Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Mino Carta

ANDREA CARTA, 1959-2003

“Talento e destino de um grande editor”, copyright Carta Capital, 24/09/03

“Recordo o dia em que Andrea nasceu, dia de sol oblíquo do quase inverno romano, faltava menos de uma semana para o Natal. Andrea Carta, meu sobrinho, filho de Luis, meu único irmão. Avós paternos e este tio chamaram logo à maternidade. Estávamos muito emocionados, era o primeiro Carta da nova geração.

Luis, casado com Haydée em abril de 1957, munido de autorização paterna porque ainda não completara os 21, mudara-se de São Paulo para Roma, onde iria secretariar a revista Settimana Incom. Três meses depois do nascimento de Andrea, voltou em definitivo para o Brasil, e aqui logo assumiria a direção editorial da Abril, em março de 1959.

E recordo o dia da despedida no aeroporto de Roma, Luis, Haydée e Andrea embarcavam para um vôo de mais de 30 horas. Era um fim de tarde muito frio e Andrea dormia debaixo de cobertores de padronagem escocesa, no aconchego da sacola que o pai carregava com desvelo e transparente satisfação. À beira do orgulho.

No bairro onde Luis plantou sua primeira casa acabaram por morar vários amigos, a começar por Fabrizio Fasano, espécie de irmão de Luis e meu, juntos desde sempre até parece. Depois aportou Domingo Alzugaray e eu mesmo morei por lá, algum tempo. A nova geração cresceu e a amizade entre os filhos de uns e outros foi herança genética.

Houvera outro Andrea na família, o pai da minha avó materna, Eugenia, muito amada. Polaco, Andrei Baltretski, na Itália virou Andrea, costumavam descrevê-lo como gigante bonachão. O herdeiro do nome admirava, porém, o bisavô Luigi, marido de Eugenia, que as descrições pretendiam mestre da pena e do florete.

Luigi Becherucci, primeiro jornalista da família, pelo que sei, desafiava para duelos os desafetos e exibia altivamente uma cicatriz que ia da ponta do pomo-de-Adão ao lóbulo da orelha esquerda. Bom profissional, diretor de jornais, perseguido pelo fascismo, foi responsável pela transformação de um bacharel de Direito em jornalista. Meu pai, Giannino.

As façanhas do bisavô empolgavam Andrea, que sonhou ganhar algum dia uma das suas espadas, presente prometido por minha mãe e nunca entregue: supunha estarem em certo baú, e não estavam. Sobrou outra herança, o jornalismo, ao qual Andrea chega mais ou menos por acaso, embora não lhe faltassem raízes. Como alguém que se deixa carregar pelo destino, igual a mim.

O jornalismo não estava nos planos de Andrea, mas lá pelas tantas ele entendeu não haver alternativas e mergulhou na tarefa. Esta parte da história começa nos primeiros anos da década de 70, quando Ruggero Fasano, pai de Fabrizio, sugere ao filho e aos amigos Luis Carta e Domingo Alzugaray uma empreitada em comum para serem donos de seus narizes. Surge a idéia da Editora Três, concretizada pouco tempo depois.

À sombra da Três nasceram coleções de fascículos e revistas de diversos calibres e alvos, entre elas algumas marcaram época, como a pioneira Status. Enfim veio a Vogue, com a qual meu irmão se identificava profundamente.

Fabrizio não demorou a sair da sociedade, levado para outros campos por sua vocação empresarial. Sem conflito, Luis e Domingo separaram-se em meados de 1976. Era um desenlace inescapável, os planos editoriais de um não batiam com os do outro. Lembro do Domingo no dia em que Luis esvaziou as gavetas. Lágrimas nos olhos. Ambos sofreram, no entanto, não havia remédio. Luis fundou a Carta Editorial. Eu fiquei com Domingo, na IstoÉ.

Vogue era um ambiente propício ao bom gosto inato de Andrea, a busca do prazer estético praticada sem maior esforço. E, de saída, ele não se supunha credenciado a aspirações que transcendessem o trabalho artístico. As circunstâncias o forçaram a tomar outras rotas e ele provou ser ótimo navegante.

