OS SERTÕES, 100 ANOS
"Ele foi o primeiro a ver os sertões de avião", copyright O Estado de S. Paulo, 1/12/02
"Com seu grande livro, Euclides da Cunha criou dois problemas que se têm mostrado permanentes no País. Em primeiro lugar está o problema dos sertões, social e político. Depois, o próprio livro, o texto Os Sertões, que desafia os teóricos da literatura e outros, sempre estimulados pela impossibilidade de definição clara e simples da obra. Porque recursos da ficção, ou seja, da poesia, sustentam as páginas onde se misturam relatórios, narrativas e ensaios. Um livro que põe em cena o poder sempre capaz de reagir com brutalidade extrema diante da ameaça de um fenômeno desestabilizador e incompreensível. E, ao mesmo tempo, não se define como gênero literário, uma expressão de conflitos abertos à discussão atual e atualizante.
O termo atualidade foi escolhido por Oswald de Andrade há quase 60 anos, para o artigo que publicou no Diário de São Paulo (20 de agosto de 1943), reeditado pela revista Sala Preta (n.? 2), do Departamento de Artes Cênicas ECA-USP. O livro tinha saído apenas 40 anos antes, mas na perspectiva do tempo da vida humana isso pode parecer muito tempo, até mesmo garantia de eternidade para uma obra literária. Em seu Atualidade d?Os Sertões, Oswald critica uma tendência para a estatística ditada pela sociologia norte-americana, na qual o número se torna simulacro da informação segura e eliminando qualquer possibilidade de informação:
É, na opinião de Oswald, uma espécie de ?obrigação, originada do surgimento da América na cultura, de ter de tomar nota, fazer estatística, levantar mapas das coisas mais inúteis da vida da terra. Saber quantos sujeitos vestidos de branco subiram no bonde de Santana, entre as duas e quatro horas da tarde. Fosse ainda do Bom Retiro! Verificar quantas mulheres gordas foram à feira do Arouche. Para quê??.
Para o autor de Os Condenados e A Revolução Melancólica, livros horrorosos, devidamente compensados por Memórias Sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte-Grande, Euclides e Os Sertões são um antídoto para essa mania mal-intencionada. O repórter-engenheiro, escreveu, ?foi quem pela primeira vez antes das descobertas de Santos Dumont viu a terra brasileira de avião.
Aquele intróito d?Os Sertões é uma mágica fotometria, assentada sobre os seus vastos recursos de conhecimento técnico. Que equilíbrio, que elegância, que modéstia culta não se exalam das primeiras linhas dessa obra mestra!?
Seu artigo, na verdade, é uma defesa entusiasmada da literatura. Os grandes autores ?constituem, sem dúvida, o reflexo de um corte social e econômico, mas sem a força expressional de sua personalidade, outros podiam ser os caminhos abertos para o futuro. Sem Whitman talvez a América do Norte fracassasse por muito tempo na mão adunca de seus pioneiros, longe de encontrar a sua missão de democracia e humanidade. A presença de um grande escritor impossibilita a inflação dos valores medíocres e põe sempre no julgamento crítico um ponto alto de referência e de destino?.
E alerta incautos, trêfegos e doidivanas: ?No pórtico da nossa moderna literatura permanecem duas sentinelas vigilantes: Machado de Assis e Euclides da Cunha.?"
"?Ninguém narrou o conflito melhor que Euclides?", copyright O Estado de S. Paulo, 1/12/02
"Autora de uma edição crítica de Os Sertões, publicada originalmente nos anos 1980, Walnice Nogueira Galvão é um dos nomes mais importantes dos estudos sobre a obra de Euclides da Cunha. Entre seus trabalhos, está No Calor da Hora (Ática), ensaio sobre a cobertura de vários jornais da Guerra de Canudos. Walnice também organizou, com Oswaldo Galotti, a Correspondência de Euclides da Cunha (Edusp). Mais recentemente, assina, com Fernando da Rocha Peres, edição fac-similar de trechos do Breviário de Antonio Conselheiro (EdUFBa). Nesta entrevista, ela fala sobre a influência de Victor Hugo sobre Euclides, as relações entre Os Sertões e a Bíblia e os motivos que levaram ao imediato reconhecimento das qualidades do livro.
