Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Moacir Japiassu

JORNAL DA IMPRENÇA

“Abracadabrantes teorias”, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 4/09/03

“Nosso agora considerado Manoel Almeida, publicitário em Patos de Minas, ficou entusiasmadíssimo com o nível intelectual de alguns comentaristas do Comunique-se. Todavia, está claro que muito ajudou a encastoar o astral do rapaz o seguinte texto do Estadão a respeito do ?menor conto do mundo?, O Dinossauro, do recentemente falecido escritor hondurenho-guatemalteco Augusto Monterroso:

?Esse fenômeno de brevidade e concisão correu o mundo em múltiplas traduções, despertando abracadabrantes teorias sobre as suas mais recônditas intenções alegóricas ou metafóricas. (…) O que vale dizer que foi ele quem escreveu o único relato ficcional que qualquer ser humano é capaz de saber de cor e salteado, do começo ao fim. Cabe inteiro numa linha e tem apenas sete palavras, no original e em português. Ei-lo: ?Quando ele acordou, o dinossauro ainda estava lá.? (Na tradução para o inglês, é ainda mais curto: ?Upon waking, the dinosaur was still there.? Seis palavras.)?.

Manoel pergunta: ?Isso é literatura??. Janistraquis foi pesquisar e chegou à conclusão de que O Dinossauro é o mais espetacular exemplo da literatura ?abracadabrante? em todos os tempos, para repetirmos o esquisito vocábulo criado pelo redator do Estadão – este, sem dúvida um poeta da estirpe do nosso conhecido Zé Limeira.

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Inventô do telefone

Pois Geraldo Ribeiro Neves, que garante ser fiel leitor desta coluna, pergunta justamente por uma estrofe do genial Zé Limeira, na qual ?Getúlio Vargas aparece como inventor do telefone?. Não é Getúlio, ó considerado Neves; a estrofe em que o ?Poeta do Absurdo? glosa o mote Diz o Novo Testamento é a seguinte, segundo informa Orlando Tejo:

Pedro Álvares Cabral,

Inventô do telefone,

Começou tocar trombone

Na volta de Zé Leal.

Mais como tocava mal,

Arranjou dois instrumento;

Daí chegou um sargento

Querendo enrabar os três,

Quem tem razão é o freguês

Diz o Novo Testamento.

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É melhor desaparecer!

O leitor itabirano Marcos Caldeira lembrou-se com extremada saudade do poema ?Desaparecimento de Luísa Porto?, do conterrâneo Carlos Drummond de Andrade, ao escutar o noticiário da Rádio Itabira AM. Com a empostação de Cid Moreira, o locutor caprichou na manchete:

?Mulher morre afogada no Carmo! Polícia desconfia de afogamento!!!?

Janistraquis também recordou o poema de Drummond, ó Marcos Caldeira, e depois de dizer alguns versos que fala daquela que sumiu de sua casa, à Rua Santos Óleos, 48, observou, com propriedade: ?Considerado, tanto na poesia quanto na reportagem policial, às vezes é melhor a pessoa desaparecer do que morrer; pelo menos, nem polícia nem redator precisam dar nenhum vexame?.

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Cabra bom de serviço!

Deu no Correio Braziliense: ?ALBERT EINSTEIN, Ciência — Nasceu em Ulm, ao sul da Alemanha, em 1879. Sua família tinha uma fábrica de equipamentos eletrônicos. Na escola, era considerado indolente e sonhador. Parece que não gostava muito do ambiente escolar. Em casa, mostrava interesse pelo modo como as coisas funcionavam. Ele é considerado uma das mentes mais brilhantes que a ciência já teve.?

Nosso diretor em Brasília, Roldão (também conhecido como Rodão e Rondon) Simas Filho, abriu seus implacáveis arquivos e verificou que a história do gênio não foi bem assim: ?O primeiro aparelho eletrônico, o rádio, só foi industrializado no início do século XX?, informa; e mais: ?Por volta de 1879, a própria utilização dos equipamentos elétricos era incipiente. Edson inventou a lâmpada incandescente nesse mesmo ano de 1879.?

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Português macarrônico

Sempre de olho nos tradutores do Estadão, sem nenhum intuito persecutório, diga-se, todavia porque é leitor assíduo do jornal, nosso diretor paulistano Daniel Sottomaior pescou este primor: ?No texto intitulado Economia deixa inovações na espera, o tradutor aparentemente foi tomar um café enquanto deixava o Babylon.com fazer seu trabalho, e sapecou a frase ?redes sem fio para empresas estão pelo menos três anos distantes?.

