ACM SOB SUSPEITA
“Nem Ambíguo, Nem Hipócrita”, copyright Carta Capital, 26/02/03
“Quando o acima assinado deixou a direção da Veja no começo de 1976, ao cabo de uma operação urdida pelo ministro da Justiça do governo Geisel, Armando Falcão, e diligentemente executada pelos donos da Editora Abril, recebeu de imediato dois telefonemas. Um do historiador e jurista Raymundo Faoro, solidário. Outro do governador da Bahia, Antonio Carlos Magalhães, a propor emprego.
– Venha para cá – disse o governador -, vou criar o meu jornal e desde já lhe ofereço a direção.
– O senhor sabe por que saí? -, perguntei.
– Sei sim, pretendem tirar a censura de Veja e colocar a revista a serviço do governo, e com você na direção é impossível.
– E então, o senhor quer à testa do seu jornal um inimigo do regime?
– Aqui quem manda sou eu – disse ele, sem alterar o tom manso, quase arrastado.
Aquilo me tocou fundo, coisa de mediterrâneo. Cuidei de arrumar as palavras certas para recusar, acho que ele entendeu e justificou. Nunca esqueci o episódio. Dois anos depois, ACM lançou seu jornal e exigiu um artigo meu. Escrevi, e foi publicado com destaque.
Mais anos se passaram. Agosto de 1984, nasce a Aliança Democrática e Roberto Gusmão, secretário de governo de André Franco Montoro, imagina um programa de televisão para confrontar tancredistas e malufistas. Irá ao ar pela Record, ainda nas mãos da família Machado de Carvalho. Convidam o acima assinado para o papel de âncora, o programa se chama Jogo de Carta e é fácil imaginar para qual brasa puxa a sardinha.
Um dos primeiros entrevistados é Antonio Carlos, que está com Tancredo contra Maluf. Os eventos se seguem com as alegrias e tristezas, os altos e baixos, os prós e os contras para sempre gravados na nossa memória. Morre Tancredo, assume José Sarney e o Jogo continua a ser jogado. Sem deixar de respeitar a verdade factual, exerce o espírito crítico na fiscalização do poder.
Não é que o governo Sarney represente a mudança com que os espíritos democráticos sonhavam no tempo da ditadura. O poder, pretensamente novo e substancialmente antigo, tem irrecorrível aversão à crítica. Avolumam-se sobre a Record as pressões governistas para que o tarô das noites de segunda seja aposentado.
O Ministério das Comunicações, comandado por Antonio Carlos, monta o cerco, a Record rende-se e o programa encerra-se sem pré-aviso em abril de 1987. Por razões opostas àquelas de 11 anos antes, eis mais um episódio para mim inesquecível.
Em ambos, no espaço de uma década, as razões do chefão Castelão, coronel, capo di tutti i capi. A mesma mão que hoje afaga, amanhã bate. Esmigalha, apunhala.
É justo e salutar que personagens com Antonio Carlos Magalhães fiquem obsoletas. Reconheça-se, no entanto, que são muito menos ambíguas e hipócritas do que tantas outras, alegadamente mais modernas. Chefões disfarçados, liberais de fancaria, intelectuais de terceira. Com suas cortes de lacaios e jagunços.”
“O homem-grampeador”, copyright O Estado de S. Paulo, 23/02/03
“Quando acordou, Carlos Antônio viu que tinha se transformado num grampeador. Sua perna direita estava preta e chata; a esquerda carregava uma fileira de grampos cor de cobre. Pesavam muito e Carlos Antônio não conseguiu se levantar. Não alcançava nem mesmo a campainha com que costumava chamar todas as manhãs as empregadas. Gritou. Ninguém ouviu, nem sequer o segurança que deveria estar no corredor. No quarto, apenas uma réstia de luz por baixo da porta dava sinal de vida. Procurou relaxar, mas, olhando para a sombra de suas pernas na parede, ficou aflito. O passado começou a invadir sua mente.
Desde pequeno, Carlos Antônio lia livros e artigos sobre os grandes estadistas da história. Logo começou a formar opinião sobre eles. Achava Marco Antônio um fraco e Richard Nixon um injustiçado. Não se lembrava exatamente dos títulos que tinha lido, embora assegurasse ter lido Maquiavel e todos os clássicos da ciência política. Mas se lembrou claramente da primeira vez em que grampeou alguém. Sua primeira namorada, Gabriela, tentou devolver uma traição que sofrera de Carlos Antônio e ele pediu ao pai que grampeasse a linha telefônica dela, para escutar sua conversa. ?Um beijo, tchau? foi o suficiente para que Jader, o flerte de Gabriela, nunca mais fosse visto naquela província.
Carlos Antônio tomou gosto. Quanto mais grampeava, mais forte se sentia.
