GOVERNO LULA
Antônio José do Espírito Santo (*)
Enquanto a cobertura da guerra do Bush contra o Iraque não se torna hegemônica no noticiário, começam a pipocar na imprensa brasileira críticas e restrições veladas, porém insistentes, ao governo Luiz Inácio Lula da Silva que, como todo mundo sabe, tomou posse há apenas dois meses.
São críticas açodadas e impertinentes, tanto quanto foi a adesão unânime da mídia às primeiras propostas do novo ministério e as tropicalistas manifestações de júbilo, exibidas a todo o planeta, na cerimônia da posse.
Aos leitores ou espectadores mais atentos ? os chatos de plantão ?, se a alegria do povo enchendo as alamedas da capital federal empolgava, causou intranqüilidade a natureza algo inconseqüente da cobertura da imprensa, tanto nos dias finais da campanha quanto logo após a posse, momento no qual todos os meios de comunicação, com raras exceções, optaram por atuar quase como meros porta-vozes dos atos e propostas do governo.
Teria sido difícil ser voz destoante naquela justa e afinada alegria que explodiu em Brasília, mas custava não exagerar?
É certo que fatos jornalísticos irresistivelmente otimistas ocorreram logo em seguida à posse: o Fórum de Porto Alegre, com seu charme antineoliberalista e sua sisuda antítese, o Fórum de Davos, no qual o capitalismo internacional, contido em sua selvageria, enfim se curvou diante do Brasil, paparicando nosso presidente e deixando nossos corações varonis inflados de orgulho. E Lula lá, nas merecidas manchetes mundiais, apertando as mãos de gregos e troianos.
O que causava intranqüilidade nos chatos de plantão era com certeza este alto grau de euforia, beirando a embriaguez, que passou a impregnar quase toda a mídia brasileira, exatamente o setor da sociedade a quem caberia analisar, o mais serenamente possível, a excepcionalidade daquele momento que, segundo alguns poucos analistas alertavam, estava envolto em uma talvez desmesurada dose de esperança, que poderia esconder em si mesma a possibilidade de uma ressaca mais desmesurada ainda.
Visões da gênese
Logo após a euforia, faltou á imprensa brasileira, ciente das fragilidades ainda evidentes de nossa democracia, clara disposição para esquadrinhar e expor para a população, meticulosamente, as características mais essenciais da assunção daquele fenômeno eleitoral galvanizado em torno do PT. Suas idiossincrasias, suas razões históricas, a complexidade dos desafios que se avizinhariam, jogar um pouco d?água naquela fervura ufanista, enfim.
Pois não é que os chatos de plantão já estão se dando conta de que a canoa, na qual a mídia embarcou na simpática cobertura das primeiras semanas do governo Lula, começou a fazer água? Da desmesurada adesão para a descompensada oposição será um pulo? Não seria a hora de a mídia baixar a bola e recomeçar a cumprir enfim sua função de guiar a população na compreensão deste novo e delicado quadro político que se apresenta ao país?
Trata-se aqui do grande e inestimável papel que, seguramente, nossa imprensa terá que assumir quando ? e se porventura ? as desmedidas promessas do governo começarem a se mostrar à população distantes ou inexeqüíveis. Quando a diferença entre o sonho e a esperança tiver que ser colocada em pratos limpos. Nem será preciso ser guia de cego. A sociedade brasileira, felizmente, ainda enxerga de um olho. O quadro a ser vislumbrado aliás, nem é muito complexo. Nem novo.
Ele é composto pela mesma tropa de políticos oportunistas, a mesma perversa conjuntura econômica internacional (tendendo a piorar com a guerra anunciada). No governo, um ministério que, embora formado a princípio por homens e mulheres decentes, é ingênuo e inexperiente, não tendo meios para escapar, em meros quatro anos, das seculares arapucas armadas em nosso sistema jurídico e parlamentar, composto pelas mesmos velhos lobos de sempre, representantes do povo sabe-se lá por que artifícios eleitos, além de uma população pobre e faminta, mas esperta, cada vez mais corrompida e aviltada pelo desemprego eterno, minorado por anos e anos de cupons de leite, cestas básicas, cartões e cheques-cidadão e outros programas sociais de ocasião.
