Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Milton Coelho da Graça

GOVERNO LULA

“Estamos cobrindo direito o Planalto?”, copyright Comunique-se (www.comunique-se.com.br), 30/06/03

“O presidente da Anatel, Luiz Schymura, disse às dez horas da noite de quinta-feira, 26/6, que não havia recebido qualquer pedido formal do presidente Lula para rever os índices de reajuste das tarifas telefônicas. E anunciou que mandara publicar no Diário Oficial do dia seguinte, sexta-feira, os índices negociados com as empresas concessionárias.

As manchetes dos quatro principais jornais do país (incluo o JB nesse quarteto por cacoete carioca) foram

as seguintes:

ESTADÃO: LULA MANDA VETAR AUMENTO DE 28,7% ANUNCIADO PELAS TELEFÔNICAS

JB: LULA ACHA ABUSIVO AUMENTO DE TELEFONE E VETA ACORDO

FOLHA: FRACASSA ACORDO SOBRE TARIFA DE TELEFONE

O GLOBO: EMPRESAS REJEITAM ACORDO E VÃO AUMENTAR TELEFONE EM ATÉ 41%

Ou seja, Estadão e JB deram como certo um veto presidencial, desmentido não só pelo presidente da Anatel, como também pelo ministro da Fazenda, Antonio Palocci, e pelo deputado Jorge Bittar, que assessora o Planalto em assuntos de energia elétrica. Todos disseram que os contratos seriam plenamente respeitados e que a Anatel era a única responsável pelo assunto.

Aparentemente ESTADO, FOLHA e JB consideraram o ministro das Comunicações, Miro Teixeira, como uma fonte mais confiável sobre o pensamento do Presidente Lula do que os outros personagens. Só O GLOBO fez um ?lead? mais cuidadoso: ?A Anatel ignorou ontem a orientação do ministro das Comunicações, Miro Teixeira – feita, segundo ele, em nome do presidente Luiz Inácio Lula da Silva – e decidiu autorizar reajustes etc. etc.?

Essa contradição será, sem dúvida, um dos assuntos dominantes da semana política que se inicia hoje, segunda-feira, 30 de junho. O Presidente mandou ou não o Ministro Miro botar pra quebrar e, depois, puxou o tapete?

A nós, jornalistas, cabe um debate menos imponente mas, sem dúvida, mais importante para a credibilidade de nossa profissão. Os editores deveriam ter aceitado, sem checar com o próprio Planalto ou o Ministério da Fazenda uma informação que contrariava o claro compromisso do Governo de respeitar contratos? Foi Miro ou algum assessor quem deu diretamente a notícia aos repórteres (em matéria nenhuma aparecem declarações suas aspeadas, apenas o fac símile das primeiras linhas do ofício por ele enviado a Schymura)?

Tendo a imaginar que houve realmente um novo resvalo de humor presidencial, pela maneira como todo o

governo se empenha em isentar o Ministro Miro de qualquer esperteza, equívoco ou gafe. Mas há outras explicações possíveis. Só para o comportamento da imprensa é que não consigo encontrar uma versão alternativa ao erro crasso de edição, muito possivelmente causado pela carência de gente suficiente na redação para correr atrás de Ricardo Kotscho, André Singer, Luiz Gushiken, Antonio Palocci, Jorge Bittar e quem mais pudesse assegurar que o Presidente havia resolvido dar uma banana para os contratos.”

“O verbo solto de Lula”, copyright Folha de S. Paulo, 29/06/03

“A semana terminou com dois marcos para Luiz Inácio Lula da Silva. O presidente ultrapassou seu antecessor em número de discursos proferidos nos seis primeiros meses de Planalto. E se embrulhou pela primeira vez nas próprias palavras ao incluir o Congresso e o Poder Judiciário no rol de adversidades que não o impedirão de conduzir o Brasil a um futuro exitoso.

A dianteira sobre Fernando Henrique Cardoso -104 discursos contra 93- é simbólica, mas antes dela já reinava a percepção de que Lula fala mais.

Para isso contribui a preferência do presidente pelo improviso, que o leva a derivar os textos preparados por sua assessoria, quando não a abandoná-los de todo em favor de considerações do momento.

?Não tem chuva, não tem geada, não tem terremoto, não tem cara feia, não tem um Congresso Nacional, não tem um Poder Judiciário; só Deus será capaz de impedir que a gente faça esse país ocupar o lugar de destaque que ele nunca deveria ter deixado de ocupar?, afirmou o presidente na terça-feira, em cerimônia na Confederação Nacional da Indústria.

