Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

"Me criei na bilioteca do meu pai, lendo".

ENTREVISTA / LYA LUFT

Deonísio da Silva

"Acho que há relativamente pouca cobertura da imprensa, na questão literatura brasileira. Ou comentam sempre os mesmos medalhões, ou querem saber muito da vida pessoal, ou fazem resenhas breves que dependem da simpatia ou estado de espírito do resenhador."

Palavras de Lya Luft, uma das mais importantes escritoras brasileiras. Essa gaúcha nasceu na capital brasileira do fumo, Santa Cruz do Sul. Aos 20 anos transferiu-se para Porto Alegre, onde cursou Pedagogia e Letras. Sua dissertação de mestrado foi sobre a obra de Lygia Fagundes Telles. Foi casada com Celso Pedro Luft, de quem se separou para casar-se com o psicanalista Helio Pellegrino.

Faz uma ressalva: "não estou me queixando pessoalmente, porque a mídia tem sido comigo extremamente carinhosa, e afinal escrevo para o leitor, ele é que tem de ser meu cúmplice, meu interlocutor, meu apreciador e estimulador, e isso eu tenho em abundância, cada vez mais".

Lya estreou como poeta, mas foi como romancista que consolidou seu talento, dando voz e vez a personagens femininas marcantes em obras como As parceiras, A asa esquerda do anjo e Reunião em família. Seus livros mais recentes são Secreta Mirada (1997), O ponto cego (1999) e Histórias do tempo (2000).

Lya concilia sucesso de crítica e público e seus livros, sempre bem recebidos pela crítica, são constantemente reeditados. Sobre o modo de aferir os mais vendidos, diz que ali "se denota o gosto do público: ou querem divertimento leve e imediato, ou o consolo para as aflições espirituais… Mas, sendo sempre otimista, acho que apesar de tudo a imprensa se dá conta de que também existe a literatura-arte. Onde espero me incluir. Poderia ser mais? Poderia mais verdadeiros críticos literários, mais espaços, mais abertura".

A seguir, a entrevista de Lya Luft ao Observatório da Imprensa.

Os seus livros têm sempre fortes personagens encarnando temas e problemas, como é o caso de Gisela em A Asa Esquerda do Anjo, seu segundo romance, de 1981. Você faz tal escolha conscientemente ou o romance faz-se por si mesmo?

Lya Luft ? O romance se faz por si mesmo, mas obviamente não sou "possuída" por ele, ele se trama num nível de consciência mais vaga, o que talvez Freud chamasse "atenção flutuante". Penso muito tempo, meses, anos em um determinado tema ligado a personagem, vou-lhe inventando um universo, em geral familiar, nascedouro de suas loucuras… Vou tornando essa personagem e seus coadjuvantes o mais interessantes que puder (senão me entedio e largo, sou muito impaciente). São vislumbres, instantâneos, idéias que me ocorrem, climas, sensações, enquanto faço meu trabalho de tradução e vivo meu cotidiano. Finalmente personagens e o tema se tornam muito presentes, intensos, "pedem" para que eu os escreva. Só aí aparecem no computador, tomam forma, cor, cheiro e a história vem, com muitas idas e vindas. Mas o texto em si é totalmente lúcido, consciente, trabalhado, elaborado. Reescrevo muitíssimas vezes, até que finalmente esteja do melhor jeito que posso naquele momento. Sou exigentíssima comigo mesma e amo as palavras, o peso, a forma, a cor, o gosto de cada uma.

Por que é tão raro que os entrevistadores façam ao escritor perguntas literárias e prefiram indagar sobre questões extraliterárias? Exemplificando: o leitor quer saber a que horas você dorme, quando acorda, se viaja muito ou pouco? Ou estamos incorrendo numa inércia de entrevistas, feitas quase sempre da mesma maneira?

