Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Mídia perdeu o controle da audiência

ENTREVISTA / FÁTIMA PACHECO JORDÃO

"A sociedade civil vai ser uma protagonista como jamais se cobriu"

Mauro Malin

Por que melhorou o trabalho da mídia na cobertura das eleições de 2002? A socióloga Fátima Pacheco Jordão aponta como fatores principais o ambiente democrático -
no qual a atitude do presidente Fernando Henrique Cardoso tem posição relevante -
, o acesso de mais crianças e jovens à educação formal, o retreinamento acelerado de trabalhadores que acompanhou a modernização do sistema produtivo, a pedagogia de massas sobre o funcionamento do governo e da política promovida pela exposição continuada de escândalos e crises, e a ampliação da cobertura de política pela mídia popular.

Como resultado, diz Fátima, a cabeça do eleitor se abriu para a política e o processo eleitoral, e já não há espaço para que a mídia tenha o controle da audiência, como em 1989. "A audiência, se não tem o controle dos meios de comunicação, tem uma capacidade de controle que cresceu enormemente, e que independe da vontade da mídia", constata. E isso numa conjuntura em que as empresas de comunicação concorrem ferozmente por audiência, enfrentam a maior crise econômico-financeira de sua história e são obrigadas, ainda por cima, a modernizar-se não só tecnologicamente como do ponto de vista editorial.

Na visão de Fátima Pacheco Jordão, a mudança do eixo da política brasileira para a esquerda, promovida pela eleição de Lula, terá impacto semelhante ao da estabilidade da moeda. "Vai aparecer, como aconteceu com a estabilização, um Brasil real, mais concreto", prevê.

Entre as transformações sociológicas que exigirão muito da mídia, Fátima aponta a mudança acelerada do papel da mulher na sociedade. "O protagonismo feminino é muito maior do que o que mídia retrata", afirma. A socióloga discorda da interpretação segundo a qual Lula teve uma proporção menor de votos no eleitorado feminino porque as mulheres são mais conservadoras. Para ela, foi o corporativismo do PT, e sua aliança com categorias do funcionalismo que promovem greves das quais as mulheres são as maiores vítimas, que tornou o eleitorado feminino menos entusiasta de Lula (ver, na página seguinte, o tópico "Entender o protagonismo feminino, só daqui a dez anos").

A participação do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva no Fantástico e no Jornal Nacional, nos dias 27 e 28 de outubro, merece de Fátima uma interpretação à margem da polêmica corrente. Para ela, a mídia pensa que usa o presidente eleito, mas é também Lula que está usando a mídia para preservar a imagem de homem do povo que contribuiu para sua eleição (ver "A polêmica do Jornal Nacional, terceira e última parte desta matéria).

Quem é

Fátima Pacheco Jordão é formada em Ciências Sociais pela USP e fez cursos de comunicação política e televisão na London School of Economics. Durante muitos anos trabalhou como publicitária, em planejamento e pesquisa de mídia. Implantou o Departamento de Pesquisa da Rede Bandeirantes e coordenou a área no governo de Franco Montoro em São Paulo (1983-87). Com o marido, Fernando Pacheco Jordão, veterano de redações jornalísticas, campanhas eleitorais e assessorias de comunicação de governos, criou a empresa Fato, Pesquisa e Jornalismo, de comunicação política e pesquisa.

Trabalhou em várias campanhas eleitorais, de diferentes partidos e candidatos -
Mário Covas, Eduardo Suplicy, Jáder Barbalho, Albano Franco, Telma de Souza, Lídice da Mata -
, para o governo de Pernambuco e prefeituras de Sorocaba e Campinas (SP). Sua experiência inclui a empresa privada (Companhia Siderúrgica Nacional) e veículos de comunicação (consultoria para edições especiais da revista Veja, para o jornal O Globo e para o Grupo Estado). Faz parte do Conselho Editorial do jornal O Estado de S. Paulo, é também conselheira do Conar, da Fundação Seade e do Conselho da Condição Feminina do estado de São Paulo. A socióloga dá assistência voluntária há vários anos para ONGs que defendem as mulheres, como Católicas pelo Direito de Decidir, SOS Corpo (Recife), Transas do Corpo (Goiânia) e Cunhã (Paraíba). Em janeiro de 2003 participará do lançamento da ONG Patrícia Galvão, ligada a comunicação e feminismo.

