Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Melchíades Cunha Júnior

ARMAZÉM LITERÁRIO

Autores, idéias e tudo o que cabe num livro


MEMÓRIA / CARLOS LACERDA

"Decifrando Carlos Lacerda", copyright O Estado de S. Paulo, 20/05/01

"Amanhã se completarão 24 anos da morte de Carlos Frederico Werneck de Lacerda. Este ?derrubador de presidentes? – e aí se inclua sua participação até mesmo na queda da ditadura salazarista – morreu com pouco mais de 63 anos, no Rio de Janeiro, onde nasceu no dia 30 de abril de 1914. Do longo, cristalino, emocionado, contundente depoimento prestado entre março e abril do ano de sua morte a uma equipe do Jornal da Tarde ficou a impressão de que se tratava do canto de um cisne. O cisne só canta quando pressente que vai morrer, diz-se. Carlos Lacerda cantava um testamento, com sua voz e entonação privilegiadas. ?Avidamente, como alguém que esteve privado durante longo tempo dos seus maiores prazeres e de repente se vê em condições de gozá-los novamente, quem sabe se com o pressentimento de que seria pela última vez?, escreveu o jornalista Ruy Mesquita, em seu prefácio ao livro Depoimento.

Pouco antes da série de encontros que teve com a equipe do JT, em seu sítio do Alecrim, no Rocio, em Petrópolis, ele escrevera num artigo para jornal: ?Minha vida que está se acabando…? Perguntado a respeito, disse que era um pré-diabético – ?Como quase todos os homens da minha família? -, mas os últimos exames a que se submetera, com um médico em São Paulo, revelaram que estava tudo bem. ?Repetiram que estou com um coração ótimo. Fizeram o exame de fundo de olho e disseram que estou com o fundo de olho de criança… Mas vamos dizer que seja um pouco de melancolia. Porque não é fácil.?

Não estava fácil a vida ?da personagem civil que possivelmente mais influenciou com eficácia nos rumos da história brasileira entre 1945 e 1968? (segundo o historiador José Honório Rodrigues, em seu Introdução aos Discursos Parlamentares, página 33). A melancolia se apossara do ?maior tribuno que passou pela Câmara dos Deputados?, como assegura Paulo Pinheiro Chagas (em Esse Velho Vento da Aventura, página 330), e reconhecia Almino Affonso na quarta-feira da semana atrasada, no restaurante Piantella de Brasília: ?Foi o maior tribuno que eu conheci. O Lacerda falava, e a Câmara parava: os correligionários, embevecidos; os adversários, enraivecidos. Mas uns e outros paravam para ouvi-lo.? Almino, de oratória igualmente elogiada, foi líder do PTB e ministro do Trabalho do governo João Goulart. E, naturalmente, dos mais duros adversários políticos de Lacerda.

UMA MOSTRA NA UNB

Na mesma quarta-feira (dia 9), a Universidade Federal de Brasília (UnB) abriu para o público a mostra denominada Inventário do Fundo Carlos Lacerda, composta de quatro grandes conjuntos: Vida Pessoal, Produção Intelectual, Vida Empresarial e Vida Política. São cerca de 60 mil itens entregues em 1979 à UnB pela família de Carlos Lacerda, entre cartas, recortes de jornais, fotografias, documentos pessoais e oficiais. Depois de um longo trabalho de pesquisadores da própria universidade, os arquivos encontram-se finalmente catalogados para consultas, com a exposição de parte do acervo podendo ser vista até o dia 4.

Carlos Lacerda era um homem preocupado com a sua biografia, como se deduz dos guardados que compõem o acervo. Alguns documentos chamam a atenção, como o manifesto datado de 1.? de abril de 1964 (não seria essa a data certa do golpe militar?), assinado por três generais de Exército – Arthur da Costa e Silva, Humberto de Alencar Castelo Branco e Décio Palmeira Escobar. O manifesto conclamava o oficialato à derrubada do governo João Goulart. Pela data do documento, deduz-se que os altos chefes militares ainda não estavam seguros do sucesso de sua conspiração. Um outro documento, com o timbre ?confidencial?, datado de 28 de julho de 1964, relata a posição incômoda de alguns oficiais com as primeiras críticas de Carlos Lacerda ao primeiro governo da ditatura militar, chefiado por Castelo Branco. (Detalhes minuciosos dos vários e cada vez mais cáusticos entreveros de Carlos Lacerda com os chefes militares constam de seu depoimento ao JT, transcrito também pelo Estado, que, em 1978, foi reproduzido em livro pela Nova Fronteira, editora fundada pelo próprio depoente, sob o título Depoimento.)