Tamanho o mal-estar, Lula se viu obrigado a vir a público no dia seguinte para dizer que não tivera a intenção de ofender os demais Poderes.

?Foi sem dúvida sua declaração mais desastrada, e por ela está pagando o preço merecido?, avalia o historiador José Murilo de Carvalho, professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). ?Ele próprio já afirmou que um presidente não pode fazer bravatas. Fez a maior delas.?

A frase em questão ilustra uma das linhas de força da retórica de Lula. Trata-se do tom messiânico imprimido às referências ao desafio de governar. ?Alguém vai ter que salvar este país?, disse duas semanas atrás em Pelotas (RS), sem deixar dúvida sobre quem seria o único capaz de fazê-lo.

Sírio Possenti, professor de linguística da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), considera prematuro enxergar tônica personalista no discurso de Lula. ?Evidentemente ele não é um diplomata, mas o que me parece característico é a sua forma de se dirigir ao público como fazem os comunicadores populares de rádio ou televisão.?

Chamou a atenção de Possenti, no evento em Pelotas, o fato de Lula ter falado de microfone em punho e andando pelo palco.

Feijões e bebês

Outro ingrediente da loquacidade presidencial são as comparações. Versem sobre as etapas da reforma de uma casa, a duração da gravidez ou o tempo de maturação dos feijões, as historietas de Lula são, na verdade, uma só.

Indiretamente, todas pedem ao eleitor que tenha paciência para ver cumpridas as promessas de campanha. Se ?a esperança venceu o medo?, como disse o petista ao ser eleito, o objetivo é evitar que se evapore a esperança e com ela a situação confortável do presidente nas pesquisas.

O cientista político Marcos Coimbra, diretor do instituto Vox Populi, não vê sinal de esgotamento da paciência da população.

Pesquisa Datafolha publicada na edição de hoje mostra Lula estacionado com 42% de avaliação ótima ou boa e 43% de regular, desempenho semelhante ao apresentado por FHC à mesma altura de seu primeiro mandato e melhor que os de Fernando Collor e Itamar Franco em igual período.

Em levantamento qualitativo realizado pelo Vox na semana passada, o estilo de comunicação de Lula é associado por entrevistados a atributos como ?próximo das pessoas? e ?diferente dos outros políticos?. O presidente fala demais? ?Essa história de falar muito só incomoda quem lê jornal todo dia?, opina Coimbra.

Além da retórica da paciência, Lula se vale de um recurso que poderia ser chamado, tomando emprestado um dito do cantor e compositor Tim Maia, de ?tudo é tudo, e nada é nada?.

Utiliza frases que podem servir para a reforma da Previdência, dúvidas existenciais ou problemas de saúde.

?Uns acordam mais tarde, outros acordam mais cedo. Uns dormem mais tarde, outros dormem mais cedo. Nem todo mundo dorme e acorda ao mesmo tempo? (em resposta a parlamentares tucanos que lhe perguntaram por que o PT defende hoje propostas que combateu enquanto esteve na oposição).

?Não há ninguém 100% feio nem ninguém 100% bonito? (a respeito de parcerias entre os governos federal e do Acre).

?Nenhum ser humano é 100% mau e nenhum ser humano é 100% bom? (a propósito de oportunidades para jovens).

Em artigo publicado na revista ?Nation?, a psicóloga Renana Brooks identificou fenômeno semelhante no discurso de George W. Bush, dado a ?afirmações tão abstratas e carentes de significado que se torna impossível fazer-lhes oposição?.

?Linguagem vazia?, escreveu Brooks, ?é usada para ocultar generalizações indevidas e neutralizar pontos de vista divergentes?.

?Homem de coração?

Sobre seu recente encontro com o presidente americano em Washington, Lula disse crer ?que, quando dois seres humanos são sinceros nas suas relações, acreditam naquilo que estão falando, têm convicção de propósito, as coisas podem ser melhores?.

A frase exemplifica tanto o ?tudo é tudo? quanto outra característica da fala de Lula. Se Fernando Henrique foi um presidente ?fanático por explicar?, como definiu o jornalista Roberto Pompeu de Toledo em seu livro-entrevista com o tucano, o sucessor busca convencer pela emoção – Bush elogiou Lula como ?um homem de grande coração?.

?Olhar no olho vale mais que documento por escrito?, disse o presidente a metalúrgicos de São Bernardo (SP) na noite de quinta-feira. ?Política, para mim, a gente faz com telepatia.?

Para o psicanalista Jorge Forbes, a linguagem afetiva vai ao encontro da escolha feita pelo eleitorado em outubro passado. ?Se não fosse assim, teriam elegido José Serra, que representa o discurso racional por excelência.?

