ELEIÇÕES 2002
Nelson Hoineff
A Folha deste domingo chamou atenção para a quantidade de vezes que o governador do Rio de Janeiro, pré-candidato à presidência da República, tem aparecido na televisão. Citou o Programa do Ratinho, o Canal Aberto, o É Show!, o Programa Raul Gil e o Cidade Alerta.
Dependendo do mês, a mesma notícia poderia ser publicada alterando o nome do pré-candidato e talvez – mas não necessariamente – dos programas.
Vi o Programa do Ratinho e o Cidade Alerta. No primeiro, Ratinho cantava as maravilhas do piscinão de Ramos e em seguida rodava uma entrevista gravada com o governador. No Cidade Alerta, o apresentador José Luiz Datena discorria sobre o alto índice de seqüestros em São Paulo. Ato contínuo, informava ao telespectador que no Rio de Janeiro esta situação foi praticamente resolvida: no último ano só nove pessoas foram seqüestradas no Estado. Em seguida, anunciava uma entrevista ao vivo com o governador do Rio.
Garotinho já estava no vídeo. Começou dizendo que todos os nove seqüestros foram resolvidos e ninguém foi morto. Enquanto falava, seu discurso era coberto por imagens de suas realizações, editadas em perfeita sincronia com o que estava dizendo.
Merchandising é uma prática normal em televisão ? e do ponto de vista comercial não faz muita diferença se o produto apregoado seja um aparelho para emagrecer ou um candidato a cargo público (Ratinho, por exemplo, falava do governador do Rio como se fosse do Chokito ou do Café do Bule).
A legislação diferencia um caso do outro, mas na prática o cliente tem o direito de escolher os espaços em que deseje inserir seus comerciais e faze-lo da maneira que melhor lhe parecer.
Pode-se dizer que tanto o anunciante quanto o vendedor do anúncio estão em seus legítimos papeis quando negociam o merchandising ? seja ele político ou não. A questão consiste em como quantificar os espaços em que eles são inseridos e em estabelecer se o espectador deve ser informado sobre a natureza do que ele está vendo.
Na dramaturgia, o impasse ético confunde-se com a ética da publicidade em si. É uma questão equacionada há muito tempo e que pode facilmente ser projetada para o futuro. Dentro de três ou quatro anos, o t-commerce vai permitir que o espectador compre no ato uma blusa igual à que a atriz da novela está usando. Seu único trabalho vai ser levar o cursor até a blusa e clicar sobre ela. Talvez a novela não mude ? mas já não haverá dúvida que a seleção do modelito estará obedecendo a acordos comerciais celebrados entre a emissora e o vendedor das roupas.
Em comerciais que de alguma forma seguem a estrutura narrativa de um telejornal, consagrou-se a fórmula de inserir a expressão "informe publicitário", herdada da mídia impressa. Isso fica mais difícil nos casos em que a natureza desse material não é explicitado. Não tanto pelo favorecimento de produtos ou candidatos, mas pelos danos que a prática pode causar à credibilidade do jornalismo que porventura exista em redor da propaganda.
O excelente Cobras Criadas é pródigo em exemplificar como as matérias pagas produzidas por David Nasser, eram vendidas ao leitor de outra maneira. A leitura do livro nos faz imaginar que, no que tange ao jornalismo, estejamos hoje no melhor dos mundos.
E no entanto sabemos que não é bem assim. Muitas vezes, até, não nos damos conta das nuances na qualidade da leitura que o espectador médio faz das matérias que vão ao ar na televisão. Há muitas pesquisas qualitativas que demonstram que quase 50% dos espectadores de diversas classes sociais não são capazes de distinguir entre um "merchandising" de cartilagem de tubarão e o conteúdo editorial do programa onde ele está inserido.
Quando um político aparece seguidamente em diversos programas sem razão aparente, e onde não há confronto com idéias opostas, tende-se a acreditar que ocorra o mesmo. Por um lado, a exposição que o político faz ? seja ele que político for ? de suas realizações, não é oficialmente creditada como "informe publicitário" simplesmente porque não é contabilizada dessa forma (e, muito pior, é concebida justamente para ocultar isso). Por outro, o questionamento jornalístico não está sendo exercido (e isso nem sequer é apresentado como uma tomada de posição, o que seria completamente aceitável. Como diz Boris Casoy, "se o Dr. Roberto pode dar a opinião dele, eu também posso dar a minha").
Com a aproximação das eleições, essa questão será discutida quase todos os dias. A televisão vai começar a questionar, não sem razão, algumas premissas de igualdade de tratamento que fazem, por exemplo, com que, nas eleições majoritárias, candidatos com chances reais e os chamados "nanicos" tenham que ter o mesmo espaço. Isso, no entendimento de algumas emissoras, impossibilita os debates e promove a confusão entre os eleitores (outros acreditam, pelo contrário, que a ausência dos candidatos menos expressivos estimula a elitização e tira as chances dos postulantes com menor poder econômico).
Há evidentemente muitas outras questões: tirar o chapéu no Programa Raul Gil, participar do Show do Milhão ou festejar com o filho o final do Casa dos Artistas configura propaganda política mesmo antes do período de restrição imposto pelo TSE?
A resposta a isso não é simples. Mas o fato é que as campanhas já começaram. E isso é um bom teste para se avaliar a capacidade das emissoras de adotar, desde já, um comportamento ético. Além de prever as armadilhas que acontecerão numa disputa cada vez menos conduzida pelas idéias dos candidatos e mais pelas dos publicitários e jornalistas que circulam em torno deles.