Pode-se sugerir uma série de pontos obscuros que não foram devidamente aprofundados por nossa mídia, ou que de algum modo foram omitidos ou considerados pouco importantes no noticiário de então. Alguns deles são aspectos que, mais cedo ou mais tarde, farão a diferença na hora de se explicar por que o projeto de governo Lula deu certo ou, o que nenhum brasileiro de modo algum deseja, saber o que fez enfim a porca torcer o rabo.
Não estariam muitos destes fatores ainda obscuros relacionados, por exemplo, à natureza da evolução pela qual passaram as diversas correntes de esquerda do Brasil, para chegar ao poder através do voto, nos últimos 20 e poucos anos? Governados que fomos sempre por forças da direita e do centro, para início de conversa há que se definir que tipo de esquerda conquistou o poder com o PT.
Se não se pode dizer (a não ser como força de expressão) que com Lula o povo assumiu o poder no Brasil, afinal que forças políticas progressistas são estas, que vão nos governar pelos próximos quatro anos? A classe média terá chegado enfim ao paraíso?
Sabe-se pelo menos que a gênese destas forças políticas se dá na época da resistência à ditadura militar, principalmente aos 10 anos decisivos transcorridos entre a edição do AI-5 e a Lei da Anistia (1968/1979). Sabe-se também que esta gênese pode ser dividida em três aspectos principais, a saber:
** Resistência paramilitar
Embora com o fim da censura pouco se tenha dito na imprensa sobre fatos historicamente tão importantes, muitos de nós sabemos que, logo após o golpe militar, a esquerda brasileira, a partir de diversos rachas e cisões ocorridos no seio do PCB, um Partido Comunista de tendência pró-soviética, articulou-se em várias pequenas organizações, ao mesmo tempo paramilitares e políticas, entre as quais o PCBR, o PCdoB e a ALN.
A partir do último ano da década de 60, acuadas e premidas pela virulência da repressão dos militares brasileiros que ? já se globalizando ? passaram a ser diretamente orientados pela CIA e outras instituições do governo americano, estas organizações, por óbvias razões de segurança, viram-se obrigadas a reorientar sua luta, fazendo-o no entanto de maneira um tanto desarticulada, cada uma a seu tempo e a seu modo, num sistema de clandestinidade. Um volume enorme de material de propaganda, surgido a partir de precárias traduções de textos soviéticos, alemães e chineses, serve de arcabouço teórico para o que se pretendia que fosse uma resistência armada ao regime militar, algo que descambasse num efetivo "contragolpe" ou "contra-revolução".
A principal característica desta brava esquerda é pois, sua vocação teoricista, intelectualista, características típicas de certos setores das charmosas classes médias urbanas dos anos 70. Composta por gente muito jovem e romântica, geralmente estudantes universitários, da pequeno burguesia, como se dizia na época, movidos por uma sincera repulsa à ditadura e à miséria brasileira, tinha também esta esquerda um espírito um tanto paternalista, um sentimento agudo de superioridade diante do restante da esquerda tradicional, principalmente operários e sindicalistas, além da própria população como um todo, subestimada por ser considerada politicamente subdesenvolvida, alienada e submissa.
Isolada portanto em linhas ou tendências táticas ingênuas, baseadas em experiências revolucionárias estrangeiras, com referências históricas e filosóficas completamente estranhas à realidade ou à cultura brasileiras (principalmente as revoluções soviética de 1917 e chinesa de 1949), esta esquerda acabou optando por uma estratégia de ação vanguardista, que mesclava as velhas táticas de luta revolucionária citadas com as práticas guerrilheiras da Guerra Civil Espanhola e da resistência civil na Segunda Guerra Mundial. Perdida em seus devaneios teórico-militares, a parte mais decidida e sincera desta jovem esquerda, liderada por uns poucos velhos comunistas, se embrenhou na selva do Araguaia e, de maneira heróica, quase suicida, lutou por seus ideais até a morte de seus quadros mais renhidos, entre os quais o hoje estranhamente esquecido chefe militar, o negro Oswaldão.
