Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Modelos e modelagens

CONHECIMENTO & PLANEJAMENTO

Carlos Vogt

I

Ferdinand de Saussure, o grande fundador da lingüística moderna, no livro Curso de Lingüística Geral, publicado, postumamente, no início do século passado, por iniciativa de alguns de seus alunos, a partir de suas anotações das aulas do mestre suíço, escreve que a língua é um todo em si mesmo e um princípio de classificação.

O que exatamente pretendia Saussure com essa afirmação, à primeira vista misteriosa e totalmente contra o senso comum?

Na verdade, Saussure não se referia a nenhuma língua, em particular, como o português, o francês, o húngaro, o tupi, ou qualquer outra das que são ou foram faladas na história dos povos e das civilizações.

Referia-se, ao contrário, não a um fenômeno particular, mas a um objeto teórico, isto é, a um artefato da teoria, a um objeto da ciência, a um constructo, como gostavam os estruturalistas de dizer, a uma simulação dos fenômenos lingüísticos, de sua estrutura e de seu funcionamento, a um modelo, enfim, da linguagem e suas ocorrência históricas, sociais e culturais.

A "criação" da língua como objeto da lingüística é que permitiu o salto epistemológico fundador da moderna ciência da linguagem.

Ao dizer que a língua é um todo em si mesmo, Saussure enunciava a condição de consistência e de coerência intrínseca a que deve satisfazer todo objeto científico; ao qualificá-lo como "princípio de classificação", afirmava a sua condição de adequabilidade aos fenômenos lingüísticos, às diversas línguas do mundo, cujo funcionamento e estrutura seria capaz de descrever, conseqüentemente, classificar.

O desenvolvimento da ciência e da própria lingüística abandonaria, na seqüência, a simples ambição taxinômica dos fenômenos para afirmar, amplamente, o poder explicativo dos seus modelos teóricos e a língua, em vez de ser, enquanto modelo teórico, um princípio de classificação, seria, nesse sentido, um princípio de explicação com potenciais de previsibilidade indispensáveis para a ocorrência de novos fenômenos ainda não ocorridos, mas previsíveis na lógica de construção do modelo, tanto por suas regras de adequação interna, isto é, sua consistência e coerência sintáticas, quanto por suas regras de adequação externa, isto é, suas regras semânticas de correspondência com o mundo e com os fenômenos que nele ocorrem, nesse caso, os fenômenos de linguagem.

Os modelos teóricos da ciência, de inspiração lógica-matemática, são reducionistas por definição. Abstraem do fenômeno a ser explicado apenas as características relacionais com alto potencial de conceitualização e conseqüente poder de generalização.

Nesse processo, há sempre residuais de realidade que, por não estarem contidos nas equações do modelo explicativo, de um lado, dão historicidade à ciência, tensionando-a continuamente contra seus limites e sua falibilidade e, de outro, dinamizam, por constituírem desafios ao conhecimento, as suas mudanças e sofisticação.

II

Assim, de um modo geral, são os modelos científicos.

As modelagens são um produto dessa sofisticação teórica da ciência e o seu objetivo é constituir objetos mais simples com as ferramentas da matemática, em particular as equações diferenciais, visando à sofisticação de instrumentos que permitam não apenas uma compreensão adequada de um determinado fenômeno e de suas tendências no tempo, mas também a formulação de programas de intervenção que possam ordenar, organizar, mudar, prever e mesmo prevenir, no que diz respeito à sua ocorrência e a seus desdobramentos, fenômenos, sejam eles físicos, naturais, sociais ou culturais.

Os estudos demográficos são particularmente felizes para ilustrar o potencial dessa ferramenta e por envolverem questões relacionadas aos quatro aspectos fenomenológicos acima mencionados.

De fato, o estudo das populações humanas, suas tendências de equilíbrio e de crescimento negativo ou positivo, tem uma larga tradição que remonta ao trabalho sobre o tema de Thomas Robert Malthus, ministro anglicano e professor de História na Universidade de Cambridge, na Inglaterra do século 18.

Como se sabe, Malthus, em seu Ensaio sobre a População, aponta, entre outras, para duas formulações bastante conhecidas: uma, a de que a taxa de crescimento de uma população é proporcional ao seu tamanho, isto é, quanto maior a população, mais ela cresce; a outra, a de que as populações crescem em proporção geométrica e os alimentos, meios de sua subsistência, crescem em proporção aritmética.

Em outras palavras, o equilíbrio, sob este ponto de vista, é função da taxa de natalidade, da taxa de mortalidade e da capacidade da população, através de sua organização social e política, de suprir suas necessidades de subsistência e seus desejos de melhoria contínua.

É claro que as coisas são muito mais complexas que isso, mas o fato é que os estudos populacionais de que se ocupa a demografia sofisticaram-se enormemente ao longo dos anos e hoje fornecem, a partir de dados estatísticos e de modelos matemáticos adequados, ferramentas indispensáveis não só para simular o crescimento populacional futuro, mas também para permitir, com base nessas projeções, a formulação de políticas públicas eficientes e eficazes para o atendimento qualificado das demandas sociais e culturais das gerações futuras.