A CARTA DE DRUMMOND

Na mostra da UnB, vale também uma consulta à correspondência de Carlos Lacerda. Entre as cartas recebidas, estão lá as enviadas por intelectuais do porte de Mário de Andrade, Érico Verissimo (revelando que, além de escrever, o pai de Luis Fernando Verissimo também desenhava), de Rubem Braga, Otto Lara Resende e Carlos Drummond de Andrade.

Datada de 25 de dezembro de 75, o poeta Carlos Drummond de Andrade batucou em sua Olivetti uma carta de agradecimento ao presente de Natal recebido de Lacerda – um livro de poemas de Fernando Pessoa (Ode Marítima), editado pela Nova Fronteira. Eis o que escreveu CDA:

A afirmação de que ?não gosto de você? seria pelo menos exagerada, se não fosse, como é, totalmente errada. Ninguém é indiferente ao ?charmeur? irresistível que você é; e mesmo os que dizem detestá-lo, no fundo gostam de você. Gostam pelo avesso, mas gostam. Quanto a mim, tenho presente que fomos bons camaradas na luta perdida da ABDE, e que lhe dei o meu voto para governador (voto de que não me arrependi, em face dos lances criativos do seu governo). Apenas, discordei de posteriores atitudes políticas de você. O que é comum na vida, e não afeta relacionamento pessoal. Certo?

O abraço cordial, a admiração e os bons votos do seu Carlos Drummond.

Charmeur, expressão francesa, significa encantador, fascinador, charmoso.

UM HOMEM ENIGMÁTICO?

Tem sido comum jornalistas referirem-se a Carlos Lacerda como um enigma na política brasileira. Mas seria ele de fato uma figura enigmática? Não parece. Mas explicar Lacerda não é tarefa para jornalistas, cujo ofício exige pressa, e na pressa se tropeça. Melhor que falem os historiadores, cujo ofício exige muita pesquisa e maturação, uma análise ampla do contexto em que viveu o pesquisado, da sua formação, das influências que recebeu, da sua psicologia e, sobretudo, dos seus pensamentos, seus atos, suas palavras…

Ao contrário de enigmático, não teria Lacerda sido um dos políticos mais transparentes que este país já conheceu? Os arquivos da UnB já estão disponíveis, à espera de pesquisadores que se interessem em passar a limpo sua história.

A IDÉIA DE PODER

Carlos Lacerda nunca escondeu que foi militante da Juventude Comunista, nos anos 30. Deixou às claras seu anticomunismo posterior, bem como sua impiedade com os adversários e seu golpismo radical contra aqueles que classificava de políticos oligarcas, que se ocupavam apenas da defesa de seus interesses pessoais. E jamais ocultou também seu projeto obsessivo de chegar à Presidência da República, para poder governar com empenho e alegria. Dizia desprezar os que encaravam o poder como um ônus.

O poder não é cargo de sacrifício. Ao contrário, o poder, antes de tudo, é uma fonte maravilhosa de alegria. (…) Quando eu descia naquela obra da água (a construção do emissário do Guandu), era uma coisa que realmente me fazia esquecer todas aquelas brigas e desaforos, palavrão pra cá e discussão pra lá. (…) Fiz um discurso lá, em que eu disse quase textualmente isso:

?Não me importa que não se lembrem, quando abrirem as bicas, quem foi que botou a água. O que importa é que eu me lembre.? É uma sensação quase vertiginosa. O perigo disso é o sujeito se converter quase num idólatra de si mesmo, compreendem? É o que acontece com muita gente. Namora tanto o poder que vira Hitler, Fidel Castro, sei lá o quê. (…) Ser governo não é um sistema de privilégio para você. Ser governo é uma forma quase de escravidão, pelo menos de servidão, isto é, não ter hora, não ter direito nem a ter honra pessoal; é não ter o direito ao amor próprio; é não ter tempo de cuidar dos filhos. (…) Eu tenho nojo da pessoa que diz que está fazendo um sacrifício: ou é um mentiroso, ou é um impostor, ou não sabe o que está fazendo lá. (Páginas 63 e 64 do Depoimento.)

O DEMOLIDOR DE PRESIDENTES

Em sua ânsia pelo exercício do poder e para fazer valer a sua idéia de governar, colaborou decisivamente para a derrubada de Getúlio Vargas por duas vezes, em 1945 e 1954; de Jânio Quadros, em 1961, quando este iniciou manobras para castrar o Congresso, as quais, denunciadas por Lacerda, levaram-no à renúncia como uma tentativa de retornar com mais força. (Quando ele entregou a carta de renúncia, eu me lembrei imediatamente do Nasser que, depois do fracasso da primeira e da segunda guerra com Israel, renunciou e voltou ditador; Perón renunciou e voltou ditador, mais do que antes; Fidel Castro renunciou e voltou ditador. Então, pensei, é a mesma manobra! – na página 261 do Depoimento); e , finalmente, na queda de João Goulart, em 1964.