Ela é uma observadora profissional do trabalho da mídia nos processos eleitorais e fora deles, e uma usuária/produtora/analista de pesquisas de opinião. A teorização que formula nasce do exame vivo de situações e dados concretos. Não exorta, constata. Não proclama, aponta. Ainda que às vezes o faça com veemência.

A seguir, os trechos principais de sua entrevista ao Observatório da Imprensa.

Iniciativas inéditas

"As eleições de 2002 foram muito especiais do ponto de vista de mídia. A mídia sentiu muito rapidamente como essas eleições seriam percebidas pela opinião pública. Chegou a antecipar-se. Tanto assim que houve todo um planejamento, da TV Globo, de jornais e de outros meios de comunicação. Este ano, todos os veículos divulgaram todas as pesquisas, independentemente de terem ou não sido contratadas por eles. Isso deu ao eleitor, à audiência, uma visão muito mais completa do quadro de opinião pública. Foi uma coisa planejada. Eu mesma fui contratada pelo Grupo d?O Estado de S. Paulo para fazer uma assessoria junto aos jornalistas, escrever artigos ao longo das eleições, e para ajudar a tirar mais informações dos dados de pesquisa. Já se previa que haveria uma exposição muito forte desse instrumento.

"De outro lado, nestas eleições aconteceram eventos de mídia inéditos, como as entrevistas ao vivo no Jornal Nacional, a seqüência das entrevistas em todos os telejornais. E os meios de comunicação menos atentos foram na cola. Houve um momento, em junho e julho, em que alguns analistas diziam: ?Para que horário eleitoral, já que o grau de informação é tamanho, os candidatos estão se expondo?? E ainda há quem o diga hoje, o que a meu ver não é correto, porque horário eleitoral é outro gênero ? é propaganda, não jornalismo.

"Havia no passado uma certa complacência do jornalismo, um pouco de ressentimento, um pouco de crítica em relação ao horário eleitoral. A mídia, ao longo das campanhas, ficava burocrática. Cobria a agenda do candidato. Se ele fizesse uma campanha mais espetacular, como o próprio Lula fez, uma caravana pelo Brasil, sairiam coberturas extraordinárias; e se fosse um candidato rotineiro, saía aquela coisa: reunião com velhinhos, com empresários, assim por diante, um pouco deixando para o horário eleitoral todo o outro conjunto de informações que são temas que interessam ao eleitor -
fome, desemprego, segurança. Isto sempre coube no horário eleitoral, porque a propaganda do candidato obviamente põe em pauta os assuntos de maior interesse.

"Agora, não. Houve uma cobertura efetiva da mídia todo o tempo, mesmo após o início do horário eleitoral. Nunca foi apenas a agenda do candidato. A TV Globo fez séries sobre grandes temas, os jornais organizaram debates e todos os debates setoriais, com gente do comércio, dos setores da economia, foram muito bem retratados na mídia."

O eleitor mudou

"A mídia teve uma visão muito clara da mudança de patamar do eleitor. E, quando entrou o horário eleitoral, todos se surpreenderam com a audiência. Só houve isso antes na década de 80, no período da redemocratização. Agora, no início e no fim -
no meio sempre cai -
, registraram-se audiências imensas. A mídia também tirou dos candidatos o máximo possível numa situação eleitoral. Ela forçou os candidatos, mesmo no horário eleitoral, que é uma circunstância publicitária, a adotar discursos mais consistentes.

"Lula, com uma eleição praticamente ganha, tentou fazer um segundo turno de júbilo, de ?já ganhei?, de festa, de ?agora é Lula?, mas isso demorou dois dias. No terceiro dia já estava o Lula falando muito mais do que se pensava para responder ao desafio da mídia e do seu adversário, que diziam que ele não participaria de debates. Lula teve que reequilibrar seu discurso porque percebeu que debate era algo que o eleitor queria, de que precisava. Dependendo da pesquisa, sete ou oito em dez eleitores diziam ?nós queremos debate, ele é necessário?.

"A mídia enxergou que o eleitor mudou, enxergou com clareza maior até do que a maioria dos candidatos. Ciro, por exemplo, tropeçou no novo eleitor. O que Ciro disse e o desqualificou, a respeito da Patrícia… há dez, cinco anos não aconteceria nada. O eleitor mudou, sua sensibilidade, o nível de exigência, o que ele quer dos candidatos. E a mídia captou isso bem."

