a aprovação de uma nova Constituição? Ou de eventuais ciclos econômicos, como os da substituição de importações, ou da superação de crises inflacionárias quase crônicas? Por outro lado, bastaria resumir a periodização da mídia às revoluções tecnológicas por que passou ? como a introdução da informática, do videotape ou da transmissão em cores etc. ? ou fazê-lo a partir dos seus grandes momentos de renovação lingüística, de formas de interação com a audiência, de suas manifestações de cultura popular e tradicional ou mesmo erudita?

Linguagem realista

Sem dúvida, uma análise da trajetória de mudanças da mídia no Brasil nas últimas três décadas deve, necessariamente, percorrer a história do país, pois ela é produto de um contexto geral, onde os fatores econômicos, políticos, sociais e culturais são determinantes em sua estruturação e em seu funcionamento. Do mesmo modo, as transformações recentes ocorridas na mídia no Brasil têm que ser pensadas também como uma resposta às mudanças nas bases tecnológicas das indústrias midiáticas introduzidas nas sociedades ocidentais, embora a amplitude, a penetração e o tempo de introdução de novas tecnologias possa apresentar um descompasso significativo.

Mas a questão fundamental segue nos desafiando: como fazê-lo, respeitando todas as injunções históricas mencionadas, sem perder de vista a singularidade e o poder de significação, de caracterização da realidade política e cultural contemporânea que, acreditamos, a mídia passou a possuir e que não podem mais ser ignorados?

Neste livro abordamos as relações entre a cultura e a política através da mídia e sua periodização sob (pelo menos) três ângulos diferentes: o de sua profissionalização e especialização, o de suas construções narrativas e o de sua institucionalização política.

O capítulo "Jornalistas e jornalismo econômico na transição democrática" analisa as respostas dadas pela imprensa escrita ao regime não-democrático e o padrão de trabalho forjado nesse período. Busca explicar como os jornalistas se organizaram e influenciaram a sociedade civil na transição e também indicar as características definidoras do trabalho jornalístico na fase democrática. Os jornalistas e os proprietários de jornais criaram editorias de economia que se tornaram espaços de influência política na luta pela redemocratização, sendo introduzidas nesses novos espaços alterações significativas, que permanecem até os dias de hoje.

O capítulo de autoria de Mônica Almeida Kornis volta-se para o campo da teledramaturgia, na tentativa de incorporar novos temas e questões ligados à programação ficcional televisiva ao nosso universo de análise. Com o objetivo de examinar como um produto ficcional expressa uma conjuntura histórica, resgatando um momento do passado para falar do presente, analisa a minissérie Anos dourados, escrita por Gilberto Braga e exibida pela Rede Globo em 1986. O trabalho mostra como se realizou a operação de, logo após o fim do regime militar, retomar uma conjuntura identificada como exemplar do ponto de vista da ordem democrática.

Peça fundamental do nosso imaginário político, a associação de Kubitschek, otimismo, esperança e espírito moderno com a retomada democrática expressa pela então chamada "Nova República" viria a se impor ainda de forma mais ampla em meados da década de 1980 e na década seguinte, quando a figura do ex-presidente passou a ser evocada em propagandas eleitorais, por meio dos cinejornais realizados pela Agência Nacional durante seu governo.

Integrar o universo do entretenimento contido na mídia na discussão sobre a transição democrática apresenta-se assim como fundamental nesse processo, inclusive pela linguagem realista e pela preocupação com a verossimilhança, características da produção ficcional da Rede Globo desde o início dos anos 1970. Essa determinação chegou à programação das minisséries, criadas a partir de 1982, e, por serem um produto mais sofisticado e obras fechadas com menos capítulos que as telenovelas, permitiu, com o passar do tempo, sua identificação com o cinema, o que se confirmou nos anos 1990 com o alto investimento tecnológico nessa linha de programação.

Jornalismo financeiro

A análise de Fernando Lattman-Weltman recupera, sinteticamente, a reestruturação do mercado midiático brasileiro ao longo do regime militar e do período democrático subseqüente, descrevendo os principais eventos indicativos do processo de inserção política dessa nova indústria de comunicação ainda mesmo durante a ditadura e ao longo da chamada transição democrática.

Essa breve recapitulação histórica dá ensejo à formulação de um modelo teórico para a investigação dos mecanismos pelos quais a mídia interfere diretamente na prestação de contas dos ocupantes de cargos públicos ? o chamado processo de accountability ?, de modo a caracterizar mais sistematicamente o impacto da intervenção midiática sobre a qualidade do exercício da cidadania na nova democracia brasileira.

A análise aponta ainda os riscos decorrentes de práticas predatórias no mercado de discursos públicos, onde os meios de comunicação atuam privilegiadamente, permitindo-nos identificar os traços que indicam a permanência ? ou a recriação ? de focos de privilégio e de poder oligárquico em meio à poliarquia que se construiu no Brasil nas duas últimas décadas do século 20.

Essas investigações permitem também verificar que, tal como as reduções já aludidas, a delimitação dos processos de mudança como tipicamente nacionais é quase sempre apressada ou mesmo falaciosa. No caso das minisséries, talvez estejamos diante de uma particularidade da televisão brasileira, mais especificamente da Rede Globo, que produz uma teledramaturgia voltada para a história do país, com um tratamento realista. Mesmo assim, a narrativa melodramática na qual se insere toda a produção ficcional televisiva, típica de um gênero que objetiva o entretenimento, possui um padrão cuja estrutura extrapola os limites da produção nacional. Reciclado ao longo do tempo, o modelo remonta ao final do século 18, às apresentações do teatro popular francês pós-Revolução Francesa e aos folhetins publicados nos jornais a partir do século seguinte.