A esquerda que chegou ao poder com Lula hoje é composta por muitos destes amargos e ressentidos sobreviventes. Em muitos aspectos sua chegada ao poder vem carregada de um forte sentimento de desforra. O poder, enfim, mas, sabe-se lá a que custo.
** Resistência político-partidária
Os eventos relacionados à anistia em 1979 e o fim gradual da ditadura militar no Brasil fizeram emergir um segundo aspecto também pouco abordado ou aprofundado, que pode relacionar a resistência armada ao golpe de 1964 à eleição de Lula e do PT em 2002. É, como se sabe, a energia liberada pela anistia que, provocando um movimento político irresistível, em todas as direções, estimulou a criação ou o ressurgimento de diversos partidos, entre os quais o PT, o PDT e os renascidos PCdoB e PCB.
É portanto no bojo do alegre reencontro entre militantes que ficaram e recém-chegados exilados, muitos deles velhas e experientes figuras da política brasileira ou ex-militantes da esquerda armada, ávidos em retomar a luta revolucionária em novas bases, que se deveria enquadrar o nascimento de novos partidos de esquerda no país.
Dentre estes partidos o mais curioso é com certeza o PT que, embora se caracterizando a princípio como um partido operário de tipo trabalhista, acabou atraindo uma maioria de artistas e intelectuais da classe média, muitos dos quais antigos militantes daquela então jovem e sofrida esquerda dos anos 70, saudosos dos velhos embates teóricos entre maoísmo, marxismo-leninismo, stalinismo e trotskismo, imbuídos, em muitos casos, daquele mesmo mal disfarçado sentimento de desforra.
É talvez por isto que em certa medida, junto com o retorno da folclórica disputa entre grupos de correntes ideológicas exóticas, as divergências entre PT e PDT por exemplo, passaram a ser, na prática, muito mais profundas do que as que deveriam existir entre estes para com o governo e os demais partidos à direita. O aspecto mais interessante a ser observado na composição social desta nova esquerda, congregada em torno dos ideais do PT, no entanto, é a preponderância de quadros oriundos das classes médias urbanas, principalmente profissionais liberais e intelectuais, além de estudantes universitários, artistas etc., em detrimento da maioria de operários metalúrgicos que formavam o PT original.
Curiosamente era esta a mesma composição da trágica esquerda dos 70, sobretudo se considerarmos que a maioria dos velhos militantes do PT atual, é composta exatamente por ex-asilados e militantes sobreviventes daquele período.
Talvez seja por isso que, neste mesmo sentido, seja possível perceber em algumas propostas desta nova esquerda, subentendidas em alguns aspectos do programa original do Partido dos Trabalhadores, junto com uma sinceridade às vezes comovente, um certo quê de vanguardismo, com leves pitadas de um populismo que ? cala-te boca ? alguns críticos mais maldosos já começam a identificar em certas ações públicas do governo.
** Resistência da imprensa
Embora se tenha notícia de algumas tentativas, a época da ditadura no Brasil não gerou, infelizmente, algo que pudesse ser denominado, mesmo remotamente, de imprensa clandestina, fenômeno ocorrido, por exemplo, durante a luta abolicionista. O isolamento, a falta de meios, além da constrangedora impopularidade das organizações de esquerda da época, não justificava nenhuma publicação que não fossem os toscos e prolixos "documentos", "manuais" e "panfletos" mimeografados.
É, contudo, e do mesmo modo heróica, a resistência à ditadura praticada por muitos veículos de imprensa no Brasil, especialmente aquela empreendida por grupos de jornalistas, a partir de um certo ponto dos anos 70, quando algumas publicações profissionais e muito criativas do ponto de vista gráfico e editorial, de algum modo interessadas em exercer um jornalismo inteligente porém popular (caso dos jornais O Pasquim e Opinião), começam a surgir, sendo reprimidas e sufocadas pela ditadura de forma implacável, até falirem.