Um gigantesco processo de retreinamento

"O componente essencial dessa mudança foi o exercício da democracia ao longo dos anos, a pluralidade de informação, a tolerância à tensão política, ao confronto político. Fernando Henrique Cardoso foi um governante que teve um discurso muito transparente e realista. Em nenhum momento deixou de dizer coisas que nem sempre eram favoráveis a ele. Assumiu posturas, e as divulgou, rompendo de fato com um discurso mais oculto, mais opaco, e lidou com isso de uma maneira tranqüila.

"Mas há fatores que se agregam à questão do ambiente democrático. Pode-se ter um ambiente democrático sem uma evolução do eleitor em relação à política e à eleição. Há países democráticos onde existe desinteresse, as pessoas não vão votar -
na maioria dos países desenvolvimento o voto não é obrigatório -
, sente-se uma indiferença total. Na França, na Inglaterra, o dia da eleição é um dia comum.

"As novas condições brasileiras têm a ver também com outros processos, de educação, capacitação e informação, simultâneos. Nesses últimos dez anos houve um acesso muito grande à educação formal, ainda que o Brasil continue atrasado. Por motivos de mercado e devido a valores que a sociedade cultiva, ela de fato procurou ir à escola. Não é à toa que aumentou tanto o ingresso nos cursos médio e superior.

"Mais importante ainda é que, com a modernização do sistema de produção, levas e levas de pessoas foram retreinadas para o dia-a-dia do trabalho, para a pluralidade das formas de se desenvolver o trabalho -
as pessoas precisam saber mais coisas, precisam de capacitação. Tenho a impressão de que com esse treinamento, que foi muito compacto no Brasil, cabeças foram preparadas ? do professor ao operário, do burocrata ao comerciante ? para analisar melhor a realidade e entender a questão política."

Pedagogia de massas

"Outro elemento que não pode ser esquecido consiste numa pedagogia de massas. Na medida em que a mídia cobre intensamente certos eventos, numa seqüência que vai da CPI do Orçamento até o processo do apagão de energia (temas que usualmente não são tratados com profundidade), nesses momentos há uma cobertura extraordinária e isso é muito pedagógico para a população. No início dos anos 90 as pessoas começaram a entender o assunto do orçamento, passando por todo o processo do impeachment do Collor, por escândalos de bancos, até o acordo com o FMI. Como notou o ministro Pedro Malan, as pessoas estão muito mais informadas do que eram sobre o que significam as metas do acordo com o FMI em termos de inflação, de superávit primário. Tudo isso se massificou.

"Esses fatores todos abriram a cabeça do brasileiro para o processo político-eleitoral. O núcleo que hoje rejeita a política, os políticos, é o Prona. O discurso do Prona é o remanescente de dez anos atrás, de um desencanto, de um sentimento de que a política não resolve nada, os políticos são todos iguais, todos roubam. Os próprios processos ligados à corrupção mostram com clareza para a população que a questão da corrupção não é um mal moral, é um problema político e social -
com corrupção não dá para ter hospital, escola, segurança -
, e não é algo que está disseminado, que há contrastes entre pessoas e partidos, há promotores que estão acompanhando, a mídia está muito mais ativa, deixou de ser aquela coisa viscosa, que acontecia nos bastidores, e com isso igualava todo mundo. Agora essas coisas ficaram muito mais explícitas.

"Isso se deve não só ao processo democrático mas também a uma institucionalização do controle exercido sobre uma série de instituições pela sociedade e pela mídia. Há institucionalmente um processo que avançou, no sentido de mostrar à população como funciona a política, como funcionam os governos."

Modernizar-se em meio ao endividamento e à crise

"Mudaram muito, também, além disso, as condições da mídia de 1989 para cá. A mídia está muito mais competitiva, depende muito mais de suas audiências, e tem uma audiência muito mais qualificada, há muito mais pluralidade, que vem at&eacuteacute; de mídias alternativas, por exemplo a internet. Se um fato não é divulgado, uma versão não se sustenta, em 24 horas haverá uma emissora de rádio que captou uma notícia da internet que põe as coisas no lugar.

"Já não há espaço para a mídia ter o controle da audiência. É o inverso. A audiência, se não tem o controle dos meios de comunicação, tem uma capacidade de controle que cresceu enormemente, e que independe da vontade da mídia ? o que é reforçado agora pelo fato de que ela está vivendo a maior crise econômica que já experimentou. É uma mídia endividada, sem recursos publicitários, na medida em que houve enorme diminuição do consumo, e tendo que se modernizar, modificar, em dois planos: o tecnológico -
TV digital, o rádio enfrentando processos de produção novos, inclusive na internet, que permite passar para 400 emissoras a produção feita, por exemplo, no Rio de Janeiro por uma ONG -
, e, sobretudo agora, com a eleição do Lula, precisa reorganizar um pouco as suas prioridades editoriais.