Tentou, mas não conseguiu impedir a ascensão de Juscelino Kubitschek, através do adiamento da eleição presidencial de 1955, em que o então governador de Minas era o franco favorito.

O FIM DE SEU CICLO

Carlos Lacerda viu seu ciclo político terminar prematuramente em 1968, quando teve seus direitos políticos cassados e enfrentou uma nova prisão. Ele se transformara, desde o cancelamento da eleição presidencial de 1965 para a prorrogação do mandato de Castelo Branco, na ameaça civil mais concreta à continuidade do regime castrense. Onde residiria o enigma Lacerda? Se bem pesquisada, a clareza de atitudes foi uma constante em sua trajetória política. Inclusive quando mudava de opinião.

No depoimento no Rocio, fizeram-lhe a pergunta: ?O senhor foi acusado de trocar com muita facilidade de opinião e de às vezes elogiar pessoas que o combatiam. Há, inclusive, um livro sobre isso do Epitácio Caó. São verdadeiras as declarações do livro??

Sua resposta: Nunca li o livro todo. As coisas que li são verdadeiras. Agora, se quisesse não lhe dar uma resposta direta, eu repetiria o Ruy Barbosa: ?Só os burros não cometem incoerência. Só os burros não mudam de opinião?. Mas prefiro justificar com palavras minhas. O que acontece é o seguinte: os acontecimentos mudam, as coisas mudam de aspecto. E só realmente uma pessoa obstinada ou vaidosa é que não reconhece quando as coisas mudam. O que peço a Deus é que me conserve exatamente essa capacidade de parecer incoerente, quer dizer, de elogiar o sujeito quando o sujeito me parece que está fazendo coisa certa e, amanhã, espinafrá-lo quando me parece que ele está fazendo coisa errada. Agora, se você juntar as duas coisas, você é que parece incoerente. O incoerente é ele! Nesse livro (o livro de Epitácio Caó) há muitas coisas desse gênero. Jânio Quadros, por exemplo: o Jânio apareceu como um sujeito disposto à vassoura, disposto a fazer um grande governo. Depois mostrou o contrário. Quem é o incoerente? Eu, que o elogiei quando ele parecia bom e o ataquei quando ele ficou ruim? Ou foi ele, que parecia bom e ficou ruim? Incoerente seria eu se continuasse a elogiá-lo.

A FRENTE AMPLA

Nos dias de hoje, com o distanciamento crítico propiciado pela passagem do tempo, a transparência com que agiu, com primeiras, segundas ou terceiras intenções, segundo o ponto de vista de cada um, fica mais evidenciada. Com a solidificação da ditadura militar (que durou 21 anos, de 1964 a 1985), estendeu a mão a Juscelino, cuja eleição quis adiar e cujo governo combateu com ardor, e a João Goulart, que ajudou a derrubar. Nascia aí, em 1967, a inimaginável Frente Ampla para a restauração da democracia no País. A Frente foi posta na ilegalidade em abril do ano seguinte por Costa e Silva – o segundo presidente do ciclo militar, o homem do AI-5, de 13 de dezembro de 1968. Mas alguns de seus frutos seriam colhidos em 1985…

Não gosto de política. Gosto é do poder?

A SOLIDÃO SEM PODER

A partir da cassação de seus direitos, com o AI-5, Lacerda transformou-se aos poucos num homem melancólico, desiludido. A rampa do Palácio do Planalto não existiria mais para os seus passos.

Chovia fininho e triste… Abrigado na porta do prédio, de repente me dei conta de que ali morava o Carlos Lacerda. Subi até a cobertura. Uma empregada me abriu a porta. O dr. Carlos está lá em cima. Lá estava, sim, na bela biblioteca, sentado na cadeira de balanço. Sozinho… A Frente Ampla tinha sido fechada em abril. O Carlos estava interessado em parapsicologia… Até que caímos na real. Sim, o AI-5. Ele achava que ia ser preso. E foi. O silêncio do telefone me afligia. (Da crônica Convém não Esquecer, de Otto Lara Resende, publicada em seu livro póstumo Bom Dia para Nascer.)