Estado – Os Sertões foi publicado cinco anos após a guerra. Muitos já haviam escrito sobre o conflito, mas ninguém obteve grande repercussão. Por quê?
Walnice Nogueira Galvão – Porque é boa literatura. É bem escrito e os outros não. Só se fala ainda hoje da Guerra de Canudos por causa de Os Sertões.
Quase não se fala do Contestado, por exemplo. É como a Guerra de Tróia, que sobreviveu graças à Ilíada e à Odisséia.
Estado – A primeira crítica, de José Veríssimo, extremamente elogiosa, é publicada no dia 3 de dezembro de 1902. O que permitiu à época um reconhecimento tão imediato?
Walnice – Estilisticamente, o livro de Euclides estava muito adaptado à época. Combinava elementos naturalistas e parnasianos com traços românticos – como a identificação do escritor como defensor dos oprimidos. Além disso, a retórica respondia a um gosto de seu tempo. Também acredito que Euclides cumpre uma função ideológica importante. A opinião pública que fora atiçada contra os canudenses voltara atrás. Percebera o grande erro e começara a chamar a guerra de fratricida, etc. Quem cumpriu a função de fazer um grande mea-culpa da guerra foi Os Sertões, permitindo uma catarse para essa opinião pública.
Estado – Nessa crítica, Veríssimo se queixa da linguagem de Euclides.
Haveria aí o diagnóstico da presença de um romantismo já ultrapassado, ainda que indiretamente?
Walnice – Na verdade, Veríssimo se queixa do excesso de termos técnicos e científicos, que é a parte moderna de Os Sertões – embora, hoje, ela pareça antiquada. Mas o romantismo tem um papel fundamental em Os Sertões. Na minha opinião, são os românticos, e não os modernos, que descobrem a ruptura com o passado e abrem as portas do inconsciente, das mazelas da alma, dos delírios. ?Inventam? a figura do escritor, do vate, um ser inspirado, em contato com as forças telúricas, atávicas, até sobrenaturais, fora da sociedade burguesa e industrial. Esse vate se preocupa com o seu papel histórico de indivíduo afastado deste mundo, mas em comunhão com a massa.
Isso aparece claramente em Euclides, sem as forças sobrenaturais, claro, porque ele era ateu e positivista. Victor Hugo é um modelo de Euclides, um modelo seguido por ele e por Castro Alves, entre outros, na literatura brasileira.
Estado – Uma das fontes de composição de Os Sertões, na sua opinião, é a Bíblia.
Walnice – Assim como a Bíblia começa no Gênesis e termina no Apocalipse, Os Sertões começa pela origem da Terra e acaba descrevendo o aniquilamento, a obliteração. Mas essa relação aparece em vários momentos. À certa altura, o livro passa a encarar Canudos como os canudenses o faziam. Euclides realiza, inclusive, uma inversão demoníaca das imagens do Apocalipse. Nova Jerusalém, a cidade descrita por São João, é a cidade do Cordeiro, representação de Jesus, e é cravejada de pedras preciosas. Também é organizada, com ruas quadriculadas, e amurada, atravessada pelo Rio da Vida, em cuja margem cresce a Árvore da Vida. Já Canudos, a Nova Jerusalém de Os Sertões, é feita de casas de pau-a-pique, de terra – o não-belo, portanto -, cortada por um rio seco, um rio da morte, o Vaza-Barris, em que cresce uma vegetação de caatinga, atrofiada. Nela, o carneiro se transforma num bode, representação do Diabo. Nesse momento, Euclides adere à visão dos vencidos, que vêem seu Belo Monte, seu Paraíso, se transformar num inferno, devido aos ataques do Exército.