Eram dossiês atrás de dossiês, interceptações atrás de interceptações. Ele não podia ver uma linha telefônica que logo a grampeava. Computadores, painéis eletrônicos, reuniões confidenciais – nada passava ao largo de seus aparelhinhos, de sua obsessão registradora. Quanto mais alto ia em sua carreira, mais grampomaníaco ficava. Sentia-se como um ?Big Brother? da capital; todos, amigos e inimigos, namoradas e ex-namoradas, parentes e jornalistas, eram fichados, vigiados e ameaçados, na mesma rapidez com que o nome de sua família se espalhava por praças e avenidas e pelas bocas dos cantores e sacerdotes de sua terra natal.
Grampear era poder. ?Se Mefistófeles tivesse nascido na era eletrônica?, pensava, ?Fausto não teria lhe dado tanto trabalho.? Muitos tentaram imitá-lo, poucos puderam igualá-lo. Carlos Antônio via seguidores seus não só na política, mas em todos os setores: cartolas, mecenas, líderes sindicais, poetas – os clones proliferavam, mas nenhum tão esperto quanto ele, ninguém com arquivo tão grande e implacável quanto o seu. Mesmo quando sofria derrota, Carlos Antônio sabia que, de grampo em grampo, o poder estava no papo de novo. De repente, tudo mudou. ?Só pode ser um pesadelo?, pensou ele, olhando de novo para suas pernas em forma de grampeador. ?Daqui a pouco acordo e tudo volta ao normal.? Tinha empresas, amantes, um povo inteiro para cuidar.
Beijou o santinho do cordão do pescoço e, num esforço extremo, ergueu o corpanzil e jogou as pernas para fora da cama. No movimento, uma perna caiu abruptamente sobre a outra e seu tornozelo direito ficou grampeado no esquerdo. Quando tentou ficar em pé, perdeu o equilíbrio e desabou como um arquivo de ferro no chão. O barulho foi ouvido nos locais mais distantes.
América A noção de geopolítica da maioria das pessoas é quase nula. Mas é comum ver até intelectuais querendo entender por que a Coréia do Norte não recebe a mesma ou maior pressão dos EUA. O motivo simples é que o Iraque seria para os americanos um calço na região que fomenta o extremismo islâmico. Na retórica de Bush, ?um Iraque livre é fonte de esperança para o Oriente Médio?. Ou seja, a coisa vai apenas começar no Iraque. Outra ingenuidade é supor que só os EUA tenham interesse no petróleo da região. Como se sabe, os dois maiores parceiros econômicos do Iraque desde os anos 90 são França e Rússia, que não estão contra a guerra apenas porque são boazinhas. Daí a importância de o debate deixar de ser um diálogo de surdos entre o belicismo e a inação. Chega de polarizar.
Rodapé O livro Estratégias e Máscaras de um Fingidor – A Crônica de Machado de Assis, de Dilson F. Cruz Jr. (Nankin Editorial), é um exemplo da tendência que mais vem crescendo nos estudos machadianos. Nesses trabalhos, nutridos de Bakhtin, Benjamin e semiótica, Machado é uma espécie de precursor do pós-modernismo, de uma literatura feita de jogos, de simulações e citações.
Dilson Cruz defende a tese de que as crônicas de Machado, com suas ironias e paródias e suas misturas de gêneros, rompem a fronteira entre ficção e realidade; e diz, à maneira de Roberto Schwarz, que essas ambigüidades são derivadas da própria sociedade brasileira, em que o discurso da elite mascara a situação real, em que o aparente progresso serve apenas para encobrir o atraso social.
Bem, Machado certamente desmonta o discurso oficial, brincando com vários níveis de voz, e certamente critica o ensimesmamento de uma elite que importa idéias e ignora seu lugar. Mas esse tipo de análise termina limitada por dois motivos. Primeiro, o cronista usa recursos como a ironia e a alegoria, mas sempre sabemos qual seu ponto de vista diante do desenho de seu tempo e espaço. Segundo, o ficcionista não está interessado apenas em criticar uma elite alienada, mas também em discutir questões da natureza humana para além da classe social.
Por exemplo, reli agora o Memorial de Aires, lançado em volume de banca ao lado de Esaú e Jacó – e ambos realmente têm tudo a ver, ao tratar da transição republicana. Muitos procuram identificar Machado a Aires, como se Machado nunca tivesse se metido em controvérsias, ou a Aguiar, que vive numa estabilidade conjugal que o faz ignorar valores da nova geração. Mas Machado tem elementos de um e outro e distinções também. O que importa é o homem machadiano, sempre pronto a se iludir ou com um projeto salvacionista (o emplastro de Brás Cubas, o humanitismo de Quincas) ou com sua própria inclinação psicológica (Bentinho fugindo de si mesmo enquanto procura a verdade sobre Capitu, Aires fingindo ser imune aos sentimentos). Um quinhão universal, num formato brasileiro: a hipocrisia do indivíduo consigo próprio.
