Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Meu caro amigo Alessandro

ALESSANDRO PORRO, 73

Moisés Rabinovici (*)

A lembrança de Alessandro Porro me afligia nos últimos dias. Sabia-o mal de saúde e havia meses tentávamos marcar um encontro. Aí ligou Alessandra, uma de suas quatro filhas: "Papai morreu".

Estava fechando a edição de segunda-feira do Diário do Comércio. Teclei "Alessandro Porro" no Google para coletar dados para uma nota de falecimento. Surgiram alguns textos que ele assinou na coluna Swan, no Globo. Notícias de mais um livro publicado, Casamento & Divórcio. Uma citação rancorosa em uma entrevista. Praticamente só. Quanta injustiça!

A Porro é debitada uma grande besteira jornalística. Não a li, não a vi, não a testemunhei, não conheço quem a confirme, mas apenas quem a repita, como se fosse uma lenda. É o relato da morte de Che Guevara, escrito como se ele a tivesse assistido na Bolívia. Ele a despachou da redação da revista Realidade. E como um bumerangue, o "furo" de reportagem voltou ao Brasil e o acertou em cheio, ferindo-o para toda a vida.

Nunca ouvi Porro falar de Che desde que o conheci no final de 1977, em Tel-Aviv. Ele era correspondente de Veja, eu do Estado de S.Paulo. Ele, veterano, eu começando. Freqüentávamos o centro de imprensa com os brasileiros do Globo, Jornal do Brasil e da Folha. Último a chegar, levei algum tempo até descobrir a concorrência mortal que nos unia cinicamente apenas no cafezinho, enquanto líamos comunicados do governo depositados em nossos boxes e ouvíamos o noticiário em inglês ou francês, cada um com seu rádio-gravador de pilha. Porro orgulhava-se de ter o melhor de todos. Em casa, exibia um rádio militar.

Porro não me declarou guerra. Até me ajudou com o credenciamento e a escolha do bairro para viver. Mostrou-me restaurantes. Aclimatou-me à vida israelense. Por ser o único semanário entre diários, ele se dava com todos. Passava as noites de quinta-feira escrevendo; às sextas, comemorava. Lia com sotaque italiano a sua reportagem para os amigos. Depois, shabat, ia beber chá com hortelã no Café Kassit, na rua Dizengoff, onde se encontrava com Ibrahim, um amigo palestino. Visitava livrarias. Preparava ele próprio o jantar, quase sempre um espaguete à putanesca. O fim de semana só acabava na segunda-feira à tarde. Tinha um acordo com sua mulher, Irene: ele limpava a casa de seu umbigo para cima, incluindo a montanha de louça suja que deixavam acumular, e ela ficava com o chão, o lixo, a roupa e um cão que tinha medo de tudo, até de passear.

Guarda-costas vingativo

Irene era uma negra escultural, descoberta por Porro quando dançarina do Sargentelli, num show brasileiro em Paris. Ela acabaria se tornando conhecida em Israel depois de fotografada com os seios numa bandeja para uma capa de disco. Os árabes a saudavam com salamaleques, quando turistava pelas cidades palestinas da Cisjordânia. Mas alguns religiosos vizinhos de prédio não a queriam, nem ao marido, menos ainda ao cachorro ? e uma vez tiraram dele alguns pelos para um antídoto contra os três.

Porro tinha um amigo inseparável em Israel: o norte-americano Barry Riesenberg, casado com Malka, uma aeromoça da El-Al. Os dois escreveram um livro: como a paz em fim de negociações entre egípcios e israelenses seria recebida em várias partes do mundo. Eram páginas brancas, com uma frase só, às vezes com uma única palavra. O motorista de táxi em Nova York exclamaria: "Socorro!", em iídiche. Yasser Arafat: "Socorro!", em árabe (acho que também em hebraico). O papa: "Socorro!", em polonês. Queriam publicá-lo a tempo de pegar a onda de consumo de fim de ano. Estavam seguros de que seria um grande sucesso. Mas a gráfica atrasou muito esperando um texto que não existia. Pronto o livro, ninguém aceitou distribuí-lo. Os dois resolveram protestar bloqueando a porta da principal livraria de Tel-Aviv, a Steimatsky, com um montão de exemplares. Mas um caminhão de lixo os levou todos embora.

No avião com o primeiro-ministro Menachem Beguin e a imprensa internacional, num vôo histórico Tel-Aviv?Cairo, Porro pôs um exemplar do seu livro para circular. De repente, um jornalista gritou em inglês, mostrando-o a todos: "Eu comprei essa merda!"