Em inglês, a referência a tempo pode ser feita de maneira semelhante à referência a distâncias. Assim como se diz ?a mile from here?, pode-se usar ?a year from now?. Mas o digníssimo jornalista ainda não foi informado que isso simplesmente não existe em português! O correto seria dizer ?só acontecerão daqui a pelo menos três anos?.

O artigo é encerrado com uma menção à impossibilidade de redes sem fio ?por causa da difícil economia?. O que??? ?A difícil economia???? A inversão só faria sentido se a frase continuasse assim, por exemplo: ?a difícil economia dos dias de hoje?. Do jeito que está, é português macarrônico.?

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Publicizar é o cacete!

O diretor de nossa sucursal cearense, Celso Neto, aquele que adora o filme Só o Cume Interessa, despachou mais esta: ?Depois do ?eutanasear?, outro verbo me chamou a atenção. Veja este trecho: ?Paralelo a essas medidas, a diretoria do Sindjorce está consultando seu departamento jurídico com o intuito de publicizar os nomes das 189 pessoas que se aproveitaram da liminar esdrúxula da juíza Carla Rister e obtiveram seus registros precários?.

Procurei em todos os dicionários e gramáticas aqui de casa e não encontrei esse verbo ?publicizar?. Mas por que diabos o redator não escreveu ?publicar?, ?tornar público? ou ?dar publicidade?? O mais grave disso tudo: o texto foi ?publicizado? no sítio do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado do Ceará (Sindjorce). Casa de ferreiro, espeto de pau. Será que o autor do texto está incluído também na lista dos 189 que requereram o registro precário de jornalista??.

Boa pergunta, Celsinho, boa pergunta…

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?Concerto? em João Pessoa

Tenho a subida honra e o desmesurado prazer de informar que amanhã, sexta-feira (dia 5), lançarei meu livro Concerto Para Paixão e Desatino – Romance de uma Revolução Brasileira em João Pessoa. O lançamento se justifica, não apenas porque o humilde autor ali nasceu, no recuadíssimo ano de 1942, seis meses antes da reforma ortográfica, mas principalmente porque a sublevada Paraíba de 1930 é o cenário da obra. O endereço da festa: Praça Dom Adauto, 34, centro, nos salões do Casarão 34 (depois das 18h30).

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Nota dez

O melhor texto da semana é de José Inácio Werneck, em sua coluna Campo Neutro, no Jornal do Brasil:

?Bristol, EUA – Os labrostes, lapuzes e lamechas deveriam ser proibidos de sair do Brasil. Como Eça de Queiroz já sugerira para certos dignitários portugueses, seria de bom alvitre submetê-los a um exame singelo no portão de embarque, para impedir que envergonhem o país no exterior.

Fico embasbacado ao ler assertivas de que a imprensa estrangeira gosta do esporte pelo esporte, enquanto a brasileira só gosta do Brasil. Seria estranho que nossa imprensa esportiva gostasse da Groenlândia. A verdade é que a imprensa esportiva inglesa gosta da Inglaterra e a imprensa esportiva americana gosta dos Estados Unidos. A imprensa esportiva australiana gosta da Austrália, mas os pancrácios acham que ela gosta da competição pela competição, como recomendava o Barão de Coubertin.

Deve ser porque não entendem o sotaque.?

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Errei, sim!

?Vermiculoso título do Correio Lageano (de Lages, SC): Movimentos sociais organizam comitê contra a fome e a vida. Janistraquis concorda com o leitor L.S., que é amigo do malogrado redator: ?Considerado, comitê contra a vida só pode ser algo parecido com esquadrão de extermínio?. (março de 1994)”

 

IMPRENSA ROMÂNTICA

“Saudades de um repórter”, copyright Novae (www.novae.inf.br), 3/09/03

“A história de Roque, o ?escolhido?, filho de José e Maria, e sua ?missão na terra?. Um repórter nostálgico e o resgate do humanismo e do romantismo que aproxima o leitor dos veículos de comunicação.

Dia normal na redação, nada demais acontecendo. Mas redação de jornal, ainda mais no interior, é como assistência social: sempre aparece alguém pedindo algo, reclamando tudo, procurando alguém. Eis que aparece um capiau, bem vestido à moda dele (aquela roupinha de-domingo, cheirando a naftalina, mal-combinadas as peças, e brilhantina -ou um óleo qualquer- nos cabelos). Pede para falar com o chefe. Indicam-lhe ?a? chefe.