Perderam-se por estas e outras compreensíveis razões, muitos importantes registros deste período (principalmente imagens em flagrantes que não puderam ser feitos, filmes velados, textos queimados etc.).
O fim da censura à imprensa no Brasil não trouxe, por outro lado, a recuperação da velha qualidade nem os avanços que se podiam esperar. De certo modo, determinadas características originais do jornalismo brasileiro foram perdidas para sempre. Entre outras perdas, o agudo senso crítico, qualidade que teria sido fundamental para que o atual momento político pudesse ter sido mais bem analisado ou compreendido.
Mudanças de paradigma, reforma das linhas editoriais em nome de uma imprensa moderna, talvez calcada demais no jornalismo nova-iorquino, uma imprensa cada vez mais clean e universitária, ansiosa por ser diferente da combativa e improvisada imprensa brasileira anterior, que era impulsiva, literária mas, na mesma intensidade, criativa e original, além de visceral e francamente interessada em desvendar e informar o Brasil.
Num país com milhões de iletrados, uma missão mais do que pertinente, convenhamos.
É esta nova imprensa, a mídia, como passamos a tratá-la com certo temor e respeito que, depois de uma rápida adesão à notícia fácil de ser digerida, começa agora a se arvorar de crítica daquilo que ela mesma estimulou, quando decidiu rapidamente endeusar Lula e o PT vitoriosos. Pragmatismo ou oportunismo? Como saber?
Quem tem medo de ser feliz?
Não deve mais ser pecado mortal afirmar que, provavelmente, a grande novidade representada pela eleição do operário Luiz Inácio Lula da Silva, antes de ser a possibilidade de realização dos anseios populares mais urgentes, deve ser, isto sim (e se o for, com conseqüências ainda imprevisíveis), a inédita afirmação de um partido das classes médias urbanas na política brasileira, um partido de tipo novo nestas plagas e que, de maneira extremamente eficiente, conseguiu atrair apoio da imprensa e, conseqüentemente, da maioria da população, para suas afirmativas, embora ainda bastante difusas, propostas.
Da parte do povo, do eleitorado em geral, é fácil concluir que, de certo modo, o medo de acreditar na mudança desapareceu. Pode-se determinar inclusive que este medo, inoculado no inconsciente popular pela ditadura militar, só agora nestas eleições, enfim, se dissipou completamente.
Considerando-se o baixo nível de politização da maioria de nosso povo, contudo, tendo sido este medo introduzido através da censura aos meios de comunicação, não teria sido a sua dissipação, desta feita, estimulada ou "autorizada" como propaganda, veiculada pelos próprios meios de comunicação?
E se tiver sido o marketing, a força da mídia, o poder de convencimento desta nova imprensa, e não a ideologia, o fator preponderante da surpreendente vitória eleitoral de Lula e do PT? Se é lícito festejar o fato de as eleições no Brasil terem sido livres e democráticas como nunca foram em toda a nossa história, há que se considerar que a opinião pública, desta vez, e também como nunca, esteve fortemente subordinada à maneira como as informações foram veiculadas pelos meios de comunicação de massa, notadamente os jornais e a televisão, segundo interesses que, se existiram, não foram apenas eleitorais e não estão ainda, de modo algum, claros para ninguém.
Se a grande popularidade que o governo do PT goza entre a população (e no mercado financeiro) estiver sendo de algum modo estimulada pela simpatia da mídia, o que será de nossa já frágil estabilidade social se esta simpatia, a bem da verdade surgida repentinamente, do mesmo modo brusco se esgotar?
Também não seria pecado portanto, sugerir enfim que se reveja e reflita logo, enquanto o tempo está claro e sem nebulosidade, sobre tudo o que a mídia viu mas fingiu que não viu ou teve raiva de quem viu, acerca de um certo esperançoso país surgido neste incerto ano de 2003.
E que a salvação não seja o gongo da guerra do Bush. É só o que esperamos.
(*) Músico, pesquisador da Uerj