MÍDIA & GOVERNO
Luciano Martins Costa (*)
Alguns personagens de nosso teatro político simplesmente não conseguem resistir à tentação de gerar conflitos em seu relacionamento com a imprensa. Alguns de nossos mais bem-sucedidos jornais também não resistem à oportunidade de produzir mal-entendidos, pela simples inabilidade para diferenciar o que seja uma fonte confiável de comezinhas manobras de manipulação. Na sexta-feira (16/1), o conflito entre a Folha de S.Paulo e o deputado petista Luiz Eduardo Greenhalgh foi apropriado e amplificado pelo ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, que já havia, dias antes, protagonizado outro qüiproquó ao afirmar, contra a opinião de seu colega da Fazenda, Antônio Palocci, não haver hipótese de o Banco Central ganhar autonomia em 2004. No caso do BC, Dirceu disse que não havia dito o que foi publicado. No caso recente, essa hipótese não existe.
Dirceu aproveitou uma sessão de desagravo ao deputado Luiz Eduardo Greenhalgh, organizada pelo PT juntamente com a Ordem dos Advogados do Brasil, para pedir ao Congresso providências no sentido de "conter a imprensa e o Ministério Público". A motivação do ministro era a acusação do preso Rodolfo Rodrigo dos Santos Oliveira, conhecido como Bozinho (acusado pelo assassinato do então prefeito de Santo André, Celso Daniel), tomada isoladamente e publicada pela Folha em 23 de dezembro passado, na qual o deputado ? e advogado militante na causa dos direitos humanos ? fora apontado como autor de torturas e maus-tratos durante um interrogatório.
A encrenca estava, até então, restrita ao deputado e ao jornal que havia publicado a declaração do suposto assassino. Todas as manifestações colhidas até então circulavam em torno da defesa de Greenhalgh, contra quem, de fato, tal acusação não pode ser tida como verossímil. Em vez de se ater à defesa de seu companheiro de partido, ou de se referir explicitamente à Folha de S.Paulo, como havia feito pouco antes em conversa particular com outros interlocutores, o ministro acende o pavio de perigosa polêmica ao usar uma entrevista coletiva para disparar genericamente, contra toda a imprensa nacional, acusações de prática de mau jornalismo e de atentados contra a cidadania.
"O outro lado"
O Estado de S.Paulo registrou já em sua primeira versão online, por meio da dupla Rita Tavares e Ana Paula Scinocca, que o ministro estava denunciando uma "persistente e permanente violação" de direitos dos cidadãos pelo Ministério Público e pela imprensa ("parte dela", amenizou o Estadão, por sua conta e interesse). O desejo do ministro de ver a imprensa sob controle não poderia ser mais explícito: "O Congresso Nacional precisa se debruçar sobre essa situação de extrema gravidade", conclamou José Dirceu, defendendo, segundo as repórteres, a atuação da OAB na questão.
Os advogados, juízes e membros do Ministério Público que vinham estudando formas de colocar "sob controle" o risco de perdas morais produzidas pelo trabalho jornalístico (veja remissão abaixo) com certeza voltarão a se assanhar, agora que têm o aval do nosso Richelieu caboclo. E um novo dilema se abaterá sobre nossos publishers, já precariamente equilibrados entre a conveniência de manter boas relações com o governo, por conta de um eventual socorro do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, e a necessidade de ofício (e de sobrevivência) que manda combater o bom combate da liberdade de imprensa.
A Folha também fez seu registro, mas foi mais lacônica. Ou preferiu não passar recibo de um eventual pecado de mau jornalismo. Disse, textualmente, no pé de uma reportagem cujo tema principal era a aliança do governo petista com o PMDB: "Dirceu e João Paulo (presidente da Câmara dos Deputados) estiveram em São Paulo para um ato de apoio ao deputado Luis Eduardo Greenhalgh (PT-SP), acusado por um preso de tê-lo torturado na prisão, fato publicado em uma reportagem da Folha. A reportagem divulgou denúncia feita em juízo por um preso envolvido no assassinato do prefeito de Celso Daniel sobre uma suposta agressão feita pelo deputado. Na ocasião, Greenhalgh classificou a acusação de ?absurda?". Tratou, portanto, de tornar implícito que havia, em sua edição de 23/12/03, ouvido "o outro lado". E aí é que mora o perigo: que credibilidade tem o "lado A" da reportagem? Que artimanhas conduziram até a Folha um depoimento sigiloso tomado em inquérito que corre sob segredo de Justiça?
Pendores autoritários
Haverá espaço mais que suficiente neste Observatório para debates sobre a qualidade de um jornalismo que se presta a manobras de advogado esperto (ou ? escolha o leitor ? de um jornalismo que vai às últimas conseqüências para bem informar seu público) e não se incomoda em trazer à luz questões que estão protegidas por necessidades legais. Também haverão de se estender considerações sobre a real grandeza do ato de "ouvir o outro lado", quando não bastam ao protagonista do "lado B" da reportagem uma vida inteira de dedicação a causas nobres e uma biografia sem jaça, que tirariam da referida acusação qualquer verossimilhança.
Mesmo porque, na ocasião em que reproduzia as alegações de Rodolfo Rodrigo dos Santos Oliveira, a Folha tratou os dois personagens com equanimidade. O deputado, que na ocasião dos fatos citados acompanhava, por designação do PT, as investigações sobre a morte do prefeito de Santo André, teve oportunidade, em 22 de dezembro passado, de dizer que não era um torturador. E a Folha lhe concedeu a íntegra da declaração. Por meio de sua assessoria, Greenhalgh disse: "Lutei contra a prática de tortura neste país desde a ditadura militar até hoje. Os depoimentos dos envolvidos no caso Celso Daniel eram presenciados por testemunhas, feitos pelos delegados e promotores e vistos por mim. Quer no Deic [Departamento de Investigações sobre o Crime Organizado], quer no DHPP, quer na Polícia Federal. Durante a investigação do caso, não presenciei nenhum tipo de agressão aos envolvidos nos depoimentos que acompanhei. Isso é um absurdo".
Uma questão que deve permear o debate: cabe aqui a equanimidade? Ou ela soa como o cumprimento de um protocolo que dissimula um jornalismo de categoria muito ordinária?
Temos aqui material suficiente para muita conversa, que se haverá de desenrolar com observadores mais qualificados. Apenas quero voltar ao nosso personagem lá do início, o ministro José Dirceu. Tido por muitos analistas como verdadeiro alter ego do presidente da República e sua mais completa tradução ideológica ? mais ou menos como Armand Jean du Plessis, o cardeal Richelieu, em relação ao rei Luís 13 ?, ele não havia expressado esses pendores para o autoritarismo em tempos anteriores à sua chegada ao poder.
Não por acaso, esta manifestação explícita do ministro-chefe da Casa Civil em defesa de maior controle da imprensa soa como uma tradução em melhor verbo de algumas observações canhestras feitas pelo presidente da República sobre o que considera bom ou ruim na mídia. Guardadas as proporções, evidentemente, não custa lembrar que Richelieu foi o criador do absolutismo real, na França do século 17.
(*) Jornalista
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Eles querem controlar a imprensa ? L.M.C.