O MITO DA ISENÇÃO
Mario AV (*)
A TV Globo partiu para a repetição de 1989. O Jornal da Globo abriu sua edição de quinta-feira (17/10) com matéria de cinco minutos detonando Duda Mendonça, intercalando trechos de imagens de seu trabalho de campanha com um sujeito (não vi o nome) rechaçando o “marketing eleitoral”. Notável a ausência de menções a Nizan Guanaes ou José Serra. Ana Paula Padrão emendou: “Atenção, eleitor, você vota no candidato, e não no publicitário.” (Nem no partido, né?) Pode-se explicar a radicalização pelo desespero: afinal, Lula tem quase o dobro de intenções de voto de Serra. A recuperação deste, sejamos realistas, já é impossível.
A radicalização também explodiu na revista Época, da Globo. Até então, ela tinha tratado os candidatos a presidente com relativa equanimidade. Mas analisemos a edição da semana passada: começa por nada menos que Fernando Henrique Cardoso, que ganhou foto de capa com as seguintes chamadas: “O problema de Lula não é falta de sinceridade. É falta de compreensão.”; “O PT fala hoje aquilo que nós dizemos há mais de dez anos.” A entrevista do presidente é a primeira em toda a campanha em que ele bate no PT seguidamente e sem dó. “Outro dia José Dirceu disse uma frase ótima: ?Quero mudança com segurança.? É o slogan de Serra.”; “O PT está beijando a cruz. Lembram quando eu apanhei por causa da aliança com o PFL? E a aliança com ACM? Agora eu dou risada. É fantástico.”
Na seqüência, uma matéria de cinco páginas dizendo o oposto do resto da imprensa em relação à situação eleitoral de Serra. Que ele está “renovando suas alianças” (mentira; perdeu apoios importantes desde o primeiro turno, enquanto Lula herda os apoios dos ex- candidatos); que vai para o debate na TV “em igualdade de forças com o adversário” (mentira; não com seus 26% de desvantagem).
Seguem-se duas páginas sobre o crescimento do PT ? feias, mal ilustradas, não mostrando claramente o que a concorrência explica: que o PT passou a ser o partido majoritário na Câmara e no Senado. Logo adiante, audacioso texto de cinco páginas criticando Nelson Mandela e outros líderes populares, com os seguintes título e subtítulo: “Os oprimidos no poder ? No governo, os redentores das massas nem sempre correspondem aos anseios de mudança que simbolizam.” Em destaque, citação atribuída a Lech Walesa, sobre Lula, data ignorada: “Tínhamos opiniões diferentes. Ele enxergava coisas boas no comunismo, que eu sempre critiquei. Eu tive razão: cheguei a presidente e ele não.”
Tudo isso numa só edição!
A revista das Organizações Globo parecia imparcial no primeiro turno. Ao mesmo tempo, vangloriou-se em dois editoriais dos leitores roubados à concorrência por sua qualidade jornalística. Não custa lembrar que a revista foi luxuosamente auxiliada por um expediente não-jornalístico: o pacote promocional de banca. Por R$ 5,90 (R$ 0,40 a mais que o preço de capa da Época e exatamente o preço da Veja), vem junto com a revista um jornal da Globo, que na minha cidade é o Diário de S.Paulo (R$ 2,50), mais um gibi da Turma da Mônica (R$ 1,90), também da Globo.
Isso, em países sérios, creio que seria chamado de dumping.
Mas eu digressiono… Seja como for, para usar uma expressão cara aos jornalistas das semanais, “o fato é que” para o segundo turno a revista e a TV “serraram” bruscamente, e voltaram a mostrar sua feia face real. Ou a dos donos?
A revista independente CartaCapital tem advertido, há bastante tempo, sobre a vinculação da atuação da imprensa na eleição ao “Proer da Mídia”, a entrada do capital externo para salvar as empresas de comunicação em dificuldades financeiras. A MP 70, que regulamenta a matéria, saiu pouco antes do primeiro turno. As empresas beneficiadas ? especialmente você-sabe-quem ? não falaram uma vírgula sobre o assunto. Preferem agir. Há ainda:
** A mídia que faz de conta que não pensa
A Folha de S. Paulo é o exemplo mais claro de neutralismo institucionalizado, pois seu Manual de Redação simplesmente proíbe que o jornal tome partido. Os jornalistas que não escrevem colunas próprias acabam pecando pela anodinia forçada, um ou outro tentando passar a opinião pessoal pelas entrelinhas ou pelo formato das pautas, resultando em esquizofrenia redatorial.
** A mídia que pensa demais
A Veja sofre de um problema correlato, que é a constante extrapolação do seu papel ao arrogar-se uma função “educativa” que não tem como cumprir, porque se perde disputando poder com os próprios políticos. O outdoor de rua da edição sobre o primeiro turno das eleições dava a idéia: “Não vote se não ler.” O recente êxodo de leitores deveria já ter feito cair a ficha de que o público mais consciente não está mais aceitando isso passivamente.
** A mídia que assume o que pensa
O Estado de S. Paulo, que sempre deixou claro nos editoriais a quem apóia ? usualmente, o fulano mais à direita com poder ou chances de poder do momento ?, declarou apoio a Serra em texto no dia da eleição. Em que pese cheio de reservas contra Lula, que passam do limite do puro preconceito, pelo menos disse o que pensa. Ao mesmo tempo, fez as melhores reportagens especiais sobre os presidenciáveis.
CartaCapital, em artigo do próprio Mino Carta, avisou há duas semanas: “Escolhemos Lula há muito tempo.” E gastou duas páginas da semana seguinte para humilhar lindamente a carta de uma perfeita representante da (minhas palavras) elite retrógrada. Chuva de cartas elogiando a tranqüilidade e a coragem da publicação.
Como diz um leitor: “Que a imprensa assuma de uma vez que tem interesses ? políticos, pessoais, mercadológicos ?, mas que os assuma e deixe espaço para que o leitor também tenha os seus, sem intervenções.”
(*) Designer gráfico e ilustrador, editor da revista de informática Macmania <www.macmania.com.br>; site pessoal <www.marioav.com>; e-mail <mav@uol.com.br>