Seduzido pelo convite da Condé Nast para organizar o lançamento e dirigir a Vogue Espanã, Luis partiu para Madri e entregou o leme ao filho, há 16 anos. Quem se sentia habilitado a se sair honrosamente apenas como diretor de arte revelou-se editor na acepção completa. Ao bom gosto juntavam-se o faro jornalístico e o tino empresarial.

Por 16 anos, Andrea foi a alma e o motor da Carta Editorial, debaixo do seu comando a editora conquistou solidez e penetração nunca antes atingidas. E foi o berço desta CartaCapital, que Andrea quis muito antes do que eu.

E agora me pergunto se ele teve plena consciência das suas capacidades. Receio que não. Digo, a certeza da versatilidade do seu talento. Este não é o elogio de praxe, quando alguém se vai para sempre. É o que penso, sem tirar nem pôr, assim como percebo em Andrea a figura dostoievskiana, atormentada dia e noite por dúvidas atrozes.

Certa é a fatalidade que conecta tragicamente quatro gerações da minha família e expele abruptamente do enredo personagens que ainda não esgotaram seu papel. Até muito antes que o esgotem. Luigi, o jornalista espadachim, falecido aos 56 anos. Giannino, aos 59. Luis, aos 57. Faltam pouco mais de três meses para o aniversário daquele dia romano de sol oblíquo, 19 de dezembro de 1958.”

“Um acidente sem nexo”, copyright Folha de S. Paulo, 17/09/03

“Temos todos mais ou menos a mesma idade, somos filhos da italianada proeminente de São Paulo e nos conhecemos praticamente desde que nascemos. Nossos pais sempre foram bons amigos e nós convivemos nas festas de aniversário da infância e na casa de um e de outro, desde sempre.

No caso de Andrea Carta e Rogério Fasano, os pais, além de amigos, tornaram-se também sócios. Originalmente, os ?três? que deram nome à Editora Três, que publica a revista ?IstoÉ?, eram Luis Carta, pai de Andrea, o pai de Rogério, Fabrizio, e Domingo Alzugaray -que hoje comanda a empresa.

Melhores amigos desde a adolescência, Andrea e Rogério foram também colegas de Dante Alighieri, o colégio que, em outros tempos, educava nove entre dez filhos da comunidade italiana na cidade.

Em comum, eles têm (prefiro usar o verbo no presente) ainda uma inteligência atilada, um senso de humor selvagem e um bom gosto fora do habitual para os padrões tapuias. Sem falar no charme absurdo que homens com pai italiano e mãe brazuca, como é o caso dos dois, costumam verter, especialmente na direção do sexo oposto.

Ambos estavam passando por ótimos momentos em suas vidas profissionais. Rogério, com o sucesso de seus restaurantes, que são parâmetro de excelência, e com a recente inauguração de seu hotel. Em duas semanas de funcionamento, o Hotel Fasano já é considerado uma das jóias da hotelaria nacional. E Andrea, com os bons resultados obtidos pela ?Vogue?, que cresce em circulação e prestígio, a despeito da crise sem precedentes que atinge o mercado editorial.

Mas, embora tenha trabalhado por muitos anos para a Carta Editorial e acompanhado desde os primórdios a trajetória dos empreendimentos de Rogério, não é da vida profissional de Dréa e Gero que escolho lembrar neste momento. Prefiro recordar a imagem de todos nós juntos no restaurante Gero, na final da Copa do Mundo de 94, falando alto, praguejando e, naturalmente, torcendo contra a Itália. Vencemos aquela Copa e ainda somos imbatíveis. O acidente sem nexo que vitimou Andrea não pode deixar dúvidas no ar. Todos nós fizemos jus ao legado que recebemos de nossos pais.”

“Um homem de estilo”, copyright IstoÉ, 23/09/03

“O jornalista Andrea Carta era um homem acostumado a contornar situações delicadas. Diretor da Carta Editorial, que publica a Vogue brasileira, em certa ocasião ele recebia um visitante em seu escritório, em São Paulo, quando sons estridentes quebraram a sobriedade do ambiente. Do outro lado da porta, uma modelo reclamava de alguma coisa usando expressões vulgares. Carta levantou-se da cadeira, ajeitou a malha de cashmere cinza que usava sobre os ombros e abriu a porta. Em voz baixa, mas firme, perguntou à modelo qual o número dos sapatos que ela calçava. Diante da resposta, disse que ela deveria usar um número maior. A garota concordou, ressalvando que sapatos maiores prejudicariam o visual.