L. L. ? Os entrevistadores perguntam conforme eles são (mais ou menos preparados, mais intelectuais ou mais fofoqueiros) e conforme seu jornal ou revista quer. As perguntas pessoais são meio cansativas, repetitivas, sim, mas freqüentíssimas, que fazer? É preciso paciência, fazer-se de sonsa, sei lá. Já me acostumei: em geral respondo com simplicidade, a simplicidade é mais fácil.

Você trouxe do alemão para a língua portuguesa obras de Rilke, Brecht, Thomas Mann, Herman Hesse, Günther Grass. E do inglês, Doris Lessing, Virgínia Woolf, Richard Ellmann. Como o trabalho de tradução implica conhecimento profundo do livro traduzido, pode-se dizer que essas tarefas funcionaram como oficinas para você? Ou a dedução é descabida?

L. L. ? A tradução para mim foi e é um exercício maravilhoso de escrita e pensamento, pois assim escrevo português constantemente mesmo quando não trabalho num livro meu ? e isso há uns trinta anos ou mais. Como um maratonista que corre o ano todo para aquela corrida de São Silvestre. Devo muito a esse trabalho de tradução: para mim, escrever é tão natural como respirar. Não conheço o tormento da página em branco: até porque se não tenho nada para dizer, fico calada.

O brazilianista Malcolm Silverman, da San Diego State University, a quem você conheceu nos EUA, está aqui e pergunta em que medida a herança germânica que você traz no nome e na formação te influenciou.

L. L. ? Não sei em que medida me influenciou. Não sou nada germânica nos meus pontos de vista e modo de viver, só na aparência. Meus antepassados vieram em 1825, muitas gerações brasileiras, e sempre lutei contra aquele superego germânico da disciplina etc. Sou uma feliz transgressora. Mas acho que a formação deve ter influenciado, afinal me criei na imensa bibioteca de meu pai, lendo teatro grego, Dostoiévski e Goethe e Schiller aos 12,13 anos… Mas para minha salvação, também lia Monteiro Lobato e muito gibi e romances água-com-açúcar.

Uma leitora sua me disse que sai de teus livros, ao final da leitura, como que purificada. Disse não saber explicar o processo, mas que sente ter havido uma purgação no caminho percorrido entre a primeira e a última página. Você tem depoimentos de leitores? O que te dizem?

L. L. ? Tenho centenas de depoimentos de leitores, h&aaaacute; cada vez mais uma identificação do leitor comigo através dos personagens, impressionante isso. Me assusta às vezes estar-me tornando, ao menos aqui no Sul, quase um "ícone". Pessoas me encontram e dizem: "Nunca pensei um dia poder estar na sua presença". Meio chato isso, dá uma sensação de isolamento. Vejo também, nas palestras, um público muitíssimo atento e amoroso, sejam universitários, psicanalistas, público vário etc. Talvez porque eu fale do coração, com muita simplicidade, modo direto, meio sussurrando no ouvido do leitor, não sei. Os depoimentos são 90% muito instigantes, positivos, estimulantes. De vez em quando ainda tem um com aquele gasto: "por que tão assustadora"? Mas esses, deixa pra lá.

Em seus romances, a presença quase obsessiva do tema da morte e seus domínios conexos, com as outras destruições, criam no leitor afinidades de reflexão. Todos se preocupam com o tema? A morte te inspira o quê? Porque me parece que medo ela não te inspira.

L. L. ? A morte é o Grande Tema da humanidade, pano pra manga de milhares de romances, poemas, reflexões. Ela torna a vida urgente, bela, magnífica, esplendorosa, e muito misteriosa também. Não sou obcecada pelo assunto, ele apenas domina a existência humana, e se a gente se desse mais conta na transcendência em que estamos mergulhados, curtiríamos a vida muito mais, os amores, os prazeres, a coisa estética etc.

Mário Quintana dizia ter curiosidade com a eternidade, mas nenhuma pressa. Já os escritores românticos preferiam, ou diziam preferir, a vida breve. Como é que você vê a vida hoje quanto a este alongamento de fronteiras que políticas públicas e cuidados privados estão permitindo para muitas pessoas? Em alguns casos, a morte não estaria sendo indevidamente prorrogada? Refiro-me, por exemplo, às reflexões que na Europa vêm presidindo a discussão da eutanásia.