Estado – É essa adesão que garante a boa literatura de Os Sertões? A sensação de que ele aderiu à visão dos vencidos não depende da simpatia dos leitores pelos canudenses?
Walnice – Quando você leu Ilíada, teve simpatia não pelos gregos, mas pelos troianos. Não foi você que quis isso, foi Homero. A idéia de que Homero cantou o vencido valoroso é bastante conhecida. Euclides também se mostra capaz de deplorar o massacre e o martírio dos canudenses. Também garante a boa literatura de Os Sertões o fato de Euclides ter percebido que o episódio de Canudos era parte do processo de modernização capitalista do País e do mundo, um processo que ainda não acabou. Claro que ele não dá esse nome ao processo, mas o identifica: em alguns momentos o chama de embate racial, em outros, de progresso ou de avanço inelutável.
Estado – Desde os anos 1950, com os estudos de José Calasans, a história de Canudos e da guerra passou a ser pesquisada de forma relativamente independente de Os Sertões. Do ponto de vista histórico, o livro de Euclides estaria, hoje, superado?
Walnice – Pelo menos até agora, apesar dos equívocos científicos, antinomias e paradoxos, ninguém narrou melhor esse conflito. Uma nova visão da guerra, ao mesmo tempo abrangente, analítica e sintética, teria de partir de um novo quadro teórico, diferente do utilizado por Euclides. Há muitos bons trabalhos sobre a guerra, que permitiram vê-la a partir de novos ângulos, mas não a ponto de negar ou mesmo de superar Os Sertões.
Estado – Mas Canudos já se ?libertou? da visão de Euclides, assim como o Conselheiro, a partir da publicação de Antônio Conselheiro e Canudos (1974), de Ataliba Nogueira, teria se libertado da imagem de líder sebastianista?
Walnice – Na verdade, Euclides apresenta ao leitor dois Conselheiros. Numa delas, ele é o ?messias de feira?, ?truão?, que balbucia frases do Apocalipse. Na outra, o ?grande homem pelo avesso? – uma figura de linguagem que faz a transição de um modelo para o outro – é um ?heresiarca?, algo negativo, mas sério, que tem a dignidade de um apóstolo, condutor de homens, e compara Canudos ao cristianismo primitivo. Atualmente, sim, Canudos tem uma imagem um tanto livre da de Euclides, e, como Conselheiro, tem sido recuperada como algo praticamente só positivo, talvez com certo exagero. Ao contrário do que às vezes se quer fazer crer, Canudos não era uma república socialista, mas, sim, assistencialista: o que havia era uma redistribui&ccccedil;ão, por meio da caridade, do excedente, mas era uma sociedade de proprietários e não-proprietários, de ricos e pobres."
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"?É o emblema de uma questão não resolvida?", copyright O Estado de S. Paulo, 1/12/02
"Valentim Facioli, professor aposentado de literatura brasileira da USP, analisou, em seu doutorado, o trabalho de Euclides. Embora nunca tenha publicado o trabalho (intitulado Euclides da Cunha: A Gênese da Forma), tornou-se um nome bastante presente nos debates e discussões em torno de Euclides (uma síntese do estudo foi publicada em O Sertão e os Sertões, organizado por Beth Brait).
Para Valentim, Os Sertões mostra muito das contradições do País, mas não pode ser vista como uma obra ?vingadora?, capaz de pôr a limpo a violência cometida contra os sertanejos. ?Afinal, suas premissas principais constituem alienações científicas?, escreveu ele num artigo recente.
Ainda neste fim de ano, ele lança, em parceria com o historiador José Leonardo do Nascimento, Os Sertões – Juízos Críticos (Nankin/Editora da Unesp), um livro que reúne textos publicados em 1902 e 1903 sobre a obra mais conhecida de Euclides.
