FOLHA, 80 ANOS
A impressão geral é de narcisismo. Libido dirigida ao próprio ego, ou egolatria. Também chamada de autofilia. Neste estado não se encaixa qualquer sentimento de culpa ou impulso de reparação.
E no entanto, o caderno "Tudo sobre a Folha" contém importantes confissões. O resultado deste confronto íntimo é uma situação esquizofrênica: com traços narcisísticos os mea culpa estão prenhes de ressentimentos. Perdem a indispensável generosidade.
Exemplos são os dois subtítulos da página 3: "Folha apoiou o regime de 64, mas se engajou na redemocratização nos anos 70" (cotovelada claramente dirigida ao Grupo Globo que entrou pela metade na campanha das Diretas); e "Folha apoiou deposição de Goulart mas não participou de nenhuma conspiração" (esta dirigida ao Estado de S.Paulo e ao Globo, que participaram da conspiração).
Devidamente traduzida em linguagem coloquial a penitência soa como proclamação: mesmo errando sou melhor do que vocês.
A esquizofrenia (ou ambigüidade) manifesta-se também no modo de fazer o caderno: o repórter – sobretudo o que assina a matéria das págs. 3 e 4 – procura investigar com isenção, fazer justiça. Mas a direção do jornal impõe limites. Sobretudo, versões.
Chama a atenção o esforço do repórter em tirar o nome de Cláudio Abramo do ostracismo em que foi colocado, assim como de outros iniciadores da renovação do jornal. Mas impõe-se a Voz do Dono: o desagravo fica pela metade.
Este Observador – não por mérito, mas pela sobrevida – é uma das poucas testemunhas da decisiva participação de Cláudio Abramo no episódio do renascimento da Folha. Os acionistas da empresa poderiam estar sonhando em converter um veículo secundário com grande circulação e nenhuma credibilidade num jornal influente. Mas Cláudio Abramo inventou a receita para concretizar o projeto a um custo ínfimo: aproveitar a abertura de Ernesto Geisel e torná-lo um jornal de opinião.
Em maio de 1975, portanto dois meses antes de inaugurada a página de editoriais, Abramo foi a Nova York e encontrou-se com este Observador no campus da Universidade de Columbia. Ao convidá-lo para participar da empreitada, Abramo descreveu exatamente o que pretendia fazer. Depois, viajou a Washington para repetir o mesmo convite ao jornalista Pimenta Neves (que, diante de outros compromissos, não o aceitou).
No fim de junho de 1975, este Observador foi a São Paulo para discutir como seria a sua participação no projeto. Diante de Cláudio Abramo, Octávio Frias de Oliveira convidou-o a chefiar a sucursal do Rio e a escrever um artigo diário. "Como, se o jornal não tem página de opinião?" (Cláudio deu uma piscada). Louve-se a acuidade do atual publisher: "Então façam a página". Na apertada sala de Cláudio (o diretor nominal era Boris Casoy) foi desenhada a célebre página 2 obedecendo ao traço criativo de Abramo (com ligeiras sugestões deste Observador). A página foi inaugurada nos últimos dias de junho e, no dia 2 de julho, este Observador começava a coluna diária na rubrica "Rio de Janeiro", com as iniciais A.D. As outras rubricas eram "Brasília" (assinada por Ruy Lopes, que já escrevia um suelto político em páginas indeterminadas) e "São Paulo", assinada por S.W., iniciais de Samuel Wainer – sequer mencionado na lista de grandes nomes que colaboraram no renascimento da Folha.
Boris Casoy não teve a menor importância naquela fase, embora, nominalmente, fosse a autoridade máxima da redação. Não participou de qualquer uma destas decisões históricas. Nem lia os artigos da página 2 – a principal na época. O responsável era o grande "cozinheiro" (Secretário de Redação) Emir Nogueira.
Essas e outras rememorações poderiam enriquecer e validar o caderno "F-80" mas o repórter, apesar das ousadias notáveis, teve que ceder às injunções.
Marketing e badalação
Mas é na matéria das páginas 30-31 que o "F-80" comete as maiores barbaridades. Com o título "Jornal cresce e se torna grupo de mídia", a reportagem enfatiza a importância estratégica e financeira do UOL. E não cita uma única vez o nome de Caio Túlio Costa, o criador do projeto e seu principal executivo até hoje. Um nome que vai entrar para a história da internet no Brasil não foi lembrado numa reportagem cujo subtítulo é categórico: "A Internet prepara as empresas para a perda de importância das áreas industriais tradicionais".
A associação da Folha com a Abril é tratada com um desdém significativo, passando-se a borracha do revisionismo numa relação pessoal e empresarial que envolveu projetos da envergadura da compra do Jornal do Brasil e da Gazeta Mercantil. Já a associação com o Grupo Globo é descrita com um orgulho despropositado e injustificado – afinal, foi uma derrota para o Diretor de Redação que sempre apontou o jornalismo global como antítese do jornalismo da Folha.
Papelão fizeram os colunistas e opinionistas, como foi notado na edição anterior deste Observatório [veja remissão abaixo]. Tanta a bajulação compromete a isenção das respectivas análises cotidianas.
A esquizofrenia está presente também em outras passagens onde o desejo de buscar a verdade esbarra na férrea determinação de moldar a verdade. Dizer que o Projeto Folha iniciou o jornalismo moderno (no Brasil) é ensandecimento (manchete da página 14 do dito caderno). Mas acrescentar no subtítulo que O Manual de Redação é um dos elementos da renovação do jornal, raia à paranóia. Não houve nenhum "choque editorial"; houve, sim, muito marketing e badalação. Quando saiu a primeira edição do Manual, em 1984, o jornal já estava consagrado como um dos mais influentes do país. O livro apenas confirmou procedimentos internos, em vigor não apenas no jornal mas em outros veículos. E criou cacoetes que até hoje deformam o jornalismo brasileiro.
A provecta Folha perdeu ótima oportunidade para mostrar que o tempo é artífice da sabedoria. Talvez consiga em 2011 ou 2021.
Até lá.
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