Conversa vai, conversa vem, a reportaiada se dividindo entre um telefonema e outro e apreciando aquela figura inusitada. A chefe, Nydia Natali, me chama e, reservadamente, diz:

– É um caso procê, ?Biquinha?.

Era assim: eu, repórter novo, transitava por todas as editorias, sem me fixar em nenhuma. Casos esdrúxulos ou pitorescos, porém, eram minha especialidade – isso porque tive a sorte de cair numa redação em que (ainda) havia espaço para as chamadas ?reportagens autorais?, com o repórter livre para exercitar um estilo próprio e mesclar jornalismo e literatura, ou algo assim. E eu era o ?viajandão?, em se tratando de texto.

Bom, acompanhei o capiau até a sala de reuniões e me prontifiquei a ouvir sua história. Qualquer um, em sã consciência, despacharia sem culpa aquele cidadão antes de cinco minutos de conversa. Mas a Nydia, não: talvez o feeling de jornalista velha-de-guerra tivesse alertado que ali havia uma (boa) história, e bota o foca (eu) para contá-la.

Em mais de meia hora de conversa, ouvi um relato dos mais fantásticos. Apesar (ou por causa) da simplicidade, o capiau se expressava bem, juntando num mesmo saco bolas de fogo, discos voadores, Cavaleiros do Apocalipse, o soar das trombetas, demônios, Igreja Católica, maçonaria, candomblé… Ele era o escolhido para ser o ?pai? da besta, do anticristo, e dois anos antes deixou a casa da família quando passou a ser perseguido por discos voadores e ETs que promoveriam o ?enlace carnal? que culminaria no nascimento da besta.

Bom, despachei o cidadão, Roque, prometendo que iria avaliar sua história e ver o que poderia fazer. Mal ele deixou a redação, os colegas começam a me sacanear, mas a Nydia queria ouvir a história. Contei tudo, e pedi um carro e fotógrafo para o dia seguinte, para averiguar melhor o caso. A primeira reação dela, óbvia: de jeito nenhum. Desperdiçar uma equipe inteira de reportagem para uma história maluca dessas? E logo eu, que era o queridinho da chefe, tinha que ficar de plantão para as melhores pautas que pintassem ali, de repente. Não, não e não.

Dia seguinte, logo pela manhã, saio eu do jornal com um carro e motorista à disposição, e um fotógrafo a tiracolo, me enchendo os pacovás.

– Pô, Bica, como é que é a história? Eu tenho que perder um dia para fotografar o cara que vai ser pai da besta? Tenha paciência…

Era o Marcelo Alves, outro queridinho da chefia, e com méritos. Um ótimo fotógrafo, que gostava de exercitar o ?olhar artístico? em meio a pautas banais.

Minha disposição era encontrar Roque no alto da serra, para onde ele havia se refugiado para fugir dos ETs. As referências eram mínimas: antiga estrada São José dos Campos-Campos do Jordão (SP-50), bem lá no alto, perto de uma fonte. Pelas informações de Roque, era chegar ali e chamar por ele, que ele atenderia. Quando contei isso, o motorista (não tenho certeza, acho que era o Édson) se uniu à ladainha do Marcelo:

– O quê? Vamos subir a serra sem saber exatamente onde encontrar o fulano, e com uma história dessas? Em anos e mais anos de jornal, nunca vi isso, Bica. E logo você e o Marcelo? Essa redação tá ficando cada vez mais louca, mesmo…

Os carros do jornal, até então, eram equipados com rádio-amador, para que a redação sempre pudesse localizá-los em caso de emergência. Ali, no entanto, nem isso tinha serventia: logo ao entrarmos na estrada, começando a subir a serra, o rádio não captava mais nada. Sem comunicação, eu (que, teoricamente, era o ?chefe? da equipe), prestes a ser dominado por um motim de motorista e fotógrafo, tinha que acalmar os ânimos.

– Encosta ali naquele boteco, Édson.

Descemos, tomamos uma meia-dúzia de cervejas, temperadas por umas doses de cachaça de alambique. Perdemos ali mais de uma hora, mas quando retomamos a estrada os dois quase-amotinados já estavam dominados e entraram no clima da pauta. O Marcelo já imaginava as fotos que a pauta poderia render, com contra-luzes daqui, uma desfocada dali e outros efeitos. E o Édson já começava a rezar, que esse negócio de besta e anticristo não era com ele…

Chegamos ao alto da serra. Com o carro parado próximo à fonte, olhamos para todos os lados e nenhum sinal do Roque por ali. Grito uma, duas, três vezes o nome dele, e de repente o fulano surge na beira da estrada.