L. L. ? Eutanásia não me atrevo a discutir, não tenho cacife. Mas já vi, assisti, acompanhei uma vida preciosa que ia-se degenerando, a pessoa transformada num espectro, sem relações, sem se dar conta da vida, sem vida praticamente. Nesses casos, acho que no mínimo, por amor e respeito a essa pessoa, não se deve prolongar de nenhum modo artificialmente a vida. Quando ao nosso tempo de vida, sim, ele está com um prolongamento que pode ser ótimo, desde que com qualidade ? e não falo só da física, mas da emocional e mental. Vivemos mais, porém com um terror pela passagem do tempo, como se ele fosse perda, não conquista. Hoje, aos 62 anos, sinto que conquistei minha maturidade, não perdi a juventude; espero aos 80 sentir que mereci minha velhice, não perdi minha vida. Isso tem a ver com valores internos, filosofia de vida, alegria de viver, auto-respeito. Viver obcecado pela juventude deixa as pessoas muito limitadas e neuróticas. Mulher que malha na academia duas horas por dia devia usar mais de metade desse tempo tentando humanizar-se, amando, lendo, pensando, vivendo.

Você não tem a sensação de que escrevemos num dialeto na Galáxia Gutenberg? Num dialeto em nosso próprio país onde, apesar do número crescente de leitores, são ainda poucos os que se beneficiam da leitura?

L. L. ? Nunca me importei com isso de escrever para uma minoria. Escrevo porque me dá alegria, porque nasci para fazer isso. O resto ? menos os amores, amizades e família ? é dever, é acréscimo. Se uma pessoa só ler um livro meu, terá valido a pena. E sou uma otimista incorrigível.

Freqüentemente, porém, você é convidada, e às vezes convocada, a estar aqui e ali falando a leitores. E, claro, falando a quem ainda não te leu. Esses eventos fazem parte do trabalho do escritor, são indispensáveis?

L. L. ? Eu cada vez recuso mais convites para palestras e entrevistas, pois eles se multiplicam cada vez mais também. Aceito em alguns casos, quando sinto que estou dizendo "não" demais. Não vou muito a congressos, sou quase radicalmente antiacadêmica em tudo, tenho dificuldade em tudo que é espírito de grupo, a burocracia me apavora, a "Corte" me horroriza. Recebo muitas homenagens a que nem compareço (horror,eu sei). Sou individualista e aprecio ficar quieta. Gosto, preciso de ficar quieta na minha casa, com meus livros, meus CDs, minhas árvores, meus amigos e filhos e netos. Sou uma pessoa tranqüila, um bicho da minha casa. Fico feliz assim.

Lya Luft foi uma menina feliz? Freud disse que a felicidade seria a realização de nossos desejos infantis. Você sempre quis ser escritora? Sempre soube desse querer?

L. L. ? Fui uma menina muito feliz, ao contrário do que pensam os que ainda acham que o escritor só escreve sua própria biografia (eu escrevo sempre a biografia de minhas preocupações enquanto ser humano, nunca minha vida pessoal). Uma casa grande no interior, pai, mãe, família, segurança, alegria. Mas eu tinha uma alma inquieta, sentia a vida e tudo com uma intensidade assustadora ? daí deve ter nascido a minha arte. E sou ainda hoje, apesar de percalços da vida como todo mundo tem, uma mulher fundamentalmente feliz, isto é, de bem com a vida. Mas me preocupo muito com o mundo fora de minhas quatro paredes: não sou nada alienada, e espero que os inteligentes vejam minha literatura não apenas como "intimista" (ou seja qual for o rótulo), mas como uma literatura de denúncia: denúncia de valores falsos, hipócritas, preconceituosos, sobretudo no relacionamento humano, amoroso, familiar.

    
    
              

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