O País via nascer naquela data os verdadeiros anos de chumbo da ditadura militar. A repressão às liberdades democráticas levada ao paroxismo – prisões políticas, tortura institucionalizada, censura à imprensa e tudo o mais que se sabe -, um paroxismo que as gerações mais novas tiveram a ventura de não viver.

A ?CHATICE? DA POLÍTICA

Há um fato pouco ressaltado na trajetória política de Carlos Lacerda. Ele só disputou três eleições. A primeira, em 1947, quando se elegeu vereador pela UDN em sua cidade, o então Distrito Federal, renunciando ao mandato no mesmo ano, em protesto contra os costumes vigentes na ?Gaiola de Ouro?, como era chamada a Câmara Municipal carioca. A segunda, em 1954, para deputado federal, recebendo a maior votação da época. E em 1960, quando obteve o governo do Estado da Guanabara – a nova unidade federativa, criada a partir da transferência da capital para Brasília. (Mais tarde a Guanabara foi incorporada ao Estado do Rio). Ele nunca foi secretário municipal ou estadual, tampouco ocupou ministérios e cargos públicos. Em seu depoimento ao JT disse que gostaria mesmo é de ser escritor. E fez uma revelação que pode surpreender:

Político, não. Não gosto de política; acho conversa política uma conversa chatíssima, acho os interlocutores em geral muito chatos, no que estou já fazendo uma injustiça a vários deles. Gosto é do poder, política para mim é um meio de chegar ao poder. Acho que ser oposicionista é muito mais difícil do que ser governo. Exatamente na medida em que ser oposicionista de verdade, quer dizer cumprir o seu dever de oposição, de vigilância, de crítica, é muito mais frustrante do que ser governo (Depoimento, página 402.). E numa carta à mãe, de 22 de novembro de 1923, quando tinha 9 anos de idade, escreveu: Já escolhi minha profissão, hei de ser engenheiro agrônomo. Não me meterei em política. Já fiz este juramento. Não defenderei, mas também não atacarei. Sei que isto não a desgosta porque foi com esta maldita política que meu pai se perdeu. (Na carta, que está no acervo da UnB, Lacerda assina como Carlos Caminhoá, o sobrenome da família materna.)

O CONSPIRADOR

Carlos Lacerda não pode também ser classificado de conspirador contumaz, de partícipe de manobras florentinas, típicas de um seguidor dos conselhos de Maquiavel. Era um homem da palavra, oral e escrita. Impiedosa em ambos os casos. Seus discursos na tribuna da Câmara dos Deputados, no palanque eleitoral, no rádio e na TV e seus artigos de jornal abalaram a República em diversas ocasiões. O jornalista Carlos Castello Branco é quem explica, num artigo publicado em sua coluna no Jornal do Brasil, de 21 de maio de 1978, a propósito do livro Depoimento:

Outra verdade que ressalta desse livro é que Carlos Lacerda, tendo mergulhado na conspiração e na clandestinidade desde os verdes anos, jamais conspirou depois de 1945. Ele morreu sem saber que em 1950 a tese da maioria absoluta era o centro de uma conspiração, na qual se enredaram o general Canrobert Pereira da Costa, ministros do TSE e o presidente da UDN, Odilon Braga. Em 1955, não percebeu a conspiração contra a posse de Juscelino, pois o preocupava apenas a pregação do regime de exceção, à margem do qual conspiraram generais e políticos para uma ação eficaz contra o resultado eleitoral. Em 1961 declara ter-se recusado a conspirar com o presidente (Jânio Quadros) e em 1964, embora fosse o núcleo da resistência civil, não foi posto a par da conspiração que corria o País há dois anos.

Em seu prefácio, Ruy Mesquita corrobora a análise de Carlos Castello Branco. Conta que meses antes do golpe de 64, numa conversa com seu pai, Júlio de Mesquita Filho, Lacerda mostrou-se avesso a participar da conspiração. ?Eu tenho o direito de terminar minha vida política na Presidência, dr. Júlio, e se os militares assumirem o poder desta vez permanecerão nele o tempo suficiente para que isso não seja possível?, disse então.

APELOS DO CORAÇÃO

Carlos Frederico Werneck de Lacerda (teria ele se dado conta de que seu nome é um perfeito verso alexandrino, como o de Olavo Braz Martins dos Guimarães Bilac?) viveu seus últimos anos mergulhado na leitura e na elaboração de seus textos literários. A melancolia driblava no papo vadio com os amigos e no cultivo de suas roseiras no Rocio. Às vezes abusava um pouco do uísque. Conta-se que, nessas ocasiões, Enio Silveira cuidava dele, levando-o de volta para casa. Desde seu projeto da Frente Ampla, passara a ser visto com outros olhos pelos amigos que se afastaram. Entre eles, o editor da Civilização Brasileira, seu companheiro dos tempos da Juventude Comunista.