Mostra-nos seu ?acampamento?, que nada mais era que uma lona esticada sobre uns mourões de cerca. E conta novamente toda a história, apontando, por sobre os morros, de onde os discos voadores vinham tentar capturá-lo. Aí, o Marcelo já estava no terceiro ou quarto filme, entusiasmado com o pôr-do-Sol e os contra-luzes.

Sem beber nem fumar, jejuando dia sim, dia não, passando o tempo fabricando pequenas esculturas supostamente sacras a partir de pedaços de troncos que caíam (daí o apelido, vindo da novela Roque Santeiro), Roque, ou Eriston Batista Lúcio, passara dois anos ali, se sustentando com a venda de frutas e pinhões que colhia. Era sua ?provação? manter-se isolado para evitar ?influências malignas? dessas aparições em outras pessoas…

Lá se vão duas ou mais horas de conversa. Antes de nos despedirmos, pergunto a Roque sobre sua família, e ele me dá um endereço num bairro na periferia de São José. Entramos no carro, e peço ao Édson que toque para aquele endereço, enquanto o Marcelo me questiona o que é que eu vou escrever. Não sei.

Chegamos ao tal endereço: ?Marcenaria São José?. A história começava a fazer sentido. Chamo o ?seu? José, pergunto se conhece o Roque. José e Maria conhecem, sim, são os pais dele. José, marceneiro, e Maria? Num insight, pergunto a idade de Roque -ou melhor, ?Etinho?, segundo o apelido caseiro. 33 anos, responde d? Maria.

Pronto! Resolvida a charada, ?amarrando? toda a pauta: uma família simples, extremamente católica, que deu a Roque uma educação severa e uma forte formação religiosa. Foi o que bastou para que Roque, ao completar 33 anos (a idade de Cristo), incorporasse os ensinamentos e não mais distinguisse a realidade da ficção.

Antes de voltar à redação, paramos noutro boteco para tomar mais umas e discutir toda aquela história maluca, mas fantástica. Já quase escurecendo, chegamos de volta ao jornal. Entre broncas da chefe daqui, e piadinhas dos colegas dali, peço só mais uns minutos para uns telefonemas. Ligo para um teólogo -bastou descrever a situação, e ele me dá o embasamento teológico – sociológico-psicológico do caso todo. Volto à chefe, peço uma página inteira para contar a história, e me disponho a fazer o ?risco? (o raff do diagrama). Aprovado.

Não era nenhuma pauta factual, e era, na verdade, para ser ?morta no ninho?, antes de crescer, ou mesmo de nascer. Mas a pauta vingou, e poucas vezes recebi um feedback tão grande por parte dos leitores.

Isso faz 10 anos. Tive a sorte de começar no jornalismo num ambiente desses, menos técnico e mais romântico. Tinha espaço para histórias ?humanas?, o texto podia correr solto, nem se cogitava o patrulhamento ?politicamente correto?. Talvez, quem sabe, essa possa ser uma explicação para a crise atual do jornalismo (ou dos jornalistas): a pauta é sempre a mesma, para todos os veículos, ditada normalmente por fontes oficiais. Seria bom resgatar um pouco o humanismo, ou o romantismo, ou ambos, e aproximar um pouco mais o leitor dos veículos – algo que a Internet vem possibilitando, sim, e quero crer que ainda nos reserve muitas e boas surpresas.

Ah! Quanto ao Roque, nunca mais tive notícias dele. (Taí uma boa pauta…)

Paulo Bicarato, é jornalista free lancer, com 12 anos de estrada. De repórter especial a editor, passou por todas as funções dentro de redações como as do Jornal ValeParaibano (São José dos Campos-SP) e da Folha de S.Paulo. Atuou também em assessoria de imprensa. É editor responsável por Alfarrábio e editor contribuinte da Novae.”

“Duas viagens ao passado”, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 9/09/03

“No meio da semana passada eu me encontrei com Armando Nogueira e Sérgio Augusto para falar de jornalismo; no fim de semana eu já estava em Natal com Ancelmo Góes e Lula Vieira participando de um seminário sobre comunicação. Na verdade foram duas ?viagens?: uma à década de 50, aos anos dourados, e outra aos anos 40, à II Guerra Mundial, quando a capital do Rio Grande do Norte foi ocupada por tropas americanas. Calma, me explico rápido.

Armando está preparando uma autobiografia, mas de forma original. Reúne em grupos amigos e colegas para entrevistá-lo sobre um aspecto ou fase de sua vida profissional. O processo, além de não se fiar na própria memória, que é sempre traiçoeira e seletiva (a gente acaba se lembrando só do que quer), vai resultar num livro mais plural e variado: a biografia não de um personagem apenas, mas de uma geração ou época.

