STRIP-TEASE NA ABL
Fernando Neto (*)
Imagino alguém sacudindo-a na ponta de um mastro, branca ou vermelha, espero esta última. Como um sinal, um pedido de socorro semafórico: tolice! E, na gíria atual, no entanto, é índesdobrável, o jamais hasteável drapão da verdade onde o brasão do rei (ou rainha) simplesmente… nus!
No jornal O Globo, na coluna do Ancelmo Góis. Diz lá:
"Strip-tease literário ? Uma mulher não se conteve segunda-feira na posse de Paulo Coelho na Academia Brasileira de Letras. No meio da festa, sem cerimônia, tirou o vestido que trazia escritos poemas de Mário Quintana. E assim ficou só de sapatos. Aliás, bonitos sapatos."
Seria absurdo, levando-se em conta a brevidade da notícia, conjeturar que versos de Quintana ela tinha na roupa? É como se, para nós leitores, fosse uma antologia do poeta ao qual, mesmo lendo o jornal, não podemos apreender o sentido… Mas inevitavelmente devia estar lá: "O passarinho empalhado". Como isso é muito óbvio, eu vou arriscando:
"Cada palavra é uma borboleta morta espetada na página:
por isso a palavra escrita é sempre triste…"
Coitado do Mário! Nu e silente, involuntariamente exposto em sua morte imortal:
"Terra! Um dia comerás meus olhos…
…meus olhos eram os teus pintores!"
E essa idéia vaga da mente transtornada e perplexa que se despoja de seus versos em quanto os proclama imprudentamente:
"Eu estava dormindo e acordaram-me
… e me encontrei num mundo incerto e louco!"
O colunista não conta se chamaram o Pinel ou a prenderam, simplesmente, por atentado ao pudor.
Eu gostei da notícia. Imprensa é para isso! Gerar contradição, angústia existencial! Não sei se lembram das longínquas origens desse esporte. Remonta a Luz del Fuego. Mas aí é naturismo, algo assim.
Essa mulher de belos sapatos está pretendendo mais! Há em seu comportamento um apelo inconsciente que justifica a nota de Góis. Ela pode ser exibicionista e gostosa, não é o caso. Mesmo. O importante é como ela criou um espaço de protesto em plena ABL, tão conservadora.
E a, partir de sua nudez ela está como que rejeitando a nudez. O reality show (felizmente, já há tal termo!). Claro, conscientemente, pode pensar outra coisa. Esse tipo de protesto é feito no mundo inteiro em entrega de Oscar, em pontes descomunais, no gelo do mais rigoroso inverno.
Mas qual a mensagem imortal do Mário se imortal o fosse de fato? A qual de seus poemas nos reportamos para acolher a inquietude de sua louca?
Talvez:
"Meus pés no chão
como custaram reconhecer o chão!"
Ou:
"A janelinha de acetilene do lampião da esquina tinha uma luz que não era do dia nem da noite… a mesma luz que banhava as pessoas, animais e coisas que a gente via em sonhos…
aquela mesma luz que deveria enluarar, mais tarde, as janelas altas do outro mundo…"
O Ancelmo tem razão. O Mário, a doidona:
"Rosa suntuosa e simples,
como podes estar tão vestida e ao mesmo tempo inteiramente nua?"
É belo, mas triste. Panoptical fútil. Afinal, ela comprou os sapatos que devem ser caros…
(*) Médico