A reconciliação com Enio – ?um samaritano?, segundo a expressão usada por Gloria Rodríguez, dona Nenê, mulher do jornalista Moacyr Werneck de Castro, primo de Lacerda – foi importante. Ajudou a quebrar as reservas de outros desavindos, entre os quais Paulo Francis. Enio Silveira, um nome histórico da esquerda brasileira, era muito querido e respeitado nas rodas intelectuais cariocas. Francis, depois da reaproximação, também cuidou de facilitar as coisas, em jantares ocasionais no restaurante Antiquarius.

Carlos Lacerda era um causeur admirável, segundo vários depoimentos colhidos. O demolidor de presidentes era também um homem da ternura, de acordo com as mesmas fontes. No sítio do Rocio, além dos roseirais, criava passarinhos e brincava com as tintas. Foi lá que escreveu sua obra-prima Na Casa do meu Avô, concluída meses antes de sua morte. Revelou-se igualmente um tradutor sensível e competente, louvado por Drummond e por outros nomes de igual quilate da literatura brasileira. Suas traduções de A Morte de Ilan Ilitch, a tocante novela de Tolstói, e do drama Júlio Cesar, de Shakespeare, foram tidas como primorosas. Seria Carlos Lacerda de fato um enigma ou um paradigma exuberante da nossa tropicalidade? Ele não tinha título universitário; abandonou o curso de Direito no terceiro ano.

ALGUMAS OPINIÕES

Outros políticos de Brasília dão aqui suas opiniões sobre Lacerda. Miro Teixeira, líder do PDT na Câmara, diz que nunca o demonizou, por ser a ?favor do livre-pensar, mas tanto a esquerda como a direita o lincharam em vida?. O deputado conheceu o ex-governador da Guanabara quando do lançamento de um de seus livros, em 1976 ou 1977 (ele não precisou a data e tampouco o nome da obra), numa livraria de Ipanema. E espantou-se com o número reduzidíssimo de pessoas presentes àquela noite de autógrafos. Lacerda deixara de propagar o lançamento, acreditando que uma mera nota na coluna de Carlos Swan, no Globo, seria o suficiente para despertar o interesse dos cariocas.

Miro constrangeu-se com a frieza reinante. E ouviu de Lacerda uma observação e um convite: ?Você é deputado, não é? Então, senta aqui e vamos conversar, já que não veio ninguém mesmo.? E ficaram proseando por um longo tempo. O já ex-político desarmara de vez as resistências de um político que surgia e se aliaria mais tarde a um de seus arquiinimigos, Leonel Brizola. ?As ideologias tradicionais já estavam superadas quando o conheci. Hoje, quando se vê o cenário, Lacerda faz falta para a polêmica.?

O senador pernambucano Roberto Freire, presidente do PPS (o novo nome do Partido Comunista Brasileiro), depõe: ?Como um velho comunista, que conheceu a transição da Frente Ampla, vejo-o um pouco maior do que antes. Tenho que admitir que era uma inteligência e também um administrador ousado. Talvez sua juventude comunista, não bem-resolvida, tornou-o um anticomunista num momento inadequado, pois era de um reacionarismo muito forte.?

?MORREU VIROU SANTO?

Paulo Francis, em suas colunas para este jornal, recorria a uma citação latina, vinda da civilização grega – De mortuis nil nisi bene – quando comentava a morte de uma pessoa que despertava controvérsias. ?Fale apenas bem dos mortos, ou cale-se? – numa tradução livre. Francis e Lacerda, depois de mortos, não foram poupados por alguns de seus desafetos.

Não sou a favor desse negócio de ?morreu virou santo?, não. Mas um pouco de respeito é bom e eu gosto. Se a pessoa morreu, deixa a história julgá-lo. Não compete à gente julgar, e muito menos no dia seguinte. Se a gente não pode julgar bem, pelo menos… Por exemplo, agora quando morreu o Juscelino, não teria cabimento nenhum eu ressuscitar uma porção de acusações contra o Juscelino, que eu ainda faria hoje. Mas fui procurar as qualidades dele. É o mínimo que se pode fazer. Depois, os historiadores que se incumbam de fazer um levantamento do que ele fez de bom e de mau. (Depoimento, página 406.)

(Melchíades Cunha Júnior integrou a equipe do ?Jor-nal da Tarde? que entrevistou Carlos Lacerda no Rocio)"

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