Porro levantou-se e também berrou: "Ah, foi você!" A discussão continuou porque o único comprador queria seu dinheiro de volta. O avião gargalhava. Beguin pegou o livro e o repassou sem sequer folheá-lo. O co-autor Barry acabaria usando o encalhe para calçar a própria cama ou como blocos de anotação.

No Cairo, Porro e um dos seguranças de Beguin se desentenderam à entrada de uma raríssima sinagoga dos remanescentes judeus do Egito. Foram apartados antes que se engalfinhassem. Barrado, ele aproveitou para ir ao shuk, o mercado. À noite, no Mena House Hotel, lá estava ele, como se nada tivesse acontecido, vestido com uma galabyia, a túnica dos árabes. "É de linho", exultava. Depois desta viagem, ele nunca mais pôde entrar em Israel sem ser levado por policiais para uma revista detalhada, em que até a pasta de dente era espremida. Cortesia do vingativo guarda-costas da comitiva de paz israelense.

Dias e noites

O jornalista Porro que eu conheci prezava cada palavra que escrevia. Comparava as traduções para o árabe e o hebraico de acordos assinados em inglês. Atualizava-se obsessivamente sobre o Oriente Médio. Eram livros de história, biografias, ensaios, até a Bíblia, a Torá e o Alcorão. Lia os jornais americanos, italianos e franceses. Vendo-o tão zeloso eu achava que ele estava querendo abrir uma trajetória de trabalhos consistentes que o distanciassem cada vez mais do mito de Che Guevara.

Porro tinha tanto humor quanto pavio curto. Eu o vi explodir dentro de um banco que não aceitou sua credencial de jornalista como documento de identidade. E o vi também se aproximar de um casal de velhinhos, abraçá-los como se os reencontrasse depois de perdê-los na Europa durante a Segunda Guerra Mundial, fazer um escândalo público, eufórico, para depois se retirar sem dar nenhuma explicação. Ficou possesso quando alugou um carro branco, com motorista, para receber um Civita, e apareceu um azul. Brigou comigo porque eu ia veloz de Beirute a Haifa, atrasado para enviar o artigo do dia, e queria saltar no meio da estrada aberta por tanques, numa aldeia xiita. Não parei. Mas ele me fez voltar uns 50 quilômetros, enfrentando de novo inúmeros check points do exército israelense e de facções palestinas, ao descobrir que tinha esquecido os óculos no bar do hotel Commodore.

Vivia uma vida desregrada. Fumava sem parar (e morreu aos 72 anos "sem pulmão", como contou o amigo que o levou para o hospital). Bebia. Emendava dias e noites. Nunca o vi preocupado com dieta ou em fazer ginástica, caminhar. Um dia ele foi transferido de Israel para a Inglaterra. Em Tel-Aviv deixou Irene, que passou a namorar um ferido de guerra sem uma perna. E em Londres deixou um olho, ao bater o rosto no corrimão da escada de um bar. Ganhou uma indenização por acidente paga por um de seus cartões de crédito. Dizia que ia comprar uma casa…

Coberturas históricas

Ele sonhava em abrir um restaurante pequeno. Em todo grande acontecimento no Oriente Médio, lá vinha ele avisando, pelo telex, que estava voltando. Não importava a demorada revista-punição no aeroporto ? ele não se permitia perder mais um capítulo de guerra e paz entre judeus e árabes. Sempre aparecia com um malte escocês para abrir com os amigos. Numa dessas viagens ele fez um trabalho memorável. Foi a reportagem da tragédia de Sabra e Shatila, o massacre de palestinos por forças cristãs libanesas, consentido pelo ministro da Defesa israelense na época, general Ariel Sharon, até hoje em guerra contra o líder palestino Yasser Arafat.

Porro gostava de casar (e dizia que procurava agora a sétima mulher) e de escrever livros (quantos publicou? não sei… surpreendeu-me uma vez como autor de um livro sobre a operação Entebe; ontem, como autor do guia Casamento & Divórcio; sempre, com projetos mirabolantes logo abandonados). Um dia reencontrei-o na platéia de uma palestra que fiz em São Paulo. Combinamos nos ver algum dia. Ele me mandou um e-mail com uma charge em que um nadador judeu abre uma piscina como Moisés, o Mar Vermelho, e uma pergunta sobre um jantar: "Quando?"

Pensei no "quando?" nos últimos dias. Como estaria o Porro. A poucas horas de ir a seu enterro, agora, senti que deveria escrever este testemunho. Será uma injustiça se um jornalista de tantas coberturas importantes e históricas ficar relegado ao esquecimento ou só ser lembrado por um erro pelo qual pagou a vida toda.

(*) Jornalista, diretor-superintendente do Diário do Comércio, de São Paulo