"A sociedade civil vai ser uma protagonista como jamais a mídia cobriu.

"A mídia cobre o poder, sobretudo no plano político. Cobre Brasília, partidos políticos, uma parcela institucional muito reduzida da sociedade. Lula está levando a sociedade para protagonizar. Aquela reunião que ele fez [em 5 de julho] e que ele mesmo chamou de histórica, é histórica, a reunião em que ele montou um conselho com empresários, lideranças de que ninguém tinha ouvido falar -
a gente conhece porque sabe que são figuras importantes da articulação da sociedade civil -
, o presidente da Abong [Sérgio Haddad], a presidente do Geledés [Instituto da Mulher Negra], uma liderança negra importantíssima, mas que não está na mídia. Ninguém na redação pensa em procurar a Sueli Carneiro quando Lula diz aquela bobagem sobre cotas raciais [que a definição de quem é ou não negro seria estabelecida com base em ?critérios científicos?], porque não conhece a Sueli Carneiro. Tem que falar com quem? Com o adversário do político, ou senão com um político negro, ou com o próprio Fernando Henrique, ou, se existisse, uma instituição negra de tipo governamental, um ?Conselho do Negro?.

"Ou seja: o mapa da sociedade civil não está na redação."

Mudança tão importante quando a da estabilização da moeda

"Essas mudanças vão exigir da mídia uma atualização, o que custa dinheiro. A mídia tem que mudar tecnologicamente e no mapeamento da sociedade, a curto prazo, e isso é investimento, é tipo de know how, é tipo de jornalista, muda a especialidade. Não bastam apenas os jornalistas de economia e de política.

"Não se trata apenas da crise econômica conjuntural. Em meio a essa crise, a mídia não vai poder se dar ao luxo de ter preferências contra a preferência popular, não pode deixar de informar, obscurecer um campo. Ela precisa ter uma sintonia muito mais apurada com valores da sociedade, com a visão das suas audiências, do que tinha em 1989. Naquele ano, ela ainda tinha graus de liberdade para operar segundo suas vontades editoriais. Isso não existe mais. Ela recuou para o seu espaço editorial específico.

"A eleição do Lula e a mudança do eixo para a esquerda vão ter mais ou menos o mesmo impacto que teve a estabilidade da moeda. Caiu uma cortina que escondia o que é o Brasil. Vai aparecer, como aconteceu com a estabilização, um Brasil real, mais concreto, o valor das coisas, novas maneiras de consumir, de comprar e de comparar. Em 1994 mudou culturalmente todo um processo e na mídia houve expansão de editorias de direito do consumidor, de valor de consumo, custo, crediário. A mídia teve que se ajustar ao processo de estabilidade econômica. A cabeça do cidadão mudou. Essa mudança de eixo para a esquerda vai levantar o véu de uma sociedade civil escondida, que está operando há muito tempo, num processo democrático e, portanto, com graus de eficiência inéditos. A interlocução do governo com essa sociedade, o protagonismo dela vai crescer, e a mídia não poderá deixar de enfocar isso.

"O eleitor impôs respeito. Impôs novas condições de informação, de aprofundamento do debate, em todo o espectro da mídia, de A a Z.

"A base de informação da população é TV, rádio e mídia popular. E aí houve uma progressão, uma ampliação extraordinária da cobertura nestas eleições. Algumas questões cruciais para a população, temas eleitorais, muitas vezes tiveram tratamento melhor na mídia popular quanto a detalhes ? ?o que significa isso?, o que um disse, comparado ao outro, por quê.

"Os jornais populares, as emissoras de rádio, produziram um conjunto de informações inédito. No passado, jornal popular era crime e esporte. Isso mudou. Os pequenos jornais, Extra, Agora, O Dia, que se reformulou, e o Diário de S. Paulo são jornais que têm um repertório de informação, incluindo a questão política, muito mais qualificado do que cinco, seis anos atrás.

"Nos últimos dois anos a circulação de jornais não cresceu no Brasil. Mas cresceu, ao contrário de todos os grandes países, 10% ao longo da década de 90, e 70% desse crescimento veio da mídia popular -
pequenas revistas, como Ana Maria, que custa 1,50 real, cresceram enormemente. A proporção de leitura de jornais nos segmentos de baixa renda cresceu muito. Há dois anos, já atingia um em cada quatro brasileiros da classe D."

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