Nos outros casos, porém, é talvez ainda mais fácil reconhecer a radicação dos processos brasileiros em contextos internacionais de transformação tanto das redações ? como mostra Alzira ?, quanto na inserção política da mídia, de acordo com Fernando.

No Brasil, o jornalismo econômico surgiu na década de 1970, tomando como modelo o jornalismo norte-americano. Nos Estados Unidos, esse tipo de jornalismo teve grande desenvolvimento no período imediato à II Guerra Mundial, exercendo influência sobre a imprensa européia. Newsweek, Business Week e outros serviram de modelo para revistas como Entreprise, criada na França em 1953. Era ainda, basicamente, um jornalismo financeiro, com ênfase nas bolsas de valores e de mercadorias.

No Brasil, as condições para o surgimento de um jornalismo econômico dedicado ao sistema financeiro, às empresas, aos empresários, mas difundido para um público mais amplo, ocorreram durante o regime militar, quando o país teve expressivo crescimento econômico.

No que se refere à atuação midiática nos processos de accountability, não há dúvida de que o fenômeno está claramente muito longe de ser uma exclusividade nacional. Do mesmo modo que a transição de regimes autoritários para a democracia nas décadas finais do século 20 foi um processo internacional de grande amplitude, envolvendo praticamente todo o nosso continente, assim como outras grandes regiões do planeta ? fato já investigado por vasta bibliografia ?, também o novo status assumido pela mídia nesse quadro vem sendo observado por pesquisadores de vários países, constituindo desafio teórico e prático que mobiliza as análises mais variadas, nos mais diversos campos, desde a comunicação social à ciência política, passando pela história, a sociologia, a antropologia etc.

Depoimentos fundamentais

Mais importante, contudo, do que a própria periodização em si, e sua propriedade, é a possibilidade de o esforço recompensar-nos com uma clara demonstração dos aspectos em que as transformações operadas nos meios nos permitem falar tanto de rupturas quanto de continuidades em ambas as esferas ? cultura e política ? a partir desse objeto privilegiado.

No caso das minisséries, temos uma produção ficcional que se inicia na Rede Globo em 1982, sob o título Séries Brasileiras, direcionada especificamente para temas atuais e históricos da sociedade brasileira. As minisséries diferenciam-se como produto tecnicamente sofisticado, menos popular que as telenovelas, que acabam "contando" a história brasileira, assim como Hollywood sempre procurou "contar" a história norte-americana. Mas é exatamente nesse sentido que recicla um gênero ficcional que, antes mesmo da invenção do cinema, já fazia parte do universo do entretenimento popular, dentro da estratégia típica do melodrama.

Também a institucionalização do pan-óptico não pode deixar de confrontar um quadro geral de grandes transformações tecnológicas e socioeconômicas ? expresso na massificação inédita do consumo midiático ?, e um cenário igualmente inédito de incorporação política, com a manutenção de grandes concentrações de capital político em um círculo relativamente restrito e endogenamente reproduzido de atores, ou com a recorrência de tradições de cultura política e de interpretações das mazelas públicas brasileiras, calcadas em antigos preconceitos ou prédicas moralistas. Tudo isso fazendo, inclusive, com que aquilo que pode conformar o radicalmente novo ? em síntese, a democracia ?, ou continue sendo compreendido à luz do velho, ou seja simplesmente ignorado, porquanto mal compreendido.

As editorias de economia foram implantadas nas redações no final dos anos 1960 e início dos 70, quando uma nova geração de jornalistas nelas ingressou, munidos de um diploma universitário de jornalismo ou comunicação e com um contrato de trabalho de dedicação integral. Até esse momento o jornalismo econômico ocupava um espaço secundário nas redações, não havendo a exigência de especialização para a atuação na área. É verdade que o noticiário econômico sempre existiu na imprensa brasileira, mas com um tratamento exclusivamente comercial e agrícola.

Completo então o périplo, permanece em questão o estatuto da periodização, assim como o atual estado da arte das relações entre as esferas aqui exploradas. Apenas nossa visão de ambas não pode mais permanecer a mesma. E talvez aí resida todo o significado essencial da palavra "transição".

Para finalizar, cabe registrar que os textos integrantes deste livro resultam do projeto de pesquisa Cultura e Política no Brasil no Final do Século 20: a Mídia, parte do projeto Brasil em Transição: um Balanço do Final do Século 20, desenvolvido no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (Cpdoc) da Fundação Getulio Vargas e no Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política da Universidade Federal Fluminense, dentro do Programa de Apoio a Núcleos de Excelência (Pronex).

Para a realização desta pesquisa contamos com a colaboração dos bolsistas do CNPq-Pibic e da Faperj, que nos ajudaram nas diversas tarefas de levantamento de dados e informações.

Os depoimentos dos jornalistas foram fundamentais para a reconstituição do capítulo sobre jornalismo econômico. Sem eles não teríamos chegado à compreensão das mudanças ocorridas na imprensa do período.