– Se tirar os sapatos apertados, você vai se acalmar. Vai virar uma condessa descalça – afirmou o jornalista.

Embora não tenha demonstrado conhecer o filme A condessa descalça, estrelado por Ava Gardner, a modelo mudou de comportamento. Carta voltou à sua sala. Aparentemente corriqueiro, o episódio reflete um estilo de vida. Um estilo quebrado de tempos em tempos por rompantes do próprio Carta, que cultivava com inegável orgulho a origem italiana. Mas ele jamais foi conhecido por apresentar uma oscilação tão radical quanto a que precedeu sua morte, na madrugada da terça-feira 16, após queda do apartamento de um amigo de infância, o empresário Rogério Fasano.

As famílias de Carta e Fasano são amigas há décadas. Nas últimas semanas, Fasano estava envolvido em especial com seu recém-inaugurado hotel. Instalado no bairro dos Jardins, é um dos mais refinados do País. Na noite da segunda-feira, durante mais de duas horas os dois amigos analisaram detalhes de uma publicação que preparavam sobre o Hotel Fasano. Junto com o jornalista Nirlando Beirão e o diretor de arte Erh Ray, eles ficaram no bar do lobby do hotel. Andrea, que tomava prosecco, parecia estar ultrapassando seus limites. Eles já haviam examinado cerca de 140 fotografias quando Fasano avisou que precisava acompanhar o movimento do restaurante.

O grupo se transferiu para o bar do restaurante por volta das 23h30. Carta ficou muito satisfeito quando a atriz Carolina Dieckmann se levantou de uma mesa para cumprimentá-lo. Os dois não se conheciam, mas Carolina está para sair nas páginas da Vogue. Passava da meia-noite quando Beirão e Ray foram embora. Fasano relata que pediu ao barman para não servir mais bebida a Carta. E, para evitar tumultos no hotel, foi para seu apartamento, que fica nas imediações. Pediu à portaria que não deixasse ninguém subir. Mudou de idéia quando o porteiro avisou que Carta se encontrava no hall.

?Ele estava transtornado. Tentei ligar para a esposa, para a irmã?, relata Fasano. Embora não conseguisse acalmar o amigo, o empresário não imaginou que uma tragédia estava para acontecer quando Carta alcançou o parapeito do apartamento do quinto andar. ?Tenho certeza de que ele não queria fazer isso?, lamenta, assegurando que, após perder o equilíbrio, o amigo ainda tentou segurar-se na caixa do ar-condicionado. O empresário também conta que tentou, em vão, resgatar Carta com a manta que cobria um sofá da sala.

No comando da Carta Editorial desde 1986, Carta esteve envolvido com o jornalismo desde sempre. Em 1945, seu avô, Giannino Carta, deixou o jornal italiano Il Secolo Decimononno para dirigir uma publicação em São Paulo. O empreendimento não vingou, mas ele se encantou pelo Brasil. Marcou época no jornal O Estado de S.Paulo. Os filhos de Giannino, Luís e Mino, seguiram pela mesma trilha. Hoje, Mino dirige a revista Carta Capital. Junto com Domingo Alzugaray e Fabrizio Fasano, Luís foi um dos fundadores da Editora Três, que publica ISTOÉ.

Pai de Rogério, Fabrizio tem como negócio principal a gastronomia e hotelaria. Pai de Andrea, Luís (1936-1994) implantou a Vogue no Brasil, ampliada e inovada por Carta. Casado e pai de dois adolescentes, o jornalista tinha ainda a guarda de sua irmã caçula, que é pré-adolescente. Dois dias depois da tragédia, o escritor Ignácio de Loyola Brandão, diretor editorial de Vogue, terminava uma nova edição da revista. ?É a primeira vez em quase 14 anos que escrevo ao leitor sem o Andrea por perto?, disse. ?Ele fez a deselegância de partir.? No novo número, Carta estava especialmente satisfeito com um ensaio fotográfico da atriz Sônia Braga.”