Desse modo, a modelagem matemática oferece-se como um importante mecanismo para o planejamento do futuro, com resultados tanto mais acertados quanto maior for o número de variáveis pertinentes com que o modelo trabalha e maior for a capacidade de formulação e análise das tendências que ela estabelece.

O que vai aqui dito para o estudo das populações humanas de que se ocupa a demografia vale também para os estudos biológicos das relações entre organismos e seus ambientes, próprios da ecologia, ou ainda os estudos de população de vírus e bactérias que realiza a microbiologia.

As aplicações da modelagem matemática, com o amplo desenvolvimento das tecnologias de informação, abrem-se, contudo, para os mais diversos campos do conhecimento e dos interesses tecnológicos e econômicos: desde o futebol, em que o Tira-Teima aparece na telinha da Globo para dirimir dúvidas sobre lances polêmicos do jogo, passando por programas mais sofisticados, como o Juiz Virtual, até as aplicações em medicina, em biomatemática, em economia e finanças, em meteorologia, em meio ambiente, em manutenção de equipamentos pesados e de alta complexidade, em música, em administração e planejamento de projetos empresariais, em inteligência artificial, enfim, nos mais diferentes aspectos da vida e de suas manifestações culturais.

III

Quer dizer então que estamos capacitados para tudo planejar, prever e solucionar em relação ao futuro?

Longe disso, embora tenhamos hoje uma capacidade de previsão, por exemplo, meteorológica impossível há alguns anos atrás, que nos permite medidas de defesa e de prevenção capazes de evitar tragédias e antecipar soluções.

No entanto, as enchentes e as secas continuam a ameaçar as populações do planeta, quando não são outras catástrofes de maior monta e de maior impacto como furacões, terremotos e erupções vulcânicas.

O que se sabe nem sempre é o que se pratica e, muitas vezes, a imprevisibilidade de certos acontecimentos introduz variáveis que não haviam sido contempladas pelo sistema, e o modelo, embora coerente e consistente, mostra-se semântica e pragmaticamente desconexo e ineficaz.

Há mais ou menos 40 anos, para falar de um tema caro à mídia em nossos dias e assustador para os brasileiros, houve em Nova Iorque um apagão cujas conseqüências para a dinâmica populacional da cidade foi importante, já que o número de bebês aumentou e a taxa de natalidade cresceu no período correspondente.

Essa variável, a do apagão, não estava no gibi, como também a do nosso recente apagão não constava do figurino. Que conseqüências terá tido esse evento para a economia, para a saúde, a educação, para a população, para a sociedade, para os indivíduos, seus medos, esperanças, incertezas e planejamentos existenciais?

É possível modelar tudo?

Se sim, qual o modelo para prever o desfecho da história narrada por Somerset Maugham no conto The lotus eater (Os comedores de lótus), segundo a qual o turista inglês Thomas Wilson abandona seu país, seu trabalho, sua família, seu passado para viver em Capri, no Sul da Itália, dedicado ao prazer de usufruir a cada dia a beleza e a magia histórica do lugar, e nada mais?

Ao deixar o banco onde trabalha, antes da deflagração da Primeira Guerra Mundial, Wilson não tem tempo de serviço suficiente para garantir uma pensão para toda a vida. Pode, no entanto, contar com ela por 25 anos. Planeja, então, viver, simples e prazerosamente por esse tempo, findo o qual, se não fosse antes retirado da vida por morte natural ou acidental, ocupar-se-ia ele próprio em tomar a iniciativa dessa retirada.

Passam-se os 25 anos e Wilson vê-se sem dinheiro e sem apoio a que recorrer. Consegue manter-se por mais um ano com os empréstimos e adiantamentos que obtém, afiançados pela correção de seu comportamento durante todo o tempo anterior, e ainda por mais cinco, pela caridade contrariada de seus antigos senhorios, depois de tentar, sem muita convicção, um suicídio mal sucedido.

Um dia, pela manhã, é encontrado morto no alto de uma das colinas de onde podia contemplar, à luz da lua, a beleza deslumbrante que o seduzia e o aniquilara.

Se se fizesse o exercício de modelar matematicamente o conto para estimar e prever o comportamento futuro do personagem, que variáveis permitiriam planejar o esperado e que outras interfeririam para o seu desvio e frustrações do previsto?

Um dos corolários da modelagem matemática é que é possível tratar um problema complexo abstraindo-o para um mais simples, comensurável, isto é, com um número de variáveis determinado, com regras de relação precisas e claras e conseqüente capacidade de representação do problema tratado.

Aqui, como de um modo geral na construção de modelos teóricos, a dinâmica do residual da realidade é intensa e, em casos como o do comportamento humano, com variáveis de imponderabilidade freqüentes e determinantes.

Razão para não crer na importância de modelos e modelagens para o conhecimento e para os aspectos práticos da vida contemporânea?

Ao contrário, razão constante para aperfeiçoar-lhes a forma e o alcance de suas explicações.