A Sérgio Augusto e a mim coube participar da rodada sobre texto, que é um dos campos em que Armando atua como craque. Criado na imprensa escrita (com redundância e tudo), ele migrou depois para a televisão, implantando o telejornalismo moderno. Mas naquela noite os três parecíamos mais interessados nos anos 50, quando ocorreram as reformas fundadoras do que de melhor se pratica hoje na imprensa brasileira.

Contemporâneos das revoluções culturais que ocorriam em outras áreas, o Diário Carioca de Pompeu de Souza, a Tribuna da Imprensa de Carlos Lacerda e, um pouco mais tarde, o Jornal do Brasil de Odilo Costa, filho, fizeram com o jornalismo o que a Bossa Nova fez com a música, Brasília com a Arquitetura, o Cinema Novo com o cinema, o Arena e o Opinião com o teatro, Pelé e Garrincha com o futebol. Afinal, eram os anos JK.

Armando sempre atuou ?Na grande área? (eterno título de sua coluna), dando dignidade ao texto esportivo, que então só perdia em mau gosto para o policial, mas foi também ?copy desk? ou ?reescrevedor?, uma função que não existe mais nas redações (pelo menos como no começo) e que consistia em dar forma final ao texto do repórter, que em geral escrevia muito mal – fosse ?penteando?, quer dizer, corrigindo e cortando, fosse escrevendo outro texto com as informações ali contidas.

Com o tempo a prática foi se degenerando e o ?copy? passou a ter uma autonomia que quase dispensava o repórter. Distante do acontecimento, ele acabava criando uma matéria que às vezes nada tinha a ver com o que fora visto por quem presenciara o fato, sem falar que seus recursos estilísticos se tornaram clichês e retórica batida. Mas durante uma boa época o ?copy?, formado em geral com os ?melhores textos da praça?, como se dizia, foi fundamental para unificar a linguagem jornalística, dando-lhe um padrão de qualidade e excelência estética que se desenvolveu e aprimorou até tornar-se um verdadeiro gênero narrativo.

Depois de uma noite agradável quanto um belo texto (Armando cuida do vinho com o gosto com que trata o idioma) concordamos os três em que há hoje uma crise da palavra escrita. Mas como estou com pressa para chegar a Natal, proponho deixar isso para os jovens colegas resolver, até porque _ Sérgio não, que é uma criança – mas Armando e eu estamos mais pra lá do que pra cá.

Não foi a primeira vez que visitei Natal, uma cidade que sempre me lembra o Rio ameno dos anos 40/50 – pela natureza, mas também pela paisagem humana. Que gente simpática e acolhedora! A diferença agora é que Mary e eu estávamos com Tina/Ancelmo, Silvana/Lula e Luciana/Aldo, e melhor companhia não há. Com eles comi uma paçoca e um risoto de carne de sol que, desconfio, nos serviram por engano. Na verdade, estavam reservados para os deuses.

Tudo ao som de casos igualmente deliciosos sobre uma história que me fascina: a da presença americana ali. Não sei, mas talvez tenha sido a primeira ocupação militar dos EUA a não gerar ódio; ao contrário, contribuiu para o processo civilizatório da cidade. Se Natal em termos de costumes é hoje cosmopolita e liberal, como dizem seus orgulhoso moradores, deve-se muito à herança comportamental desse encontro civilizado.

Pode-se imaginar o que significou aquela invasão de 20 mil soldados louros, fortes de olhos azuis e bolsos cheios de dólares numa terra com 40 mil habitantes. Um gringo para cada dois moradores e provavelmente muito mais para cada moça solteira escolher. O resultado é a quantidade de olhos azuis e verdes na cidade. Conheci uma senhora em cuja família há um Roosevelt, um Franklin e um Wallace. Wiclef Xavier era o garçom que nos servia no hotel, em homenagem ao personagem de ?O Morro dos ventos uivantes?.

Há ainda a versão que é pena não ser verdadeira – a de que forró vem não de forrobodó, mas de ?for all?, o baile que o comando da base americana oferecia ?para todos?, com o fim de promover a confraternização entre invasores e moradores. Mas as histórias mais divertidas são as de um certo Zé da Areia, malandro bem brasileiro que descobriu maneiras espertas de tapear os gringos como, por exemplo, vender filhote de urubu, que é branco, como ave rara.

Bons tempos aqueles em que os americanos atraíam o humor e a simpatia, não as bombas dos povos ocupados.”