Estado – Euclides escreveu Os Sertões buscando ?o consórcio da ciência e da arte?. A ciência de Euclides foi superada. Os problemas científicos, como o determinismo e o racismo, são compensados pela literatura?
Valentim Facioli – Talvez; certamente o ?pathos? apocalíptico da narrativa da luta continua presente na escritura do livro e isso é uma sobrevivência importante, de impacto e comoção dos leitores. Ademais a presença forte da massa pobre sertaneja, lutando heroicamente contra um Exército muito poderoso, resulta numa antinomia que ainda escandaliza: os vitoriosos (o Exército republicano) sofreram derrota e os derrotados ao fim e ao cabo são hoje vistos como vitoriosos.
Estado – A retórica tortuosa tem um papel especial na concepção de Os Sertões?
Facioli – Eu estou convencido de que a retórica tortuosa opera, em inúmeras passagens, leitura e interpretação delirantes, que parecem compensar a carência de pesquisa e de ciência. Assim, a retórica tortuosa diz inclusive por que as contradições brasileiras não são verdadeiramente detectadas por Euclides. E as contradições da leitura e interpretação do próprio escritor são, em parte, escamoteadas, especialmente as teorias raciais, resultando num livro que pode ser adjetivado com os mesmos termos que ele aplicou a Castro Alves, em 1907: monstruoso, paradoxal, quimérico. E isso parece ter muito a ver com o próprio país.
Estado – Por que, na sua opinião, o livro continua a ser tão importante para a cultura brasileira?
Facioli – Essa importância precisa ser posta no seu lugar. O fato é que esse livro está fora dos saberes canônicos nem nas ciências exatas nem nas humanas e nem mesmo na literatura. A importância que lhe é atribuída, a meu ver, decorre da purgação da culpa pelo bárbaro e inútil massacre dos sertanejos, a qual culpa se articula com a culpa presente pelos cerca de 50 milhões de miseráveis que estão inutilmente no País e sem solução. Os Sertões, com seu tom apocalíptico e ruinoso, parece permanecer como emblema dessa questão não resolvida.
Estado – O episódio de Canudos é hoje um marco da história do País. Na sua opinião, o livro cumpriu seu desejo de realizar uma denúncia do massacre?
Facioli – Muitos outros conflitos ocorridos no País, desde pelo menos o século 18, não contaram com uma narrativa, escrita quase no calor da hora, que lhes desse notoriedade como ocorreu com Canudos e Os Sertões. Por isso, a força do livro parece relacionar-se com suas circunstâncias e porque ele atualiza o problema do pobre rural do País, inclusive com o tom de denúncia e sua força irônica e às vezes satírica, além de momentos trágicos e heróicos que são fortes. Parece certo que o massacre de Canudos teria sido melhor esquecido, como a Guerra dos Farrapos, entre muitos exemplos, se Euclides não tivesse escrito seu livro. Mas como o livro existe, ele tende a ser oficializado e mesmo domesticado para purgação de culpa. Foi um erro histórico, isto é, do passado, mas que não mais existiria hoje. Será que basta o ?mea-culpa??
Estado – O professor da Universidade de Brasília Flávio Kothe, num artigo publicado no livro O Clarim e a Oração, chega a sugerir que a obra deve ser olvidada, e não celebrada. O que acha dessa posição?
Facioli – Não posso concordar, mesmo porque o livro de Euclides, ?monstruoso, quimérico, paradoxal?, tem talvez um mimetismo complexo, mas evidente com as dores e sofrimentos do povo brasileiro vitimado pelo processo de nossa modernização conservadora. Seria excessivo esquecê-lo, já que ele é também um testemunho vivo das nossas misérias, bem nos termos de Walter Benjamin: é um documento de cultura como autêntico documento da barbárie. Se for assim, melhor não santificá-lo, mas também não esquecê-lo."