Encerra a receita da fala do presidente a insistência com que ele se refere à sua instrução formal incompleta.

?Eu acho que nós já conseguimos, em seis meses, do ponto de vista de política internacional, aquilo que muitos que estudaram a vida inteira não conseguiram fazer?, disse Lula ao voltar dos EUA.

Em Pelotas, declarou que, para governar, não é preciso falar inglês, mas sim ?ter caráter?. Em Brasília, na manhã da sexta-feira passada, além do inglês, foram descartados ?o francês e o russo?. ?A palavra universal?, afirmou, ?é o sentimento?.

Como mostram os exemplos acima, as menções ao tema são feitas em tom de auto-elogio e crítica indireta ao antecessor, o supertitulado FHC.

A questão da escolaridade foi um dos componentes da rejeição de parte do eleitorado a Lula em suas três primeiras tentativas de chegar à Presidência.

Na campanha passada, os tucanos tentaram se aproveitar desse fator de maneira explícita, cobrando um diploma universitário do petista no horário eleitoral gratuito. O resultado foi desastroso.

Vitorioso, Lula passou a insistir nessa tecla, misturando o orgulho por sua origem e trajetória com a defesa, ainda que indireta, da falta de escolaridade como um valor.

No entender de José Murilo de Carvalho, o presidente se mostra ?defensivo? em relação à sua escolaridade, beirando o elogio da pouca educação.

?Um psicólogo talvez dissesse que sua atitude revela vulnerabilidade à crítica e que, no fundo, ele participa da mania nacional por um diploma de doutor. É pena.?”

“Língua E Poder”, Editorial, copyright Folha de S. Paulo, 29/06/03

“?A terapia teve um efeito idiossincrático com prognóstico favorável em caso de pronta supressão?. Essa frase, enigmática para os não-iniciados nas sendas médicas, não significa muito mais do que ?o remédio teve efeito contrário, mas não causará problemas se for suspenso logo?.

Esse é um dos exemplos de jargão que consta da reportagem sobre linguagens técnicas publicada na semana passada no caderno Sinapse. O jargão é de fato inevitável, mas isso não significa que ele deva ser empregado em todas as ocasiões. Com efeito, toda profissão, do telemarketing à física de partículas, acaba por desenvolver um vocabulário específico, muitas vezes impenetrável para o leigo. Não apenas neologismos são criados como palavras comuns podem ter sua significação alterada.

Em alguns casos, trata-se de uma necessidade. O jargão, no mínimo, economiza palavras, concentrando carga informativa em termos específicos. Quando um médico fala em ?miocardiopatia idiopática?, ele está na verdade dizendo um pouco mais do que apenas ?problemas cardíacos de causa ignorada?. No subtexto, um outro médico compreenderá que o paciente sofre de moléstia cardíaca de origem desconhecida e para a qual já foram descartadas as causas que mais comumente provocam doenças do coração.

Em determinadas áreas científicas, os próprios objetos de estudo não passam de jargão. É o caso, por exemplo, da linguística, com seus morfemas, sintagmas e lexemas, e da física de partículas, com seus quarks, glúons e léptons. No limite, sem o jargão, os fenômenos estudados não podem nem ser enunciados.

Reconhecer a importância e a necessidade do jargão em certas situações não significa chancelar seu uso indiscriminado. Um médico ou um advogado que se dirijam a seus clientes em linguagem técnica incompreensível estão, na verdade, atendendo muito mal ao consumidor, que deve ter, em todas as ocasi&ootilde;es, acesso a uma explicação completa de sua situação em linguagem acessível.

Infelizmente, as coisas nem sempre se passam assim. Desde que o mundo é mundo, profissionais de uma determinada área tendem a unir-se para manter sua arte impenetrável para o público em geral e, assim, aumentar seu poder. Não foi por outra razão que os escribas do antigo Egito complicaram desnecessariamente a escrita hieroglífica: era uma forma de conservarem e até de ampliarem sua posição hierárquica. Os tempos e as ciências mudaram, mas o princípio de complicar para valorizar-se permanece em vigor.

Não devemos, é claro, ser ingênuos e acreditar que poderemos promover a plena igualdade através da língua. Democracia é, antes de mais nada, a arte de negociar, de aplicar o bom senso na solução de problemas. Nesse sentido, o bom profissional é aquele capaz de comunicar-se no melhor jargão com seus colegas, mas que consegue, sem grandes perdas, fazer-se entender pelo leigo. Os que ostensivamente abusam da linguagem técnica tendem a ser os menos capazes, os que mais precisam afirmar-se para não perder poder.”