Por que não me ufano O primeiro, maior e possivelmente incorrigível erro que o governo Lula cometeu foi o de chegar ao poder sem saber como e por que deveriam ser as reformas. Elas foram muito citadas na campanha (a previdenciária, a tributária, a administrativa e a trabalhista, mas há também a política, a agrária, a judiciária…) e devidamente associadas à necessidade de escapar do círculo vicioso entre juros, câmbio e inflação. E não adianta Palocci dizer que o aumento dos juros e o aperto do crédito não vão desaquecer a economia. Vão, como já vêm. Segurar a inflação é preciso, sem prejuízo do combate estrutural à sua origem.
Mas só haverá crescimento da renda e do emprego quando as forças de produção – empregadores e trabalhadores – pararem de ser escorchadas por um monstro de ineficiência, corporativismo e corrupção chamado máquina pública, em todas as suas esferas. De pouco serve fechar torneiras no alto de um tanque sem fundo. É preciso enfrentar um a um os interesses encastelados nas repartições e estatais – os privilégios regionais e setoriais – e implementar critérios e sanções severas para a gestão pública. E, aos que soltam latim em defesa de ?direitos adquiridos?, lembre-se que os donos de escravos também alegavam o direito de propriedade para adiar a abolição.
Governo que se diz de esquerda e não tem ?punch? reformista não vai longe.
Lula e sua equipe defendem a cada dia uma reforma distinta. Resultado: já estão dando espaço demais para as lorotas autoconvenientes. E isso porque assumiram Brasília sem ter objetivos claros e esmiuçados, tendo sido eleitos depois de uma mudança que nasceu no discurso e nele corre o risco de morrer.
Aforismos sem juízo É curioso que, na era dos descartáveis, o que as pessoas menos sabem fazer seja descartar.”
“As interceptações telefônicas”, copyright Folha de S. Paulo, 20/02/03
“Recentes episódios ocorridos no Estado da Bahia, onde no curso de investigação criminal foi obtida autorização judicial para interceptar a comunicação telefônica de diversas pessoas alheias ao objeto do inquérito, entre elas parlamentares, levou o senhor ministro da Justiça a instituir comissão para propor alterações na Lei n? 9.296/96, que regulamenta a matéria.
A utilização de tal meio de investigação, de maneira séria, tem possibilitado alguns sucessos na repressão ao crime organizado e sem dúvida é uma ferramenta importante de trabalho policial.
Trata-se, pois, de instrumento que tem de ser preservado, em benefício da segurança coletiva.
No entanto, são necessárias algumas cautelas a fim de que as interceptações não sejam utilizadas como instrumento de extorsão ou chantagem política e pessoal.
O Estado democrático de direito exige que haja estrito controle da violação de garantia fundamental como o sigilo das comunicações telefônicas e de transmissão de dados.
É necessário, portanto, que a lei exija que a autoridade que requer a medida a fundamente de maneira sólida e pelo menos indique em nome de quem consta a linha a ser interceptada.
A lei deve impor a prévia manifestação do Ministério Público antes da apreciação do pedido pelo juiz e não simplesmente sua comunicação a posteriori, o que tem levado à sonegação de tais informações ao titular da ação penal e enfraquecido a fiscalização de sua regularidade.
Há de se criminalizar, de maneira autônoma, a conduta de se deferir a interceptação fora dos casos estabelecidos em lei, bem como a de fazer afirmação falsa a fim de iludir o magistrado que deve decidir sobre a autorização.
Outra questão deve ser enfrentada e discutida com os meios de comunicação. Quando é realizada interceptação telefônica criminosa, seja mediante autorização obtida indevidamente, seja aquela feita de modo clandestino, muitas vezes o que se quer é desmoralizar a vítima pela sua difusão ou obter dela vantagem indevida, fazendo a ameaça de divulgação de seu conteúdo.
Ora, a publicação do resultado da diligência criminosa representa a vitória de quem atua de maneira ilegal. É preciso dizer que admitir a divulgação do resultado da ilegalidade, mesmo que as informações sejam relevantes, significa aceitar que os fins justificam os meios.
Tal conclusão levaria a aceitar como válida a confissão de fato verdadeiro, obtida mediante tortura, o que é inadmissível.
O Estado democrático pode e deve ser eficaz no enfrentamento da criminalidade, inclusive utilizando os meios tecnológicos modernos para tal fim. Não pode, no entanto, tolerar métodos e condutas arbitrárias, típicas do banditismo e do autoritarismo, como forma de agir. (LUIZ ANTONIO GUIMARÃES MARREY, 47, é procurador-geral de Justiça do Estado de São Paulo. Foi presidente do Conselho Nacional de Procuradores Gerais de Justiça.)”