FUTEBOL & HISTÓRIA
Corações na ponta da chuteira: capítulos iniciais da história do futebol brasileiro (1919-1938), de Fábio Franzini, 95 pp., DP&A Editora, Rio de Janeiro, 2003; tel. (21) 2232-1768; e-mail <dpa@dpa.com.br>; URL <www.dpa.com.br>; título da redação do OI
[do release da editora]
Nascido na velha Inglaterra por volta da segunda metade do século 19, o football association logo transpôs os limites das ilhas britânicas para conquistar pés e corações mundo afora. No Brasil, onde não demorou a aportar, não seria diferente ? exceto, talvez, pelos resultados de sua formidável aclimatação por aqui. Hoje, passado mais de um século dos primeiros chutes nativos, eis que nos achamos reconhecidos como representantes de um futebol "arte", como donos do "melhor futebol do planeta". Mais do que isso, orgulhamo-nos de ser "o país do futebol".
Mas como o Brasil se tornou o "país do futebol"? A pergunta não é despropositada, uma vez que a intenção deste livro é precisamente escapar às interpretações lineares e fáceis desse processo, bem como à superfície da paixão incondicional que dedicamos à bola, do brilho de nossos craques, das nossas conquistas nos gramados internacionais.
O que se pretende é buscar as raízes do estreito vínculo que se estabeleceu, ao longo do século passado, entre um esporte de origem estrangeira e a nossa própria identidade nacional, raízes que não estão em outro lugar senão na história: afinal, como lembraria o genial Nelson Rodrigues, em futebol o pior cego é o que só vê a bola.
Fábio Franzini
Introdução de Corações na ponta da chuteira: capítulos iniciais da história do futebol brasileiro (1919-1938), de F.F, 95 pp., DP&A Editora, Rio de Janeiro, 2003; título da redação do OI
Nos primeiros dias de 1922, o escritor Lima Barreto mostrava-se indignado com uma notícia com que se deparara nos jornais do Rio de Janeiro. As folhas anunciavam a viagem de "alguns esforçados paladinos" brasileiros a Montevidéu, onde participariam de "incruenta e altissonante prova internacional" de xadrez, jogo que lamentavam ser pouco apreciado e estimulado no país. Famoso por sua ojeriza a todo tipo de esporte, em especial um certo bolapé, Lima não se conteve. "Para gente desse calibre", escreveu ele então, "a grandeza de um país não se mede pelo desenvolvimento das artes, da ciência e das letras. O padrão do seu progresso é o grosseiro football e o xadrez de ociosos ricos ou profissionais". E arrematava: "O Brasil, ao acreditar em semelhante pessoal, ficará célebre no mundo, desde que ganhe campeonatos internacionais dessas futilidades todas. E, sendo assim, em breve aparecerá um Camões ou um Homero para rimar uma epopéia em louvor desses heróis esforçados, que nada fizeram para o benefício comum, mas que são glórias do Brasil".
Lima Barreto sequer poderia desconfiar do alcance de sua irônica profecia. Hoje, eis o futebol brasileiro associado a expressões como "melhor do mundo" e "futebol-arte". Ainda que idealizadas e, por isso mesmo, questionáveis, é possível ler por detrás do tom ufanista de ambas um desdobramento de nada mais, nada menos que nossa identidade nacional. Afirmar sermos os "melhores" em um esporte que nós mesmos transformamos em "arte" significa marcar, e de modo enfático, uma de nossas mais prezadas características, que nos diferencia de outros povos, de outras culturas. E isto adquire importância ainda maior quando lembramos que o fervor pelo futebol é tão universal quanto o próprio jogo e suas regras, ao contrário da tourada ou do beisebol, por exemplo. Afinal, embora o football association tenha nascido na Inglaterra e desde logo se constituído em fenômeno global, só existe um "país do futebol" ? para citar outro famoso epíteto sob o qual o Brasil se faz reconhecer perante o mundo e a si mesmo.
Mas, como o Brasil se tornou o "país do futebol"? A resposta parece muito fácil. Tanto que chega a ser lugar-comum repetir que, importado da Europa pelas elites urbanas em meados dos anos 1890, logo nas primeiras décadas do século 20 o jogo cai nas graças do povo, que a partir daí estabelece com a bola uma ligação profunda e produtiva a ponto de caracterizá-lo como um produto nacional, consagrado pela conquista de títulos mundiais e pelo talento de nossos jogadores. Trata-se de uma visão resumida, mas que, a rigor, não deixa de ser correta; o que nem sempre se percebe, porém, é que, por ser resumida, ela dá a entender que a aclimação do esporte bretão a estes trópicos se desenvolveu de forma tranqüila e natural, quando na verdade foi marcada por tensões, contradições, conflitos e apropriações de toda ordem ? sociais, econômicas, políticas, ideológicas. Graças a tal dinâmica, e não a qualquer espécie de dádiva natural ou divina, aquilo que Lima Barreto via como futilidade pôde ser definido, apenas duas décadas mais tarde, como "verdadeira instituição nacional" pelo sociólogo Gilberto Freyre.
A proposta deste livro é apresentar alguns dos caminhos nada lineares que levaram a essa rápida e meridiana mudança de postura frente ao futebol em nossa sociedade, enfocando justamente o período compreendido entre as décadas de 1920 e 1930, tomadas aqui como os "tempos de formação" do esporte inglês enquanto símbolo da identidade nacional brasileira. A análise concentra-se nos gramados do Rio de Janeiro e de São Paulo, cidades que, pela sua condição de centro político e econômico do país, então vivenciaram de maneira mais próxima e intensa os passos da popularização do futebol e suas conseqüências. Os capítulos seguintes destacarão questões como as querelas entre dirigentes cariocas e paulistanos, os obstáculos colocados aos jogadores de origem popular até encontrarem o reconhecimento de seu talento com a bola nos pés, a relação entre o jogo e os meios de comunicação, o questionamento do amadorismo e as polêmicas em torno da profissionalização dos atletas, os usos e apropriações políticas do esporte e, claro, a participação da seleção nacional nas primeiras Copas do Mundo, entre 1930 e 1938.
Se não é de hoje que o futebol tem grande peso na sociedade e cultura brasileiras, a montagem de tão amplo painel tem a intenção de mostrar que o "país do futebol" forma-se muito antes do que se imagina. Muito antes, por exemplo, de 1958 e 1962, quando o triunfo em duas Copas seguidas consagra definitivamente o nome do Brasil no vasto mundo do futebol. Trata-se, portanto, de escapar à superfície de nossos sucessos internacionais, do brilho de nossos craques e mesmo à paixão incondicional que dedicamos à bola para buscar as raízes do vínculo estreito e intenso que se estabeleceu entre ela e nossa própria identidade. Raízes que não estão em outro lugar que não a história, a história do Brasil no século 20.